DE KANT A HONNETH: UM ENSAIO SOBRE A LIBERDADE E SUA ADEQUAÇÃO CONSTITUCIONAL
FROM KANT TO HONNETH: AN ESSAY ABOUT FREEDOM AND ITS CONSTITUTIONAL APPROPRIATION
Guilherme Camargo MassaúI
André Kabke BainyII
I Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPel, Pelotas, RS, Brasil. Doutor em Direito. E-mail: uassam@gmail.com
II Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pelotas, RS, Brasil. Mestrando em Direito. E-mail: andrebainy@hotmail.com
DOI: http://dx.doi.org/10.31512/rdj.v19i34.2850
Recebido em: 31.10.2018
Aceito em: 28.05.2019
Sumário: Considerações iniciais. 1 Contexto principiológico: Constituição brasileira de 1988. 1.1 Princípio republicano. 1.2 Princípio democrático. 2 Panorama geral: a liberdade na filosofia e o conceito em Kant. 3 Hegel e o conceito de liberdade na em sua filosofia do direito. 4 Algumas proposições de Rawls à liberdade jurídica. 5 O direito da liberdade em Axel Honneth. Considerações finais. Referências.
Resumo: O conceito “liberdade” é tema central de debates de esferas do conhecimento como a filosofia moral, política e do direito. Reconhece-se que as respectivas digressões teóricas têm acompanhado o caminhar das civilizações contemporâneas. Isso porque a liberdade, mais do que uma construção teórica, diz respeito ao “mundo da vida”, ao “ser com os outros” e àquilo que há de mais concreto e imanente na existência e experiência humanas. Não poderia ser outra a razão do direito se apropriar do conceito e de suas significações, atribuindo normatividade (na forma de direitos e garantias) à liberdade. A questão que parece ser ainda (e constantemente) necessária de ser retomada é a busca por fundamentos teórico-filosóficos da liberdade jurídica, de modo a se compreender as próprias dimensões da palavra, mas, além disso, as próprias premissas racionais que as justificam. Assim, o presente artigo pretende fazer um comparativo entre autores de diferentes épocas – a saber, Kant, Hegel Rawls e Honneth - que desenvolveram, ao menos tangencialmente, a temática da liberdade jurídica, de modo a se viabilizar uma análise comparativa quanto à mudança, ou não, da fundamentação teórica utilizada pelos mesmos. Os métodos de pesquisa empregados foram o histórico e o analítico. O histórico teve como objetivo traçar o pensamento dos autores em comento, considerando-os de um modo historicamente situados no tempo. O analítico foi utilizado para se poder retirar as consequências das informações colhidas e responder ao problema de pesquisa.
Palavras-chave: Liberdade jurídica. Filosofia do direito. Racionalidade jurídica.
Abstract: The concept of “freedom” is a central theme of debates in different knowledge spheres, such as moral, political, and legal philosophy, It is recognized that the respective theoretical digressions have accompanied the path of contemporary civilizations. It is certain that the respective theoretical digressions have accompanied the path of contemporary civilizations. This is because freedom rather than a theoretical construction concerns to the “Lifeworld”, to the “being-with others,” and to what is most concrete and immanent in human existence and experience. It could not be other reason for the law to appropriating the concept and its meanings, attributing normativity (in the form of rights and guarantees) to freedom and recognizing its fundamental - and, therefore, prevalence - in the internal logic of the legal order. The question which, although classical, seems still (and constantly) necessary to be taken up again is the search for theoretical-philosophical foundations of juridical freedom, in order to understand the very dimensions of the concept, but also the rational premises themselves that justify them. Therefore, the present article intends to make a comparison between authors of different epochs that developed, at least tangentially, the legal freedom theme, in order to make possible a comparative analysis regarding to the change or not, of the theoretical foundation used by them. The research methods employed were the historical and the analytical one. The objective of the historical one was to trace the thought of the authors, historically situated in time, in comment. The analytical one was used to be able to extract the consequences of the information collected and to respond to the research problem.
Keywords: Legal freedom. Fhilosophy of law. Legal reasoning.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A liberdade é um dos ideários da humanidade, e o fenômeno jurídico não desconhece tal assertiva, tanto que a liberdade se constitui um princípio essencial ao Estado constitucional, seja na sua forma liberal ou social. E seu reflexo no mundo jurídico deve-se pela constante busca do ser humano em se relacionar com o ambiente natural (domínio da natureza), o ambiente social (convívio com outros indivíduos), o ambiente cultural (livre manifestação do pensamento e da produção do conhecimento), o ambiente político (liberdade de expressar sua opinião e/ou ser representado por alguém que assim possa fazer), dentre outros ambientes.
Trata-se de um ideário que abre uma área de estudo múltipla, densa, complexa e ampla, até porque o conceito “liberdade” é debatido ao longo da história da filosofia moral, política e do direito, sem que se tenha alcançado uma opinião uníssona. Contudo, as respectivas digressões teóricas têm acompanhado o caminhar das civilizações contemporâneas, situam a liberdade como conceito, princípio e direito fundamental ao viver humano.
Isso porque a liberdade, mais do que uma construção teórica, diz respeito ao “mundo da vida”, ao “ser com os outros” e àquilo que há de mais concreto e imanente na existência e experiência humanas. Não poderia ser outra a razão do direito se apropriar do conceito e de suas significações, atribuindo normatividade (na forma de direitos e garantias) à liberdade e reconhecendo sua fundamentalidade – e, por isso, prevalência – na lógica interna do ordenamento jurídico.
A questão que, embora clássica, parece ainda (e constantemente) necessária de ser retomada é a busca por fundamentos teórico-filosóficos da liberdade jurídica, de modo a se compreender as próprias dimensões da palavra, mas, além disso, as próprias premissas racionais que as justificam. Por conseguinte, mesmo que se admita uma perspectiva jusnaturalista ou um fundamento metafísico/a priori para se justificar a imanência da liberdade na existência humana, não há como se negar que o desenvolvimento e compreensão do conceito de liberdade – especialmente nas suas implicações na filosofia política e no direito – acompanham a evolução de grande parte das outras discussões de fôlego similar.
Nesse contexto, o presente artigo, a fim de alcançar o objetivo do texto, pretende fazer um comparativo entre autores de diferentes épocas – a saber, Kant, Hegel, Rawls e Honneth1 – que desenvolveram, ao menos tangencialmente, a temática da liberdade jurídica, de modo a se viabilizar uma análise comparativa quanto à fundamentação e adequação teórica dos mesmos à Constituição brasileira, abordando-as no tópico referente à conclusão do texto. Por fim, destaca-se que as concepções de liberdade trabalhadas no texto são referências para fundamentar o texto constitucional no condizente aos dispositivos citados a título de exemplos. Isso para demonstrar que a filosofia é fonte, em termos auxiliares, da fundamentação do direito de liberdade.
1 CONTEXTO PRINCIPIOLÓGICO: CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988
As questões envoltas à noção de liberdade possuem íntima relação com a Magna Carta brasileira, afinal é ela que fundamenta e legitima todos os direitos, garantias e deveres dos seres humanos que se encontram no Estado brasileiro. Por tal motivo, é necessário se ter a noção de possíveis teorias de liberdade que possam contribuir para a interpretação dos textos normativos constitucionais que, de alguma forma, encontram-se calcadas na concepção de liberdade juridicamente refletida. E é justamente daí que se evidencia a importância dos autores estudados no texto, já que são autores referências de um passado ainda invocado, bem como de um presente latente.
A liberdade jurídica encontra-se inserida no contexto constitucional que possui princípios político-constitucionais, situados do Art. 1º ao Art. 4º da CF. Tais princípios traduzem as opções políticas fundamentais da Constituição (SILVA, 1999, p. 97), ao ponto de os interpretes da liberdade jurídica terem de levar em consideração o significado da liberdade jurídica conforme os princípios políticos-constitucionais2. Dessa forma, elegeu-se os princípios da república e da democracia (Art. 1º, Caput, da CF) para serem cotejados com a concepção de liberdade dos autores ora trabalhados.
Se por um lado a república sem a democracia descaracteriza-se; por outro, a democracia, sem liberdade, não é democracia. Daí porque afirmamos com certa segurança que a república depende da democracia e a democracia da liberdade.
1.1 Princípio republicano
O Legislador Constituinte originário da Constituição de 1988 optou pela república como forma de Estado, tal como expressa o Caput do Art. 1º da CF.
Ao determinar que o Estado brasileiro adotaria o regime republicano, o Constituinte, simultaneamente, determinou que os valores característicos ao regime republicano se sobrepusessem aos que os contradizem. Destarte, as referências valorativas contrárias aos da república constituem-se em inconstitucionalidades. Isso pelo fato de os conteúdos formais e materiais contidos na Constituição prevalecerem em relação aos infraconstitucionais (princípios da hierarquia normativa e da força normativa da constituição).
Disso se extrai que, ao interpretar qualquer dispositivo constitucional ou infraconstitucional, o intérprete deve levar em consideração à interpretação inclinada aos valores republicanos. A liberdade, nesse contexto normativo, deve ser a adequada à república. Dessa forma, todos são iguais, não devendo existir qualquer tipo de privilégios ligados à pessoa (MASSAÚ, 2016a, p. 95). Desta feita, a liberdade na república deve levar em consideração duas dimensões: a formal e a material. Ambas as dimensões condizem com as condições que as pessoas devem possuir para atuarem na esfera pública da república. A formal refere-se à liberdade fruto da garantia legal, a material é a liberdade proporcionada pelo acesso às condições mínimas de existência que oferta o Estado social quando se encontra uma cidade que desigualdades materiais. Essa atuação, o exercício da cidadania se concretiza pelo processo democrático em uma república, com a denominada liberdade dos modernos.
1.2 Princípio democrático
O princípio democrático encontra-se, também, no Art. 1º Caput, in fine, da CF. Conforme o texto constitucional, o Estado brasileiro constitui-se em Estado democrático. Ao optar pelo regime democrático, o Constituinte, da mesma forma como fê-lo ao decidir-se pela república, simultânea e implicitamente, tornou incompatíveis os valores que vão de encontro à ideia de democracia. Aos conteúdos formais e materiais que contradizem à democracia, cabe a inconstitucionalidade e sua exclusão do sistema jurídico. Dessa forma, a democracia requer a liberdade, em suas diversas manifestações.
Destarte, em um regime democrático, a igualdade, requerida em uma república, atua como elemento equalizador de liberdades. Embora nas democracias modernas o princípio da maioria prevaleça, é preciso levar em consideração os princípios contra majoritários que garantes as condições mínimas de liberdade às minorias. Isso faz com que todas as pessoas mantenham suas liberdades básicas. Caso contrário, a maioria se sobreporia totalmente às minorias, retirando-lhes os espaços de liberdades, subjugando-as em sua totalidade. Trata-se, então, de reconhecer limites ao poder da maioria (MASSAÚ, 2016a, p. 101), ao mesmo tempo que se reconhece dimensões invioláveis de liberdade inerentes a todos, inclusive à minoria.
2 PANORAMA GERAL: A LIBERDADE NA FILOSOFIA E O CONCEITO DE KANT
A liberdade é um tema constantemente suscitado ao longo da história do pensamento filosófico, sendo objeto de estudo, análise e disposição teórica para uma gama de filósofos das mais variadas vertentes. Trata-se, a toda prova, de conceito que possui amplo espectro de abordagem, seja sob seu viés moral, jurídico, político, social ou teológico. Nesse contexto, Immanuel Kant destacou-se como um dos grandes pensadores da história e, no que tange à filosofia moral, foi o autor que deixou um legado importante ao pensamento contemporâneo.
Em sua obra, dentre os diversos aspectos abordados, é dada especial atenção ao conceito de liberdade, intrinsicamente relacionado ao de autonomia, que correspondem a verdadeiros pressupostos da moralidade kantiana.
Dada a relevância da obra, mas, além disso, tendo em vista as correntes teóricas contemporâneas, que têm revisitado seu legado na busca de fundamentação teórica hábil a justificar os direitos humanos hodiernamente, parece oportuno trazer uma breve contextualização acerca do que Kant diz sobre liberdade.
Para Kant, a vontade moral pura é a vontade autônoma, motivo pelo qual isto “implica, necessária e evidentemente, no postulado da liberdade da vontade. Pois como poderia ser autônoma uma vontade que não fosse livre? Como poderia ser a vontade moralmente meritória, digna de ser qualificada de boa ou de má” (MORENTE, 1980, p. 258), se a vontade estivesse sujeita à lei dos fenômenos/causalidade?
Assim, o comentador pondera:
“Se a consciência moral é um fato, tão fato como o fato da ciência, e se do fato da ciência extraímos as condições da possibilidade do conhecimento científico, igualmente do fato da consciência moral temos que extrair também as condições da possibilidade da consciência moral. E uma primeira condição da possibilidade da consciência moral é que postulemos a liberdade de vontade” (MORENTE, 1980, p. 259).
Numa breve síntese, Kant considera que a liberdade é a ação em conformidade com a lei moral que nos outorgamos a nós mesmos. A liberdade implica a responsabilidade do indivíduo por seus próprios atos (JAPIASSU e MARCONDES, 2001, p. 119).
Para além da importância dada por Kant à ideia de liberdade no âmbito da filosofia – haja vista que, para o autor alemão, a moral seria composta principalmente pela conjugação de dois conceitos: liberdade e dever - a liberdade também tinha status jurídico inafastável, inclusive sendo o verdadeiro direito fundamental.
Nesse sentido, Norberto Bobbio bem aponta que “definido o direito natural como o direito que todo homem tem de obedecer apenas à lei que ele mesmo é legislador, Kant dava uma definição da liberdade como autonomia, como poder de legislar para si mesmo” (BOBBIO, 2004, p. 49). Ainda comentando o pensamento kantiano, prossegue o jusfilósofo italiano ao afirmar que “o único direito inato, ou seja, transmitido ao homem pela natureza e não por uma autoridade constituída, é a liberdade, isto é, a independência em face de qualquer constrangimento imposto pela vontade do outro, ou, mais uma vez, a liberdade como autonomia” (BOBBIO, 2004, p. 49).
A importância dada por Kant à noção de liberdade – colocando-a na condição de único direito inato do ser humano – tem absoluta importância filosófica, mas, também, está intimamente relacionado à importância e justificação do próprio direito no pensamento kantiano, a saber: de modo a se resguardar e preservar a máxima da liberdade, a legalidade surge como mecanismo de evitar/limitar arbítrios (FERNANDES, 2013, p. 373).
3 HEGEL E O CONCEITO DE LIBERDADE EM SUA FILOSOFIA DO DIREITO
O pensador alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel, em seu clássico “Princípios da Filosofia do Direito”, também aborda a questão da liberdade sob a ótica do fenômeno jurídico, apresentando de imediato algumas conclusões sobre as quais passa a desenvolver seu raciocínio, afirmando que
“o domínio do direito é o espírito em geral; aí a sua base própria, o seu ponto de partida está na vontade livre de tal modo que a liberdade constitui a sua substancia e o seu destino e que o sistema do direito é o império da liberdade realizada, o mundo do espírito produzido como uma segunda natureza a partir de si mesmo” (HEGEL, 1997, p. 12).
Em termos gerais, para Hegel, “só existe liberdade onde há relações de direito” (BICCA, 1992, p. 27), não significando que as relações jurídicas já estabelecidas (positivadas) efetivem e deem total plenitude à liberdade, mas, sim, significando que elas são a dimensão de sua existência (BICCA, 1992, p. 27).
Interpretando essa construção teórica a contrario sensu, é possível se inferir que, para Hegel, a compreensão do que seja realmente o direito está condicionada à exposição do conceito de liberdade (BICCA, 1992, p.27). Trata-se de dois conceitos que exercem mútua e indissociável influência.
Colocando em termos mais objetivos, a liberdade seria o princípio (pressuposto) do direito, sendo que, contudo, a sua existência só se viabilizaria onde o direito também existisse.
Essa relação de mutualidade é bem explicada por Luiz Bicca (1992), que, ao comentar a obra de Hegel, pondera que para aquele pensador só há verdade no todo – e não no simples conceito ou na mera existência, separadamente – haja vista que “o conceito não é algo pensado por abstração ou como permanecendo em contraposição à existência (ou à realidade); a realidade espiritual é a realização do conceito” (BICCA, 1992, p. 28).
É proposital a intenção de Hegel de construir a noção de liberdade a partir de uma perspectiva da vontade humana individual, até mesmo para guardar coerência com o restante da sua obra e com as críticas por ele formuladas à tradição do direito natural. Trata-se, a toda prova, de uma exposição dialético-especulativa da liberdade, dotada de grande complexidade e abstração, guardando semelhanças com o desenvolvimento de todo o pensamento hegeliano.
Conforme Luiz Bicca, “ao adotar intencionalmente tal ponto de partida” [ponto de vista do indivíduo enquanto sujeito da liberdade em sua singularidade], “Hegel acolhe também o pressuposto básico de compreensão da liberdade compartilhado pela maioria dos pensadores modernos, a autodeterminação no agir” (BICCA, 1992, p. 28).
Ocorre que essa adoção é feita no sentido de uma reorientação radical em relação àquilo até então desenvolvido: tomando por ponto de partida a redefinição kantiana da ideia de autodeterminação, Hegel faz profunda revisitação da subjetividade do sujeito da determinação (“auto-”). Nesse sentido:
“Em Hegel, como em Kant, uma pessoa é dita livre quando o fundamento determinante de suas decisões práticas não é algo externo à razão, mas a própria razão. Hegel enfatiza contudo a importância de que a autodeterminação racional seja também (auto-)consciente, pois uma ação que não preenche esta última condição tem o aspecto de obediência rígida ou cumprimento de uma espécie de necessidade cega. Hegel diverge de Kant ao não pensar que a esfera de existência ou a realidade empírica recubra ou seja integralmente equivalente ao mundo natural, à esfera das leis da natureza. Seu conceito de realidade não comporta apenas as criações naturais, mas ainda as realizações da razão humana: leis racionais, instituições, etc. Com isto, Hegel admite também que no agir livre não só o lado formal deriva da razão, mas que há conteúdos que podem ser ditos racionais. É recusada, portanto, a atribuição de um significado exclusivamente naturalista, por assim dizer, à palavra “conteúdo”. A razão humana é ou tem o poder de criar leis pertencentes a uma esfera que manifesta um traço de descontinuidade em relação à natureza física: a história ou, na linguagem de Hegel, a esfera do espírito” (BICCA, 1992, p. 29).
Ou seja: o maior “corte” teórico do pensamento de Hegel em relação a Kant se dá na esfera do sujeito da liberdade.
O início da reflexão de Hegel acerca do direito é a construção conceitual da “vontade”, cuja essência, justamente, é a de ser livre. Daí porque o conceito de vontade, na visão hegeliana, implicaria o de liberdade, haja vista que “a liberdade é a substância e a determinação essencial da vontade” (HEGEL, 1997, p. 46).
Toda a compreensão da filosofia do direito hegeliana passa pela afirmação de que, no entender do autor, há no mundo duas categorias distintas de ser: os sujeitos e as coisas.
As coisas são desprovidas da consciência de si mesmas e do mundo, ou, conforme Hegel no §42 dos Princípios da Filosofia do Direito, falta à coisa a subjetividade (HEGEL, 1997, p. 44). Contudo, “o destino das coisas se revela no universo jurídico, porque em face dessas coisas há sujeitos, isto é, seres livres dotados de consciência que experimentam sua liberdade em um mundo de coisas” (BILLIER, 2005, p. 181-182).
Nesse contexto, o sujeito seria este ser que é capaz de colocar sua vontade em qualquer coisa, podendo, destarte, tornar “a coisa” sua propriedade. Acerca desse duplo movimento de realização para Hegel, Billier comenta que “quando o objeto se espiritualiza, o sujeito se objetiva, um e outro fazendo parte um do outro. É assim que todo o pensamento hegeliano tende a abolir o dualismo clássico entre o sujeito e o objeto” (BILLIER, 2005, p. 182).
O comentarista prossegue na exposição do pensamento de Hegel bem pontuando que daí são extraídas três consequências teóricas importantes: (i) o sujeito que pode colocar sua vontade sobre qualquer coisa não pode coloca-la sobre não-coisas, isto é, sobre sujeitos; (ii) uma vez que a objetivação da vontade em uma coisa não depende senão dessa vontade particular, de um sujeito portanto, o caráter privado da propriedade é reconhecido por Hegel, que estima de passagem que toda ideia de propriedade coletiva é uma contradição nos termos; e (iii) a extensão considerável que Hegel dá ao campo do direito, assim considerando-o como a liberdade enquanto ideia, o que implica que cada grau de desenvolvimento da liberdade terá seu direito próprio (BILLIER, 2005, p. 182).
Ou seja: “o direito não é um domínio à parte que trabalha sobre as limitações ou sobre as restrições da liberdade: ele é o momento crucial e necessário de uma filosofia da liberdade, porque ele é o momento da necessária objetivação da liberdade” (BILLIER, 2005, p. 183).
4 ALGUMAS PROPOSIÇÕES DE RAWLS À LIBERDADE JURÍDICA
John Rawls, autor estadunidense do século XX, tem como tema central de suas pesquisas a liberdade na filosofia moral, política e jurídica. Tal autor é defensor de uma teoria comumente catalogada como “liberalismo-igualitário”, sendo uma referência teórica que precisa ser constantemente revisitada, seja pela contemporaneidade, seja pela solidez de sua obra. Dentre as suas várias obras, destaca-se “Uma teoria da justiça” (RAWLS, 2008), na qual o autor propôs o relançamento da ética substantiva e da política normativa.
Tal obra foi levada a efeito em uma clara tentativa de racionalizar a busca pela identificação dentre os tantos ordenamentos sociais possíveis, qual(is) é(são) o(s) justo(s), “isto é, aqueles que cada cidadão escolheria se pudesse ser posto em condições de fazer uma escolha absolutamente racional, para além dos próprios interesses e egoísmos” (FARALLI, 2006, p. 5).
Como parte estruturante da sua teoria, Rawls apresenta uma proposição procedimental contratual hipotética – que remonta à clássica noção de “contrato social” – que serve como instrumento por meio do qual são deduzidos os princípios de justiça de determinada comunidade.
O ponto de partida do procedimento é a “posição original” na qual os indivíduos “contratantes” se encontram, guardando todos em comum o fato de estarem sob o “véu da ignorância”, não sabendo nada sobre sua própria existência, posição na sociedade, capacidades pessoais, posses materiais, etc. “Em outras palavras, excluem-se todas as considerações que poderiam introduzir elementos de não-imparcialidade no diálogo contratual” (FARALLI, 2006, p. 5).
É nesse contexto hipotético que as partes em questão (contratantes de um novo Estado), concebidas como racionais e em condições de total liberdade e igualdade, “escolhem juntas com um só ato coletivo, os princípios que devem conferir os direitos e os deveres fundamentais e determinar a divisão dos benefícios sociais” (FARALLI, 2006, p. 6).
Comentando a obra de Rawls, Carla Faralli pontua que os princípios escolhidos pelos participantes da “posição original” são, substancialmente, dois:
“o primeiro, que determina que cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais, que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos; o segundo, que todos os principais bens sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza e as bases da autoestima – devem ser distribuídos igualitariamente, a menos que uma distribuição desigual de um ou mais desses bens traga vantagem aos menos privilegiados” (FARALLI, 2006, p. 6).
Da leitura da obra de Rawls se extrai que o primeiro princípio possui precedência operacional em relação ao segundo, motivo pelo qual restaria assegurada que a liberdade tenha sempre prioridade. Nesse sentido, Wayne Morrison pontua que, para Rawls, “não é admissível legitimar-se a restrição da liberdade ou da igualdade de oportunidades com o argumento de que tal restrição contribuirá para a melhora das condições dos menos favorecidos” (MORISSON, 2006, p. 471), sendo que nestes casos, contudo, dever-se-ia optar por uma distribuição desigual destes bens primários sociais (liberdade, oportunidade, renda, riqueza, etc.).
Para Rawls, as pessoas envoltas sob o véu da ignorância optariam por escolher “a liberdade como seu primeiro princípio, uma vez que, desconhecendo a situação real ou sua própria concepção do bem-viver, isso lhes daria a maior oportunidade de perseguir quaisquer ideais que prefiram” (MORISSON, 2006, p. 471-472), ao passo que “escolheriam o segundo princípio porque atuariam com base num ‘princípio minimax’ por meio do qual prefeririam a opção menos pior caso viessem a encontrar-se no nível mais baixo da sociedade” (MORRISON, 2006, p. 472).
Para todos os efeitos, a teoria de Rawls pode ser considerada procedimentalista, na medida em que sua proposta passa pela adoção e defesa de um determinado método. Mas, para aquilo que interessa no presente trabalho, interessante trazer à tona a profunda ligação que a própria liberdade – enquanto princípio de justiça – possui em relação ao procedimento rawlsiano.
Nesse sentido, o autor sustenta o respeito da liberdade enquanto garantia ao procedimento justo, afirmando que
“o ideal é que uma constituição justa seja um procedimento justo para assegurar um resultado justo. O procedimento seria o processo político regido pela constituição; e o resultado seria o conjunto das leis promulgadas, ao passo que os princípios de justiça definiriam um critério de avaliação independente para ambos, procedimento e resultado. Na tentativa de alcançar esse ideal de justiça procedimental perfeita (§ 14), o primeiro problema é conceber um procedimento justo. Para isso, é preciso que as liberdades da cidadania igual sejam integradas à constituição e por ela protegidas. Essas liberdades incluem a liberdade de consciência e de pensamento, a liberdade individual e a igualdade de direitos políticos. O sistema político, que presumo ser alguma forma de democracia constitucional, não seria um procedimento justo se não incluísse essas liberdades” (RAWLS, 2008, p. 242).
Ao longo da sua obra, Rawls deixa claro que não irá se dedicar à discussão acerca do significado da liberdade, que, nas suas palavras, “tantas vezes dificultou esse tema” (RAWLS, 2008, p. 247). Por tal motivo, opta por deixar de lado a controvérsia havida entre os defensores da “liberdade negativa” e da “liberdade positiva”, no que concerne a como se deveria definir a liberdade, haja vista que, para ele, “as questões de definição podem desempenhar, na melhor das hipóteses, um papel coadjuvante” (RAWLS, 2008, p. 247).
Uma vez propositalmente afastada a questão da conceituação da liberdade, Rawls passa a utilizar o conceito a partir daquilo que, para ele, são seus três elementos identificadores: os agentes que são livres; as restrições ou limitações de que estão livres e aquilo que têm liberdade para fazer ou não fazer (RAWLS, 2008, p. 247-248).
Destaca-se que, embora o pensamento de Rawls guarde profunda relação com o pensamento de Kant – e com outros autores apegados a uma dogmática liberal – e, por isso, possa inicialmente aparentar um mero aprofundamento de teorias já criadas, o objetivo central da teoria da justiça rawlsiana é justamente o de buscar uma resposta no âmbito da filosofia política, que não tome a liberdade como uma verdade moral e que consiga se esquivar do princípio utilitarista do sacrifício (ROSCHILDT, 2009, p. 7).
A propósito do rechaçamento feito por Rawls à perspectiva utilitarista, destaca-se a ênfase dada pelo autor à inegociabilidade das liberdades individuais:
“A justiça é a virtude primeira das instituições sociais, assim como a verdade o é dos sistemas de pensamento. Por mais elegante e econômica que seja, deve se rejeitar ou retificar a teoria que não seja verdadeira; da mesma maneira que as leis e as instituições, por mais eficientes e bem organizadas que sejam, devem ser reformuladas ou abolidas se forem injustas. Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem o bem-estar de toda a sociedade pode desconsiderar. Por isso, a justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior desfrutado por outros. Não permite que os sacrifícios impostos a poucos sejam contrabalançados pelo número maior de vantagens de que desfrutam muitos. Por conseguinte, na sociedade justa as liberdades da cidadania igual são consideradas irrevogáveis; os direitos garantidos pela justiça não estão sujeitos à negociações políticas nem ao cálculo de interesses sociais. A única coisa que nos permite aquiescer a uma teoria errônea é a falta de uma melhor; de maneira análoga, a injustiça só é tolerável quando é necessária para evitar uma injustiça ainda maior. Por serem as virtudes primeiras das atividades humanas, a verdade e a justiça não aceitam compromissos” (RAWLS, 2008, p. 4).
Ora, sendo a liberdade o princípio primeiro da justiça rawlsiana, esse caráter de “inegociabilidade” certamente também a acompanha.
5 O DIREITO DA LIBERDADE EM AXEL HONNETH
O autor alemão Axel Honneth é um pensador que segue a tradição da Escola de Frankfurt3, travando diálogos especialmente com Jürgen Habermas, mas que ao longo de sua obra passa a se distanciar, ao menos parcialmente, da teoria crítica frankfurtiana. Antes da publicação do livro “O direito da liberdade”, as obras de Honneth que obtiveram maior repercussão foram “Luta por reconhecimento” (1992) e “Sofrimento de indeterminação” (1996).
Conforme apontado por Evânia Reich, em “O direito da liberdade” evidencia uma evolução da sua interpretação da teoria do reconhecimento de Hegel, dando reflexões acerca do papel deste reconhecimento para a emancipação de uma sociedade que ele havia iniciado em “Luta por Reconhecimento” (REICH, 2013, p. 144).
Isso porque, diferentemente das obras até então publicadas, em “O direito da liberdade” o autor visualiza a forma de reconhecimento recíproco, especificamente horizontal, na teoria hegeliana da “Filosofia do Direito como também a adota para desenvolver a sua própria tese de que é somente através das instituições livres que os indivíduos conseguem alcançar a verdadeira liberdade que é aquela do tipo social” (REICH, 2013, p. 145).
A propósito da fundamentação teórica na obra de Hegel, Pinzani bem pontua que a pretensão de Honneth é, contudo, “atualizar o pensamento hegeliano, livrando-o da sobrecarga metafísica” (PINZANI, 2012, p. 207). É na obra “O direito da liberdade” que Honneth empreende um esforço teórico que tem como escopo “sustentar a ideia de que os valores morais e princípios normativos que regem a vida em sociedade seriam deduzidos das próprias práticas e relações que se estabelecem nas instituições sociais, promovendo uma modernização do conceito de espírito objetivo” (SILVA, 2016, p. 287). Para tanto, utiliza-se do método denominado de “reconstrução normativa”.
O cerne utilizado por Honneth para fundamentar sua teoria da justiça refere-se a uma atualização do conceito de liberdade, partindo do pressuposto de que “no discurso moral da modernidade foram constituídos três modelos claramente delimitados para os conflitos em torno do significado de liberdade (HONNETH, 2015, p. 41), quais sejam: (i) modelo de liberdade negativo – vinculado à autonomia individual a partir da positivação de direitos subjetivos; (ii) modelo de liberdade reflexivo – vinculado à afirmação pessoal e racional do sujeito; e (iii) modelo de liberdade social – vinculado às esferas de eticidade estabelecidas no plano social, no caso, relações pessoais, mercado e a esfera do Estado (HONNETH, 2015, p. 41-42; SILVA, 2016, p. 289).
Na primeira parte da obra “O direito da liberdade”, Honneth faz uma abordagem de contextualização e interlocução com o pensamento dos outros autores da filosofia. Nesse sentido, Honneth objetiva revisitar a importância da categoria hegeliana do reconhecimento para a definição e amplitude do conceito de liberdade social, sendo justamente o reconhecimento recíproco em Hegel como o momento chave para a sua representação da liberdade (REICH, 2013, p. 145).
Isso porque, segundo Honneth, o pensamento hegeliano levaria à conclusão de que os indivíduos não podem realizar suas finalidades através de suas experiências subjetivas, haja vista que “a realização da verdadeira liberdade de um indivíduo é somente possível na relação com o outro cujas finalidades têm uma relação de complementariedade com as finalidades dele” (REICH, 2013, p. 145).
Nesse sentido, os objetivos de outros indivíduos não seriam vistos por determinado sujeito como um obstáculo ao alcance da sua própria realização e aspiração, mas, ao contrário, o desejo de determinado sujeito somente poderia vir a ser confirmado e concretizado “na medida em que a existência dos desejos e finalidades do outro é uma condição para a realização de seus próprios desejos e finalidades” (REICH, 2013, p. 146).
Daí decorreria a indispensabilidade das instituições sociais reconhecidas historicamente: somente por meio delas que os indivíduos poderiam vir a conhecer as finalidades e carências recíprocas; ou seja, são o meio através do qual os indivíduos compreendem-se reciprocamente. Nesse sentido,
“Segundo Honneth, os sujeitos aprendem a articular para os outros de maneira compreensível suas finalidades assim como interpretam de maneira adequada os anseios desses, antes mesmo de poder se reconhecer reciprocamente como sendo dependentes uns dos outros. Isto é, faz-se necessário que os indivíduos se relacionem entre si no interior de instituições historicamente reconhecidas para que eles mesmos se reconheçam e se deem conta de suas dependências recíprocas. Sem este “médium” a tomada de consciência desta interdependência seria impossível [...]. São as finalidades individuais que se complementam entre si que possibilitam a realização do reconhecimento recíproco. Os indivíduos se dão contam que vivem em uma sociedade no interior da qual seus anseios e objetivos têm que complementar àqueles de seus parceiros de interação. Eu reconheço o outro porque suas finalidades ecoam na minha própria vida e sou reconhecido porque minhas escolhas complementam as escolhas de meu parceiro social” (REICH, 2013, p. 146).
Na segunda parte da obra, o autor se dedicou a abordar dois modelos de liberdade anteriores ao conceito de liberdade social (que é abordada na terceira parte da obra): a liberdade jurídica e a liberdade moral.
A liberdade jurídica, para Honneth, estaria relacionada à existência de um sistema de direitos subjetivos, surgidos gradativamente na modernidade. Destarte, o autor reconhece que os direitos subjetivos inicialmente tiveram caráter econômico, contudo, ao longo do tempo, os direitos subjetivos “acabaram criando um espaço de proteção do indivíduo, que lhe permite desenvolver autonomamente seu plano de vida independentemente das concepções e dos valores socialmente dominantes” (PINZANI, 2012, p. 209). Noutras palavras, os direitos subjetivos constituiriam uma esfera privada, da qual os indivíduos poderiam se retirar, deixando de se sujeitar às obrigações comunicativas vinculadas à exigência de justificação das escolhas de vida e valores individuais (PINZANI, 2012, p. 209).
Honneth, baseando-se no pensamento de Hegel, afirma que os direitos abstratos possuem uma dupla natureza que lhes é peculiar: (i) uma natureza externa, para fora, cujo formato é “meramente racional-finalista da solução de decisão, para proteger esse mesmo sujeito, para dentro, em sua capacidade de formar eticamente a sua vontade com maior eficácia” (HONNETH, 2015, p. 133), por meio da qual o sujeito antagônico da relação jurídica (contraparte) possuiria liberdade segundo o seu próprio arbítrio e, assim, poderia seguir as suas preferências determinadas individualmente; e (ii) uma natureza de perspectiva interna, que se daria de maneira “opaca”, sendo que essa opacidade resultaria no desajuste dos “sujeitos das relações de integração intersubjetiva [...], de sorte que estes passariam a atuar apenas de forma estratégica, buscando alcançar os seus interesses fundados em uma racionalidade puramente jurídica” (HONNETH, 2015, p. 132; SILVA, 2016, 292).
O autor alemão admite, nesse contexto, que os direitos subjetivos não seriam desprovidos de conteúdo ético, haja vista que, uma vez que o indivíduo é detentor de direitos subjetivos, o mesmo passa a contar com espaço próprio, pessoal, onde pode realizar reflexões acerca das diversas concepções de realização pessoal ou boa vida, bem como a defender seus valores morais. Nesse sentido, “os direitos subjetivos que concedem a cada indivíduo a liberdade de articular e defender publicamente suas convicções sobre valores, devem garantir esse tipo de pluralismo ético” (HONNETH, 20215, p. 139). Assim, prossegue o autor, “uma vez que cada um desfruta de sua pretensão, afiançada pelo Estado, de não ser impedido de externar suas ideias de bem, surge aquela corrente permanente de imagens e visões da vida bem conduzida que abastece o indivíduo de alternativas sempre novas em sua autoconfirmação ética” (HONNETH, 2015, p. 139).
Dada essa possibilidade de concepção ética dos direitos subjetivos, no sentido de não significar apenas uma ação isolada do sujeito em relação aos demais integrantes da sociedade, a liberdade jurídica decorreria de um “sistema de ações institucionalizado”, e que, portanto, “servir-se da liberdade jurídica e praticá-la significa tomar parte numa esfera de ação socialmente institucionalizada, regulada por normas de reconhecimento recíproco” (HONNETH, 2015, p. 147).
A liberdade social, por sua vez, em relação a qual é dedicada mais da metade da obra, é, para Honneth, onde de fato a liberdade do indivíduo se realiza (PINZANI, 2012, p. 210).
Para Honneth, ao passo que a liberdade jurídica e a liberdade moral se relacionam de maneira “parasitária com uma prática de vida social, que não apenas já as precede sempre, como também devem, só a elas, seu verdadeiro direito de existir” (HONNETH, 2015, p. 223). Noutras palavras, não obstante as liberdades morais e jurídicas de fato viabilizem que o indivíduo se distancie das exigência eventualmente estabelecidas pelas relações sociais prévias, “elas próprias em si não constituem uma realidade intersubjetivamente compartilhada no seio do mundo social” (HONNETH, 2015, p. 224).
De todas essas circunstâncias utilizadas pelo autor para a construção de sua teoria, nos parece que o conceito honnethiano para a liberdade jurídica ainda tenha como pressuposto o ideal liberal clássico de “liberdade negativa”, que sustenta que os indivíduos teriam sua liberdade assegurada por um conjunto de direitos subjetivos reconhecidos pelo Estado (HONNETH, 2015, p. 128). Nesse contexto, Honneth argumenta que a utilização da definição clássica não corresponderia a um problema teórico, na medida e que essa concepção não sofreu alterações significativas ao longo do tempo – apenas sofreu modificações quanto ao alcance dos direitos subjetivos (HONNETH, 2015, p.129), inclusive resultando na hiperjuridificação da esfera privada (SILVA, 2016, p. 291).
Ocorre que dessa “invasão jurídica” na esfera privada poderia surgir um problema, relacionado ao possível surgimento de uma patologia social, bem sintetizado por Pinzani:
“Mas na liberdade jurídica estaria presente o risco de uma patologia social: a total identificação, pelos indivíduos, de sua liberdade com a liberdade jurídica, isto é, com seus direitos negativos e que, portanto, tais direitos acabem sendo os elementos constitutivos do plano de vida de seus titulares. Assim, os sujeitos tendem a “retirar-se na gaiola de seus direitos subjetivos e a pôr-se perante os outros exclusivamente como pessoas jurídicas”, demandando a resolução de todos os seus conflitos unicamente aos tribunais. A pessoa se reduz assim à “soma de suas pretensões jurídicas”, fechando-se ao fluxo comunicativo que a une às outras pessoas. Os direitos são usados, portanto, como uma barreira às exigências de justificação que provêm dos outros indivíduos” (PINZANI, 2012, p. 209).
O fato de “sempre haver a tendência a minar e subverter a rede existente de relações sociais” (HONNETH, 2015, p.131) levaria ao caráter “incompleto” da liberdade jurídica, “de modo que isso poderia causar um bloqueio ou atenuação do exercício da própria subjetividade do indivíduo e, consequentemente, um afastamento do processo de interação social, fundamental para o reconhecimento e emancipação individual” (SILVA, 2016, p. 292).
A liberdade moral, por sua vez, coincide com aquilo frequentemente denominado de “autonomia moral”, consistente na capacidade de questionamento normas, exigências ou instituições socialmente válidas com base em argumentos que poderiam encontrar o consenso de todos os envolvidos (razões universais). Pinzani aponta que “essa liberdade toma uma forma negativa: é a liberdade de rechaçar normas ou instituições sociais que não superem o teste de universalização” (PINZANI, 2012, p. 210), implicando no fato de que os sujeitos devem estar dispostos a justificarem suas escolhas e ações, recorrendo a argumentos universalizáveis. Daí porque a liberdade moral careceria de que os indivíduos possuam a capacidade de distinguir entre razões corretas ou falsas, mas de colocar-se no lugar dos outros.
Ocorre que, assim como a liberdade jurídica, a liberdade moral também está exposta a patologias sociais: (i) o indivíduo pode vir a se tornar um moralista incapaz de situar-se no contexto social, agindo como se tal contexto não existisse; e (ii) o indivíduo pode chegar a uma postura de “terrorismo” com motivações morais, a partir da qual a ordem social é considerada injusta e imoral na sua totalidade, passando a exigir a sua destruição.
Conforme aponta Campello, em cada um desses dois modelos – liberdade jurídica e liberdade moral -, o autor alemão, guiando-se da perspectiva hegeliana, encontraria um sentido constitutivo de liberdade, mas que, ao mesmo tempo, apresentaria seus próprios limites. E é nesse contexto de limitação que a obra retomaria o conceito de patologia social, recorrente em outros textos de Honneth e indispensável à compreensão de sua teoria.
Com efeito, “patologias sociais” representariam a consequência da quebra da racionalidade social, a qual vinha sendo incorporada como ‘espírito objetivo’ na gramática normativa de sistemas de ação institucionalizados (HONNETH, 2015), ou, ainda, podem ser considerados como patologias “os modos em que um dos modelos de liberdade (jurídico ou moral) torna-se radicalmente unilateral” (CAMPELLO, 2013, p. 191). Nesse sentido:
“Em relação à liberdade jurídica, o indivíduo passa a agir apenas como portador de direitos subjetivos, sendo reduzido seu espaço de liberdade ao sentido estritamente jurídico e perdendo-se, com isso, outras formas de integração social e comunicativa. No que se refere à liberdade moral, por sua vez, se, por um lado, ela tem seu fundamento associado à ideia de autonomia e de escolhas subjetivas, ela apresenta seus limites quando o indivíduo torna-se insensível a contextos, agindo cegamente de acordo com princípios morais previamente estabelecidos” (CAMPELLO, 2013, p. 191).
Em torno da concepção honnethiana de patologias, é importante ressaltar dois aspectos. O primeiro é que Honneth não entende os déficits no que se refere às esferas da liberdade social em termos de “patologia”, reservando a expressão somente às relações de liberdade jurídica e moral, discutidas na primeira parte do livro. Ao invés de patologia, Honneth descreve os problemas concernentes à liberdade social, encontradas nas esferas da eticidade, como desenvolvimentos errados. A ideia, aqui, é que as esferas deveriam proporcionar os espaços de realização da liberdade, mas, devido a possíveis problemas internos ao seu desenvolvimento, elas deixam de exprimir aquele conteúdo normativo.
Aproximando-se do institucionalismo hegeliano – com todas as devidas e necessárias ressalvas e distanciamentos teóricos de seu precursor, como já frisado –, Honneth, na parte final de sua obra, passa a focar na reconstrução normativa do processo que, saindo do modelo de Estado liberal, culminou na implantação do atual modelo de Estado Democrático (Constitucional e social) de Direito (PINZANI, 2012, p. 213), sendo o Estado hodierno compreendido como “o instrumento através do qual os cidadãos ativos politicamente realizam suas convicções e, portanto sua liberdade social” (PINZANI, 2012, p. 214).
Isso porque, seria por meio do Estado, enquanto “órgão reflexivo” ou “rede de instâncias políticas”, que os indivíduos teriam auxílio para entabularem a prática comunicacional, transpondo e compartilhando as suas respectivas visões, alcançadas deliberativamente como solução moral pragmática aos problemas sociais (PINZANI, 2012, p. 214).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como se pode inferir de toda a evolução do pensamento teórico contemporâneo, as construções conceituais envolvendo a liberdade necessária e naturalmente adentram em esferas distintas da vida (moral, política, social e jurídica), as quais, a despeito de possuírem um óbvio e devido grau de autonomia, influenciam-se mutuamente. No que tange à esfera do direito, destinada à discussão do conceito de liberdade jurídica, a mesma deve partir de algumas posições jurídicas fundamentais, como a república e a democracia.
A liberdade, na perspectiva do republicanismo contemporâneo, não se reduz à não interferência do Estado ou de outro(s) indivíduo(s), como é defendido no pensamento liberal. Refere-se à não opressão, ou seja, a dominação exercida por vontade arbitrária do Estado ou de outro(s) indivíduo(s) (MASSAÚ, 2016b, p. 118-119). Para tal, é preciso visualizar a liberdade, em conjunto com a igualdade, enquanto elementos essenciais do conceito de dignidade da pessoa humana (MENDES e BRANCO, 2011, p. 296): o ser humano livre, como ser em busca da auto realização, e sendo responsável pela escolha dos mecanismos de realização de suas potencialidades individuais, ao passo que o Estado, como guardião, facilitador e estimulador4 das liberdades.
Daí porque não é demais afirmar que as normas (regras e princípios) preconizados no ordenamento jurídico são absolutamente permeados pelos aspectos teórico-filosóficos invocados no presente texto.
Nesse sentido, a noção de liberdade para Kant pode ser traduzida, p.ex., no princípio da legalidade (Art. 5º, II, da CF) na medida em que a pessoa deixará de fazer, ou fará, alguma coisa em virtude de lei. Já para Hegel a liberdade encontra-se na autonomia da vontade, mas que ao mesmo tempo requer uma objetivação da liberdade. Para isso, reputa-se, p.ex., o Caput do Art. 5º da CF, ao reunir os elementos dos sujeitos de direito (brasileiro e estrangeiro residente no Brasil) e dos direitos (direito à vida, à liberdade, à segurança, à propriedade dentre outros). Para Rawls, por sua vez, a liberdade encontra-se fundamentada na república, a título de exemplificação, o que consta no Art. 1º, parágrafo único, da CF. Em termos da concepção de Honneth, cabe citar, por exemplo, o Art. 3º, I, IV, da CF.
A liberdade, na perspectiva democrática, refere-se à espécie de autogoverno, na medida em que expressa a autonomia da vontade, conjuntamente, com a participação da pessoa no contexto sociopolítico. Por consequência, em uma república, a democracia está calcada na autonomia da vontade5, sendo que essa autonomia encontra limites no direito. É a opção de cada pessoa que formará a vontade da maioria (princípio majoritário). O direito garantirá a efetivação da vontade da maioria e, também, a proteção do núcleo essencial da autonomia da vontade (liberdade) da minoria (princípio contra-majoritário) (MASSAÚ, 2016b, p. 123-124). Nesse caso, cita-se Honneth com sua perspectiva institucionalista.
Em termos da liberdade no espaço democrático a partir da perspectiva kantiana, cita-se, p.ex., o Art. 5º, IV, VI, IX, Art. 17, Caput, da CF, ao passo que, para ilustrarmos o pensamento de Hegel, em termos de projeção de liberdade na democracia, é possível citar o Art. 14, §3º, da CF (condições de elegibilidade), em que se encontra a objetificação da liberdade política no que se refere a possibilidade de ser eleito a cargo político. No âmbito democrático, cabe citar, no que se refere à liberdade em Rawls, fundamentalmente, o Art. 14, I, II, III, da CF. Já no que condiz a Honneth, cita-se Art. 5º, XVI, XVII, Art. 8º da CF.
Como visto, há inúmeros exemplos concretos extraídos do ordenamento jurídico que estão amparados em pressupostos teóricos justificadores, motivo pelo qual se revela a importância da análise, do estudo e do cotejamento das ideias dos referidos autores. Esse estudo, no entanto, necessita ser feito de uma maneira compreensiva quanto às diferentes esferas da vida que são abarcadas pela liberdade – moral, política, jurídica e social -, e, no caso do direito, partir de premissas metodológicas sólidas quanto ao próprio fenômeno jurídico, sendo relevante a utilização de uma epistemologia e metodologia jurídicas comprometidas.
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2017.
BICCA, Luiz. O conceito de liberdade em Hegel. Revista Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 19, n. 56, p. 25-47, jan. 1992. Disponível em: http://faje.edu.br/periodicos/index.php/Sintese/article/view/1546/1897. Acesso em 17 maio 2019.
BILLIER, Jean-Cassien e MARYIOLI, Aglaé. História da filosofia do direito. Trad. Maurício de Andrade. Barueri: Manole, 2005.
CAMPELLO, Filipe. Do reconhecimento à liberdade social: sobre o “Direito da Liberdade” de Axel Honneth. Cadernos de Ética e Filosofia Política – USP, São Paulo, n. 23, p.185-199, jul. 2013. Disponível em: www.revistas.usp.br/cefp/article/view/74736/78328. Acesso em: 10 ago. 2018.
DORTIER, Jean-François (Dir.). Dicionário de Ciências Humanas. Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
FARALLI, Carla. A filosofia contemporânea do direito: temas e desafios. Trad. Candice Premaor Gallo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. Salvador: Juspidvm, 2013.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
HONNETH, Axel. O Direito da liberdade. Trad. Saulo Krieger. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
JAPIASSU, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
MASSAÚ, Guilherme. O Estado de direito e as dimensões da res publica. Curitiba: Prismas, 2016a.
MASSAÚ, Guilherme. O princípio republicano constituinte do mundo-da-vida no Estado constitucional cosmopolita. Ijuí: Unijuí, 2016b.
MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. 6 ed. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011.
MORENTE, Manuel Garcia. Lições preliminares de Filosofia. 8 ed. Trad. Guilhermo de la Cruz Coronado. São Paulo: Mestre Jou, 1980.
MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
PINZANI, Alessandro. Das Recht der Freiheit, de Honneth, Axel. Novos estud. - CEBRAP, São Paulo, n. 94, p. 207-237, Nov. 2012. Available from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002012000300014&lng=en&nrm=iso. Access on 23 Apr. 2018.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
REICH, Evânia. Honneth, Axel. Das Recht der Freiheit. Berlim: Suhrkamp, 2011. Griot – Revista de Filosofia, v. 7, n. 1, jun. 2013, disponível em: http://www2.ufrb.edu.br/griot/images/vol7-n1/resenha.pdf. Acesso em 20 abr. 2018.
ROSCHILDT, João Leonardo Marques. O princípio da igual liberdade em John Rawls: desdobramentos formais e materiais. Revista Intuitio, Porto Alegre, v. 2, n. 3, p. 164-179. nov. 2009. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/intuitio/article/view/5996/4553. Acesso em: 11 ago. 2018.
SCHACHTSCHNEIDER, Karl Albrecht. Freiheit in der Republik. Berlin: Duncker & Humblot, 2007.
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 16 ed. São Paulo: Malheiros, 1999.
SILVA, Marcos Luiz. A liberdade jurídica e suas patologias sociais segundo Honneth. Revista Opinião Filosófica, Porto Alegre, v. 7, n. 2, mar. 2017, p. 286-303. Disponível em: http://periodico.abavaresco.com.br/index.php/opiniaofilosofica/article/view/701. Acesso em: 10 ago. 2018.
1 Tais autores foram escolhidos devido aos contextos históricos distintos, sendo que Kant e Hegel pertencem a um contexto de forte influência do período iluminista, já Rawls e Honneth encontram-se em um contexto contemporâneo. Também, destaca-se que Kant e Rawls estão mais próximos entre si em face de suas teorias, assim como o pensamento de Hegel está para o de Honneth, enquanto “maior referência”.
2 Isso deve-se à incidência, principalmente, dos seguintes princípios ao interpretar dispositivos normativos constitucionais e/com infraconstitucionais: princípio da unidade da constituição e princípio da concordância prática com a constituição (HESSE, 1993, p. 26-27).
3 Corrente de pensamento que nasce nos anos 1930, quando Max Horkheimer passa a encabeçar o Instituto de Pesquisas Sociais fundado em 1923, em Frankfurt. Graças à sua iniciativa, vários intelectuais vão trabalhar juntos, entre eles Herbert Marcuse, Adorno, Erich Fromm. Suas pesquisas são marcadas por uma referência comum ao pensamento de Marx que, no entanto, é crítica e não dogmática (DORTIER, 2010, p. 229).
4 No sentido da prestação mínima dos direitos sociais, que, em essência, possibilita a pessoa potencializarem sua liberdade.
5 Não se trata restritamente da autonomia da vontade iluminista da igualdade formal (SCHACHTSCHNEIDER, 2007, p. 19-20). Mas diz respeito à autonomia da vontade formada a partir de um ambiente material adequado para o desenvolvimento da personalidade, ou seja, com aportes prestacionais do Estado social.
Este obra está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
ISSN: 2178-2466