Revista Direitos Culturais - artigo 1

A REPERCUSSÃO GERAL E TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

THE GENERAL REPERCUSSION AND HUMAN RIGHTS TREATIES IN BRAZIL

 

Eduardo Biacchi GomesI

Daniella Pinheiro LameiraII

 

I Faculdades Integradas do Brasil (UniBRASIL), Programa de Pós-Graduação em Direito do UniBRASIL, Curitiba, PR, Brasil. Doutor em Direito. E-mail: eduardobiacchigomes@outlook.com

II Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curibiba, PR, Brasil. Doutoranda em Direito. E-mail: daniellalameira@yahoo.com.br

 

DOI: http://dx.doi.org/10.20912/rdc.v14i32.2639

Recebido em: 10.05.2018

Aceito em: 25.02.2019

 

Resumo: A Constituição de 1988 consolidou no ordenamento jurídico brasileiro a observância dos direitos fundamentais, principalmente através do artigo 5º e o seu § 2º, que deve ser entendido como uma cláusula aberta para a incorporação dos Tratados de Direitos Humanos ratificados pela República Federativa do Brasil. Passados quase trinta anos desde o advento da Constituição de 1988, os jurisdicionados ainda encontram certos óbices na tutela e efetivação dos direitos fundamentais, principalmente quando pautados em tratados. Isso acarreta em um grande número de ações que tramitam nas Cortes e demoram para ter uma solução final. O presente artigo tem como premissa a análise do instituto da Repercussão Geral como mecanismo de efetivação dos Direitos Humanos, principalmente aqueles decorrentes dos Tratados ratificados pela República Federativa do Brasil. A pesquisa é doutrinária e jurisprudencial e utilizou-se a metodologia dedutiva e indutiva.

Palavras-chave: Jurisdição constitucional. Repercussão geral. Tratados internacionais. Direitos humanos. Democracia.

Abstract: The brazilian Constitution of 1988 consolidated a legal system according the observance of fundamental rights. Through the article 5 and paragraph 2, which should be understood as an open clause for the incorporation of human rights treaties ratified by the Federative Republic of Brazil. Almost thirty years after the Constitution of 1988, people still have certain obstacles to the protection and enforcement of fundamental rights, especially when they are based on treaties. We observe a substantial number of actions that are in the courts and the delay to have a final solution. This article has as premise the analysis of the institute of the General Repercussion as mechanism of effective Human Rights, mainly those stemming from the treaties ratified by the Federative Republic of Brazil. The research is doctrinal and jurisprudential and was used the deductive and inductive methodology.

Keywords: Constitutional jurisdiction. General repercussion class. International treaties. Human rights. Democracy.

Sumário: Introdução. 1. A adoção de filtros recursais como um fenômeno mundial decorrente da modernidade. 2. O direito pátrio e a observância dos Direitos Humanos. 2.1. A Repercussão Geral frente à dificuldade majoritária da jurisdição constitucional. 2.2. A necessidade de fundamentação x discricionariedade. Desafios da Corte. 2.3. Os amici curiae. 2.4. A Repercussão Geral e seu manejo democrático. Conclusão: O mecanismo da Repercussão Geral como instrumento de se buscar a observância dos Tratados de Direitos.

Introdução

Com o desenvolvimento tecnológico e a quebra das fronteiras, cada vez mais nota-se a redução do papel da soberania do Estado, antes entendida em seu caráter absoluto. Com a consolidação do comércio internacional, dos Direitos Humanos e das Organizações Internacionais, como é caso da Organização das Nações Unidas (ONU), o Estado não pode mais atuar isoladamente e se insere na ordem global mundial.

Decorre daí que o ordenamento jurídico pátrio não é mais capaz de fazer frente aos novos desafios da sociedade contemporânea e, muitas vezes, se utiliza da jurisprudência de tribunais internacionais (Corte Interamericana de Direitos Humanos) ou de tribunais estrangeiros, como forma de fundamentar as suas decisões. Trata-se do diálogo entre Cortes.

O presente artigo tem por objetivo revelar uma tendência dos Tribunais Superiores que compõem as estruturas de sistemas jurídicos contemporâneos em nível mundial (MARINONI, 2011, p. 42; BARROSO, 2011, p. 99), como reação à crescente atuação e assoberbamento das atividades do Judiciário.

Nesse sentido, a adoção do sistema de seleção e filtragem pelo direito pátrio vem merecendo elevada atenção da comunidade acadêmica, principalmente, com a importação do instituto do writ of certiorari advindo pela Emenda Constitucional 45/2004, sendo regulamentado pela Lei 11.418/2006 e pelo Regimento Interno do STF.

Por outro lado, também tem por objetivo analisar o processo de “incorporação” dos Tratados de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil e a consequente dificuldade de enfrentamento e releitura do direito interno à luz das normas internacionais e decisões dos tribunais internacionais, como, por exemplo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Para tanto, torna-se pontualmente1 relevante essa perspectiva em sede de controle difuso de constitucionalidade, na medida em que essas normas estarão, no processo de subsunção fato/norma, sendo contextualizadas, ou seja, vivenciadas pelos casos concretos em trâmite sob a jurisdição brasileira, assim ganhando notória repercussão fática e jurídica, fomentando a aplicação e consolidação de tais normas, inclusive, por vezes, com a superação de entendimentos da Corte Constitucional acerca do direito pátrio (ex.: reconhecimento da ilicitude da prisão civil de depositário infiel).

Assim, cabe indagar, através de um método de abordagem descritivo-dedutivo, a importância da repercussão geral como mecanismo de fortalecimento dos Direitos Humanos previstos em Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil. Desse modo, o propósito do presente artigo é analisar a atuação da Corte Constitucional Brasileira em controle concreto de constitucionalidade no sentido de corroborar a efetivação dos direitos humanos ratificados pelas leis internacionais.

Para tanto, buscou-se realizar uma pesquisa no site do Supremo Tribunal Federal sobre os casos que envolvem Repercussão Geral, de forma a evidenciar que a nossa Corte constitucional ainda é tímida em relação a adoção da tese da Repercussão Geral, como forma de mecanismo de fortalecimento dos Direitos Humanos por parte do Poder Judiciário.

1 A adoção de filtros recursais como um fenômeno mundial decorrente da modernidade

Com a nova ordem mundial, advinda do Pós-Guerra e a consolidação dos Direitos Humanos em seu plano internacional, tornou-se cada vez maior a preocupação no tocante a proteção aos Direitos do Homem, tanto em âmbito global (ONU), como em âmbito regional (como, por exemplo, o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos). Neste plano, surge o chamado diálogo entre jurisdições em sua dupla dimensão.

De um lado cabe ao Estado, através do Judiciário, aplicar os Tratados que versam sobre Direitos Humanos. Na hipótese de omissão do Estado, leia-se: juiz: a jurisdição internacional, como, por exemplo, o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, através da Corte IDH, poderá atuar.

A consolidação de um capitalismo globalizado na “contramão” da efetivação de Direitos Fundamentais e Humanos intensificou a insatisfação do jurisdicionado, culminando com o processo de massificação das demandas, resultando, sobremaneira, com a sobrecarga de ações no Poder Judiciário.

Nesse sentido, o acesso à justiça passa a ser não apenas um direito social fundamental, mas o ponto central da moderna processualística, assumindo o Judiciário um papel crucial para a efetivação de Direitos Fundamentais Humanos, de modo a pôr em “xeque” a credibilidade do Judiciário e a solidez dos Estados Democráticos.

A reconstitucionalização dos países da Europa, a queda dos regimes ditatoriais na América Latina, o surgimento dos Estados Sociais, a massificação da sociedade, e ainda, a polêmica judicialização da política (CLÈVE, 2014, p. 190), são alguns dos notáveis fatos históricos que evidenciaram a notória perda e consequente necessidade de dar-se efetividade aos direitos fundamentais inseridos nas cartas políticas democráticas do século XX, vivendo-se, atualmente, o que se denomina pela tensão entre constituição e realidade constitucional.

É nesse contexto de fragilidade e enorme sobrecarga de suas atividades que o Judiciário do século XXI afasta-se de seu verdadeiro papel de Corte Suprema, ou seja, de inovar e passar a reconhecer a perspectiva de novos direitos. Há que se ressaltar que a inovação, por parte do Judiciário, deve ocorrer através da consciência dentro do Poder, quanto a necessidade de aplicação dos Tratados de Direitos Humanos e o consequente cumprimento dos compromissos assumidos pelo Brasil, perante à comunidade internacional.

Com o inevitável fenômeno axiológico e de “abertura” das constituições (CASTRO, 2003, p. 35), o que se verifica é uma incoerência jurídica marcada pela descaracterização do juiz civil law, sendo certo que a previsibilidade e segurança do direito construído no commow law, por meio da técnica dos precedentes, vem demonstrando, aparentemente, estar em maior compasso com a modernidade.

A base desse constitucionalismo estadunidense surgiu na idade moderna, o que a doutrina denominou de um período de “eclipse da constituição” (FIORAVANTI, 2001, p. 33). A atuação dos Englishmen (MARINONI, 2009, p. 18) ignorou por séculos, sendo que o stare decisis e rules of precedent (MARINONI, 2009, p. 17-18) surge apenas no final século XIX, especialmente os precedentes vinculantes ou biding precedents (MARINONI, 2009, p. 11-58), promovendo-se, então, uma significativa evolução do commow law a conferir maior segurança jurídica (MARINONI, 2009, p. 54; CANOTILHO, 2000, p. 256)2.

Em que pese tenha como herança o sistema da commow law, o direito norte-americano não aderiu à característica basilar do direito britânico relativa à supremacia do Parlamento Inglês, pois ainda que havendo um legislativo de atuação notável (MARINONI, 2009, p. 19), reservou ao Judiciário papel de “intérprete qualificado e final” da Constituição (BARROSO, 2011, p. 66)3.

Já o sistema da civil law, de origem do antigo direito francês e do ius comune, após os movimentos iluministas do século XVIII é redefinido com uma intensa adstrição do juiz ao texto da lei e uma notável subordinação ao Parlamento, o que jamais ocorreu na commow law (MARINONI, 2009, p. 17), provocando uma dissonância com a realidade do neoconstitucionalismo (BARROSO, 01.06.2010), ou da nova ordem constitucional, do pós-Segunda Guerra Mundial.

Neste sentido, importante frisar que torna-se importante a abertura do Direito Constitucional ao Direito Internacional e aos Direitos Humanos e vice-versa. Ressalte-se que a visão entre as ordens jurídicas interna e a internacional, devem ser vistas não de formas estanques ou segmentadas, mas ordenamentos jurídicos que se comunicam e que se retroalimentam, sob o enfoque de uma interdependência.

Nos EUA, a competência constitucional da Supreme Court foi extremamente fortalecida após 1988, através da introdução do critério de seleção do writ of certiorari (HARNET, 2000). Afirma Edward Harnet (2000) que o marco do fortalecimento do certiorari é a Judge’s Bill, em razão da necessidade de seleção dos casos mais importantes, haja vista que a Corte não podia ser responsável pela uniformização de todas as questões no território estadunidense.

E ainda, segundo o autor, com o apoio da Suprema Corte Americana após a aprovação legislativa, surpreendentemente, o certiorari passa a ser aplicado de modo a tornar-se um mecanismo amplamente discricionário na agenda da Corte, passando a decidir sob a ótica de “questões particulares”, e não “casos particulares” (HARNET, 2000).

No sistema estadunidense de stare decisis (MARINONI, 2011, p. 403; MITIDIERO, 2013, p. 106), as decisões da Supreme Court em matéria constitucional vinculam todos os juízes e membros, com exceção da hipótese de o precedente ser revogado por se encontrar ultrapassado total (overruling), ou parcialmente (overturning) e ainda, na hipótese de se estar em caso diverso daquele já examinado (distinguishing), a fim de que haja respeito aos precedentes, mesmo havendo alteração dos membros daquela Corte.

Como contraponto do sistema estadunidense oriundo da common law há o sistema de filtragem composto pelos países da civil law (FAVOREU, 2004, p. 53).

Na Alemanha (SILVESTRI, 2001, p. 107), deverá estar presente quando da análise da significação fundamental (grundsätzliche Bedeutung) através do recurso (revision), o requisito Verfassungseschwerde, impondo-se um tom discricionário em razão da importância da questão constitucional estar correlacionada à violação de direitos fundamentais. Na Áustria (SILVESTRI, 2001, p. 107), com caráter semelhante, o critério para seleção a conceder autorização pelo Tribunal (Revisionsgericht) também é adotado em razão da uniformização da interpretação da lei e ao desenvolvimento do direito.

Já o recurso de Amparo será recebido pelo Tribunal Constitucional Espanhol (TARUFFO, 2011, p. 102-104; LA RÚA, 1991, p. 179) no caso de violação a direitos fundamentais e liberdades públicas previstas naquela Constituição. Aqui, de forma mais conservadora, o legislador buscou exaurir todas as hipóteses de ocorrência da repercussão geral através de um rol taxativo, a fim de que a Corte espanhola esteja absolutamente vinculada à lei.

No Japão, também se adotou uma espécie de filtro vinculado à Suprema Corte, o qual deverá estar relacionado à matéria constitucional ou hipótese de erro relativo aos procedimentos elencados no Código, caminhando para os moldes do certiorari (DANTAS, 2008, p. 97).

Já na Argentina (GOMES JR., 2005, p. 5; DANTAS, 2008, p. 6), também adotado o mecanismo de filtragem denominado iuris de gravedad institucional baseado nas hipóteses de transcendência do interesse individual (LA RÚA, 1991, p. 179), em que a Suprema Corte da Nação também possui uma análise discricionária das causas.

Isso pode ser analisado, inclusive, quando da adoção pelos sistemas de seleção e filtragem realizados em diversos países de diferentes tradições, tanto no âmbito da Europa continental, bem como no estadunidense, e ainda, posteriormente, da América Latina, o que demonstra que a opção pelos filtros recursais é um fenômeno que revela uma tendência mundial de superposição das Cortes Supremas visando prestação jurisdicional qualitativa/quantitativa que tenha por objetivo a pacificação dos conflitos de maneira uniforme para todos aqueles em situação idêntica.

Como forma de melhor ilustrar a abordagem até aqui elaborada, dentro da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como ela é a última e a verdadeira intérprete do Pacto de San José da Costa Rica, é de sua competência exercer o controle de convencionalidade, no sentido de verificar o cumprimento dos direitos ali elencados, pelos Estados.

Na jurisdição dos Estados, os juízes realizam tal controle de convencionalidade, no sentido de aplicar os Tratados de Direitos Humanos, quer seja em controle concentrado, quer seja em controle difuso. Trata-se aqui do denominado controle de convencionalidade horizontal e que pode ser representado pelos controles de constitucionalidade concentrado e o difuso.

Portanto, como afirma Luiz Guilherme Marinoni (2011, p. 100), o que se observa na atualidade é um movimento de aproximação entre o juiz da common law e civil law, de modo a promover a uniformização da jurisprudência e um fortalecimento da missão atribuída pelo legislador constituinte acerca da missão das Cortes Superiores no Estado Social e Democrático.

2 O direito pátrio e a observância dos Direitos Humanos

Com o advento da Carta Magna de 1988, o fortalecimento das instituições foi crucial para o restabelecimento da democracia, sobretudo em razão de um longo período sob o regime militar. Neste sentido, o próprio artigo 4º da Constituição Federal de 1988, e o artigo 5º, §§ 2º e 3º, reafirmam a necessidade de a República Federativa do Brasil observar os Tratados de Direitos Humanos.

Assim, de acordo com a ordem constitucional vigente, o Brasil acompanha, ainda que timidamente, a jurisprudência dos principais tribunais constitucionais, no sentido de garantirem a eficácia plena dos Tratados de Direitos Humanos, dentro de suas jurisdições. Não raras as vezes, o Supremo Tribunal Federal, ao fundamentar as suas decisões, se utiliza de jurisprudência dos Tribunais internacionais e Tribunais estrangeiros, demonstrando a existência de um verdadeiro diálogo cruzado entre os juízes.

É sob o fenômeno de abertura constitucional que esses direitos se proliferam, surgindo inúmeros questionamentos sobre os limites da atuação de um adormecido Judiciário em prol da realização da Constituição – e que corroboram para um aumento da tensão entre constituição e realidade –, sendo que a interpretação do texto constitucional será influenciada por critérios valorativos assim eleitos pela sociedade4.

A função desempenhada pelo Supremo Tribunal Federal ainda diverge, em muito, das missões a ele incumbidas. E tendo como exemplo o sistema alemão de repartição de competências (MITIDIERO, 2013, p. 125), com a criação do Superior Tribunal de Justiça no pós-1988, imaginava-se que esse cenário sofreria mudanças. No entanto, o que se percebeu ao longo desses 31 (trinta e um) anos de Constituição em vigor, foi um enorme aumento da sobrecarga na estrutura judiciária de ambas as Cortes.

Nesse cenário, a Corte Constitucional possui a prerrogativa constitucional de “Guardiã da Constituição”, sendo que as lides que alcançam esse órgão possuem enorme especificidade, diferentemente da Corte de Justiça que possui a missão constitucional de dar unidade ao direito federal e pacificar questões federais relevantes e ainda divergentes no âmbito dos Tribunais locais.

Em tese, a estrutura hierárquica e principiológica do Judiciário brasileiro (BARBOZA, 2011, p. 59) garante não apenas uma ampla possibilidade de recursos, mas, sobretudo, o amparo de duas Cortes Supremas que operam de modo a unificar entendimentos e solidificar formas de solução de litígios, uma em nível constitucional, e outra em nível federal, de modo a propiciar mais confiança e segurança jurídica.

O controle difuso vai perdendo a sua identidade face ao assoberbamento das atividades judiciárias, quando, então, resolveu-se dar uma “objetivação” (MENDES, abr./jun. 2004) ao recurso extraordinário.

Nesse contexto, a exemplo do direito comparado, tornou-se imperiosa a criação de alguns institutos no sentido de reordenar o Judiciário brasileiro, tal como a adoção de mecanismos advindos do sistema estadunidense de modo a reordenar a atuação desse órgão excelso, como, por exemplo, o modo de atuação criativa do judge-made-law (MARINONI, 2009, p. 50; BARBOZA, 2011, p. 15), e, ainda, o instituto do writ of certiorari introduzido através da Emenda Constitucional 45/2004.

Inicialmente questionada a constitucionalidade desse dispositivo por alguns (ALBUQUERQUE DE LIMA, 2008, p. 200), grande parte fundamenta-se no Direito pátrio e optou por não se pronunciar sobre o tema, aguardando a regulamentação desse mecanismo, o que veio a ocorrer através do advento da Lei 11.418/2006 e das emendas constantes no Regimento Interno do STF. Em que pese o respeitável entendimento no sentido de que a referida Emenda Constitucional seja dotada de inconstitucionalidade, essa tese não foi adotada pela Egrégia Corte.

A doutrina brasileira começa a se pronunciar sobre o tema, sustentando a necessária aplicação do referido mecanismo no direito brasileiro, a exemplo do direito estadunidense, assim entendendo Marinoni (2011, p. 136) e Daniel Mitidiero (2008, p. 34) que uma vez presente o binômio “relevância e transcendência”, além dos outros requisitos, é direito da parte ter o Recurso Extraordinário admitido.

Passados aproximadamente cinco anos da regulamentação desse instituto no Direito pátrio, as estatísticas realizadas anualmente começaram a apontar uma saída eficaz para o desafogamento do Supremo Tribunal Federal, de maneira a tornar o requisito da repercussão geral um instituto necessário à sistemática recursal brasileira (DANTAS, 2008, p. 97)5.

No entanto, além da análise de estatísticas, é necessário que seja realizado um enfrentamento desse instituto de modo a se verificar se esse vem cumprindo a finalidade de devolver ao STF a missão de Corte de vértice (MITIDIERO, 2013, p. 94), sem que haja o comprometimento de quaisquer garantias relativas ao acesso à justiça.

Nessa linha, seria legítimo priorizar-se uma Corte a determinados julgamentos num país tradicionalmente da civil law cujos processos políticos ainda estão em constante formação e transformação? A adaptação do writ of certiorari de origem da common law ao direito pátrio estaria envolvida de certo elitismo, corroborando-se para um desvio de finalidade e abuso de poder ainda recorrente num país recém-democrático?

2.1 A Repercussão Geral frente à dificuldade majoritária da jurisdição constitucional

É preciso uma forte justificação para que não se acuse a repercussão geral de estar sendo (ser) elitista ao realizar a escolha dos casos que irá examinar e se pronunciar, sobretudo, em razão da forma que essa análise foi definida pela lei, especialmente pelos critérios da pertinência temática e a relevância social, o que numa primeira análise, poderia se interpretar em favor de uma democracia majoritária, ou seja, em favor da elite.

Nessa linha, a acusação de elitismo seria sob dois aspectos: uma em que se aponta para um elitismo clássico, com invólucro socioeconômico, e outro elitismo jurídico, mais sutil em que se elege determinadas matérias objeto de litígios.

Ora, uma “Constituição Cidadã” não poderia pactuar com nenhuma forma de elitismo, sob pena de ferir os ditames maiores da Constituição como igualdade, liberdade, dignidade da condição humana etc.

Por outro lado, como bem ressalta Elisabetta Silvestri (2001, p. 99), qualquer discurso envolvendo o fenômeno da restrição jurisdicional provocada pelos mecanismos de filtragem pressupõe que se reflita sobre qual a missão de uma Corte no sistema Judiciário de um país. Pois, falar dessa seleção de casos somente tem sentido se se admite que a Corte seja chamada a realizar no ordenamento uma função bem específica e que esteja relacionada com o modelo de Corte Suprema que o ordenamento assim adotou.

Segundo Silvestri (2001, p. 108-109), ao adotar-se essa perspectiva, prestigia-se uma espécie de duas concessões pelas Cortes. A primeira, como sendo uma funzione privata que permite o reexame de todos os litígios envolvendo casos concretos, e a segunda, uma funzione pubblica que, a partir do caso concreto, impõe adequada interpretação da norma e necessária uniformização do texto constitucional para os casos idênticos (TARUFFO, 2011, p. 14), abrindo-se oportunidades para inéditas discussões, e sem que haja obstáculos ao acesso à justiça.

Para Michele Taruffo (2011, p. 13-16), essa função privada de uma Corte Suprema baseada na solução de singulares e específicas controvérsias, orientada principalmente pela tutela do jus litigatoris, está deixando de ser considerada para tender-se a uma preeminente função pública baseada na tutela do jus constitutionis, ou ainda, uma espécie de nomofilachia através do precedente, em razão da necessidade de promover-se uma eficácia dos precedentes de maneira a dar coerência e continuidade das orientações jurisprudenciais.

É inegável que tal instituto fortalece a tese estadunidense da força obrigatória dos precedentes vinculantes em que tais julgamentos assumem uma dimensão horizontal e vertical, vinculando, sobretudo, além dos órgãos inferiores, os membros da própria Corte, o que requer um maior grau de amadurecimento do Judiciário brasileiro.

Pois, a máxima do stare decisis et non quieta movere (MITIDIERO, 2013, p. 105) tem por finalidade garantir a estabilidade e confiabilidade das decisões, o que particularmente no Direito pátrio ainda é visto com certo grau de receio em razão de uma recorrente ausência de confiança nos precedentes, principalmente num país cuja democracia foi recentemente consolidada, e que os juízes ainda, usualmente, passam a dar um tom pessoal à Constituição.

No entanto, como lembra Marcelo Neves (2010, p. 201), à beira da discussão se os institutos de direito comparado podem ou não serem adaptados – o que estará condicionado a vários fatores –, o que verdadeiramente importa, e será mais válido, é refletir sobre as deficiências que impedem o Direito pátrio de desenvolver uma teoria constitucional que caminhe em decisões juridicamente consistentes e socialmente adequadas, a fim de que haja uma clara posição consubstanciada de razões aliadas à transparência.

Nesse sentido, é preciso que sejam analisadas e pontuadas algumas questões de ordem procedimental em relação à aplicabilidade do instituto da repercussão geral no direito brasileiro, a fim de que seja afastada qualquer alegação de uma possível restrição ao acesso à justiça e por consequência de um mecanismo que favorece uma democracia majoritária, o que violaria o maior direito de todos os Direitos Humanos (LAFER, 1988, p. 166), ou ainda, na expressão de Hanna Arendt, “o direito a ter direitos” qual seja, o direito de ação. É o que se analisará a seguir.

2.2 A necessidade de fundamentação x discricionariedade: desafios da Corte

Utilizando-se das expressões utilizadas por Marinoni e Mitidiero (2013, p. 20) como o binômio da “relevância e transcendência”, além da importância jurídica, política, social e econômica, a questão deverá ser capaz de refletir, nas relações em sociedade ou de certo grupo ou segmento desta, sendo o aspecto “geral” imprescindível para o reconhecimento da repercussão geral.

Nesse sentido, o que poderia ser entendido como sendo relevante? E o que não seria relevante? Por óbvio que, para a parte recorrente a questão será relevante do seu ponto de vista, pois do contrário não o levaria a ingressar no Judiciário, quiçá ao último grau de jurisdição.

Nesse passo, a dita “relevância” então não carregaria uma análise subjetiva a envolver suas concepções valorativas?

Pois bem. A lei determina que sendo os Ministros do STF exclusivamente competentes para detectar as causas de maior relevância que necessitam ser pacificadas, admitindo-se certo grau de subjetividade desses julgadores em prol da qualidade da prestação jurisdicional.

Assim, na prática, não há como negar certa discricionariedade na análise do referido instituto, o que deverá ser sopesado com cautela pelos Ministros do STF, principalmente em razão da decisão pela negativa do reconhecimento da repercussão geral acarretar um efeito “dominó”, ou ainda, um efeito “panprocessual” para todas as demais causas cujas controvérsias (e não matérias) sejam idênticas.

Pois, se o legislador entendeu por bem impor requisitos para o reconhecimento da repercussão geral, isso significa que qualquer decisão deverá ser fundamentada, ainda que certo tom de discricionariedade, o que é inerente à carga valorativa da decisão a ser proferida.

Por outro lado, em que pese seja o entendimento majoritário seja pela obrigatoriedade de motivação da decisão acerca do juízo de admissibilidade da repercussão geral, há orientação de peso, como a de Ovídio Baptista da Silva (1999, p. 481), sustentando que o melhor caminho a ser seguido pelo Supremo Tribunal é a seleção discricionária dos recursos a revelar uma providência de caráter “pedagógico” e, nas palavras do autor, deve ser utilizada para coibir o “perverso sistema recursal brasileiro”.

Nesse sentido, revela-se absolutamente crucial que o leading case seja o melhor caso concreto a retratar a questão, não apenas sob o aspecto material, mas também, sob o aspecto processual, de modo que haja um esgotamento do debate e um refinamento da matéria objeto do recurso, o que invariavelmente não ocorre na prática forense, pois em diversas oportunidades o caso paradigma não se enquadra nesse conceito.

Ademais, no que diz respeito a essa seleção de casos concretos, deve também haver uma “sinalização” do Supremo Tribunal acerca do leading case em relação à comunidade jurídica, à imprensa, às entidades representativas de classes, aos amici curiae, inclusive da Ordem dos Advogados do Brasil, e Ministério Público, no intuito de promover-se um debate em homenagem à garantia do devido processo legal (THEODORO JR, 2007, p. 5).

Pois, repita-se um leading case, deve compreender todas as formas de argumentação possíveis e pertinentes, pois, certamente, a solução desse precedente estará influenciando milhares de outras demandas cuja controvérsia seja idêntica.

2.3 Os amici curiae

Revela-se o amicus curiae como sendo aquele que auxilia o juiz nas causas que envolvam determinados valores inseridos na sociedade brasileira, através da Constituição da República, sendo, na prática, notável sua participação no amadurecimento de questões postas em exame, principalmente aquelas em que se exige um técnico com a expertise necessária sobre determinada questão.

Em relação à natureza jurídica do instituto, há grande controvérsia na doutrina em razão das múltiplas faces que o amicus curiae vem ganhando atualmente. Para alguns (DINAMARCO, 2005, p. 394), não se trata de ser parte, sendo “órgão ou entidade” de auxílio. Para outros (BUENO, 2008, p. 131), trata-se de um terceiro que assume a figura de poder da parte sem o ser.

Há quem entenda (DIDIER JR, 2005, p. 185), que o amicus curiae nada mais é do que um perito em matéria de direito, e, ainda, há por fim, quem sustente (CABRAL, 2004), que a intervenção de terceiros corresponde ao ingresso de um terceiro na qualidade de assistência.

De todas, parece ser a melhor a posição de Didier Jr. (2005, p. 185) no sentido de que os amici curiae não se equiparam ao terceiro, devendo ser analisada como um auxiliar do juízo em matéria de direito. Nessa mesma linha é o posicionamento de Marinoni e Mitidiero (2008, p. 42), ao sustentarem que a figura se assemelha a um auxiliar da justiça.

Assim, em prol da pluralização do debate, o que vem sendo permitido perante o Plenário do Supremo Tribunal é a apresentação de memoriais e a possibilidade de sustentação oral, o que, nas palavras do Ministro Gilmar Mendes (2004, p. 346-347), “confere um processo colorido diferenciado, emprestando-lhe um caráter pluralista e aberto, fundamental para o reconhecimento de direitos”.

Segundo Thais Catib de Laurentiis (2007), um ponto bastante ressalvado pelo Ministro Marco Aurélio Mello é no sentido de que a atuação do amicus curiae reflete a complexidade da causa, o que justifica a presença do expert, daí a necessária fundamentação quando do seu ingresso. Trata-se de um ponto bastante relevante e que deve merecer muita atenção dos Ministros, seja no âmbito do controle difuso ou concentrado.

Afirma Damares Medina (2005) que o “amicus curiae é ferramenta adicional de defesa das partes”, pois esse quando ingressa nos autos, possui efetivamente um caráter partidário em favor de uma delas, sendo um grande fator de influência, desequilíbrio ou reequilíbrio das relações quando do julgamento final, e aumentando sobremaneira as chances de êxito da parte.

Para Medina (2005), isso reproduz o ocorrido na década de 1960 no direito estadunidense caracterizado por “legítimo lobby judicial”, o que não lhe retira a sua legitimidade, mas também não propicia necessariamente um processo democrático, sugerindo, em contrapartida, a realização de audiências públicas, o que vem sendo realizado no âmbito do STF.

No entanto, para José Adércio Leite Sampaio (in FRANKENBERG, 2009, p. 537), as audiências públicas são de certo modo medidas “insuficientes” e “elitistas” não tornando o processo legitimamente democrático, o que há de se levar em conta em razão da magnitude das instituições a promover o “patrocínio” do amicus curiae, ainda que tal debate fosse amplamente divulgado.

Portanto, mesmo com advertências da doutrina, a atuação dos amici curiae vem se revelando uma figura importante na construção e pluralização do debate por diversos setores da sociedade, especialmente numa “visão procedimentalista” (HABERMAS, 2003, p. 142) em que cada cidadão é parte legítima para reivindicar direitos no processo democrático.

No entanto, é salutar que haja uma maior transparência quando da atuação dessa figura, especialmente quanto aos eventuais patrocínios e interesses no deslinde da causa, o que certamente dosaria desequilíbrio porventura existente entre as partes e fortaleceria o debate público.

2.4 A Repercussão Geral e seu manejo democrático

Numa “Constituição aberta”, a ampliação do discurso na arena judicial revela-se crucial à participação dos cidadãos sob um nível satisfatório de condições a priori, quando do processo de tomada de decisões, bem como o fomento das discussões através dos meios de comunicação e das instituições públicas e privadas e diversos segmentos, em que o verdadeiro protagonista das discussões não é o Judiciário, e sim a sociedade. Tal aspecto revela-se extremamente relevante inclusive dada a flagrante desigualdade que permeia as várias regiões do país6.

Nessa perspectiva, a estabilização do entendimento da Carta e fortalecimento de uma democracia se perfaz através de um discurso deliberativo (HABERMAS, 2003, p. 142) de uma sociedade engajada nesses processos de “escolhas provisórias7, através de consensos mais concretos, valorizando-se os dissensos sempre “em favor da realização constitucional”, e ainda, conferindo maior legitimidade às decisões do Judiciário enquanto órgão não eleito pelos cidadãos, sendo esses os intérpretes dinâmicos (HABERLE, 1997, p. 24) da Constituição.

E nesse processo de escolhas, o Judiciário, como coadjuvante, passa a ver suas decisões à luz da teoria do “Direito como integridade” de Ronald Dworkin, em que os Ministros do Supremo Tribunal devem fundamentar suas decisões numa espécie de “romance em cadeia”, em que a ordem principiológica regerá o fundamento dessas decisões, utilizando-se dos argumentos dos julgamentos anteriores como uma espécie de alinhamento para novas decisões, e assim, evoluir, gradualmente, eventual precedente (overruling), ou ainda, criar novo precedente (distinguishing). Pois, se o Direito nasce e evolui a partir das transformações humanas (fato/valor/norma) (REALE, 1983, p. 586), é crível que essa linha argumentativa possa também avalizar decisões qualificadas como leading case ou “paradigma”.

E com um Direito mais dúctil de Gustavo Zagrebelky (1998), simultaneamente ao processo de abertura, há que se ter um tribunal responsável pela última palavra acerca da Constituição, e o que leva à verticalização (CLÈVE, 2014, p. 364) do processo brasileiro como reflexo de um fenômeno mundial decorrente das constituições axiológicas. E nessa nova ordem, segurança jurídica não se alcança apenas através de estruturas jurídicas, mas principalmente através de uma necessidade de fechamento do sistema agora para o órgão de cúpula, o Supremo Tribunal Federal.

Uma vez conquistado respeito e confiança da sociedade, a repercussão geral não apenas promove facetas relativas à instrumentalização e racionalização das atividades no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, mas também à própria aplicação dos princípios democráticos e que, numa hipótese, poderiam afrontar o acesso à justiça, mas que, nessa perspectiva, não prospera.

Nas palavras de Clève (2014, p. 468), “temos um novo Judiciário, do ponto de vista institucional. Um Judiciário comprometido com a Constituição”. Ora, se é assim – e assim deve ser –, uma Corte Suprema jamais pode se furtar de seu papel constitucional fruto do poder constituinte originário que o representa, não podendo ser o argumento de um possível desvio de finalidade ou abuso de poder que possa obstaculizar ao desenvolvimento da atuação do Supremo Tribunal Federal, o que, inclusive, deverá ficar ao encargo dos órgãos e instituições com atribuição e competência para tal, ressaltando-se aqui a expressiva atuação do Conselho Nacional de Justiça (sendo esse também concebido através da Emenda Constitucional 45/2004), o que tem sido notável pela sociedade.

Desse modo, não há como deixar de concluir que o instituto da Repercussão Geral vislumbra-se como um instituto necessário à sistemática recursal brasileira, sendo absolutamente necessário e legítimo quando utilizado através de uma perspectiva enquadrada na visão clássica de “abertura” e “fechamento” (CLÈVE, 2014, p. 550) entre democracia e constitucionalismo, e ainda, quando essa atividade de reconstrução da interpretação da Constituição tiver por base o “processo, a publicidade e fundamentação” (GONÇALVES, 2004, p. 550), ainda que nessa com certo tom de subjetividade do julgador, mas que é inerente à missão/função de uma Corte Suprema, bem como às características do referido instituto implementado na legislação brasileira.

Mas, ainda que manifestamente favorável pela sua adoção quando do seu enfrentamento, algumas observações se fazem necessárias e devem ser pontuadas visando o manejo legítimo desse instituto.

Conclusão

A doutrina não vem tendo o tom crítico necessário ante o crescente número de Recursos Extraordinários paralisados e o consequente sobrestamento de todos os recursos cuja controvérsia seja idêntica, à luz do que atualmente dispõe o § 1º do artigo 543-B do antigo Código de Processo Civil. E ainda, com a vigência da nova sistemática processual, não apenas os recursos, mas todas as demandas cujas controvérsias idênticas ficarão sobrestadas até o julgamento de leading case, segundo o que dispõe o § 5º do artigo 1.035 do CPC/2015, o que demonstra a importância desse instituto para o desafogamento da justiça perante o STF que, poderá ser um grande trunfo a corroborar para o desinchaço da máquina, e obedecendo os critérios da celeridade/qualidade (WAMBIER, 2009).

Dessa forma, como vem sendo salientado por Luiz Roberto Barroso, há necessidade de haver uma agenda com o comprometimento dos ilustres ministros no sentido de incorrer a agenda do Supremo para as próximas décadas8. E a agenda, precisa não ser em relação a todos os temas que envolvem os leading cases.

Portanto, os efeitos práticos acerca da adoção do referido instituto demonstram a necessidade de uma profunda reflexão desse órgão excelso acerca de sua missão enquanto Corte Constitucional. Seja como for, é necessário que o Supremo Tribunal Federal utilize o importante mecanismo da Repercussão Geral como um instrumento apto e fundamental a redefinir a atuação do Supremo Tribunal Federal, sobretudo como órgão de cúpula com a missão de acolher Direitos Fundamentais e Humanos à luz dos anseios da sociedade brasileira.

Fazendo uma retrospectiva acerca da atuação do STF (BARROSO; OSÓRIO, 2015)9, verifica-se que os Recursos Extraordinários são fontes riquíssimas de evolução de pensamento do STF na perspectiva dos Direitos Fundamentais, sendo que, do mesmo modo, a dita análise da Repercussão Geral também está inserida na égide dos Tratados internacionais. Todavia, vale a pena destacar que nos casos em Repercussão Geral, analisados ou admitidos pela Corte Suprema, são pouquíssimos aqueles que se baseiam nos Tratados de Direitos Humanos (STF – Jurisprudência).

Vale destacar, ademais, que um dos recentes casos admitidos em sede de Repercussão Geral e que envolve o Pacto de San José da Costa Rica, 1969 (pendente de julgamento), versa sobre a possibilidade de candidatura avulsa (ARE 1054490) (STF – Processo).

Assim, caracteriza-se a Repercussão Geral como sendo um novo pressuposto recursal inserido pelo constituinte derivado na via extraordinária, que se perfaz segundo Marinoni e Mitidiero (2008, p. 37), através de uma análise “qualitativa/quantitativa”, tendo por finalidade dar uma nova roupagem ao delimitar o âmbito da competência em sede de controle difuso, promover um julgamento equânime em controvérsias idênticas, reduzir as atividades da máquina, e ainda, redirecionar a atuação do Supremo Tribunal Federal quando da análise dos casos de notável relevância e consideráveis reflexos à sociedade.

Ademais, a Repercussão Geral somente será adequada ao sistema jurídico brasileiro se estiver absolutamente comprometida com a tutela dos direitos fundamentais, e aqui, leia-se, uma tutela proativa (MARINONI, 2011a), no sentido de abarcar novas situações jurídicas ainda não reconhecidas ou pacificadas pelo STF, o que não interessa apenas ao indivíduo lesado, mas a toda sociedade, e que reforçará o verdadeiro papel de uma Corte de paradigma.

Nessa perspectiva, a estabilização do entendimento da Carta e fortalecimento de uma democracia se perfaz através de um discurso deliberativo (HABERMAS, 2003, p. 142) de uma sociedade engajada nesses processos de “escolhas provisórias”, através de consensos mais concretos, coerentes, valorizando-se os dissensos sempre “em favor da realização constitucional”, e ainda, conferindo maior legitimidade às decisões do Judiciário enquanto órgão não eleito pelos cidadãos, sendo esses verdadeiros intérpretes da Constituição (HÄBERLE, 1997, p. 24).

Pois, a verdade é que quando se fala em hard cases, ou casos difíceis e que comprometem escolhas relativas aos Direitos Fundamentais no âmbito da jurisdição constitucional, as teorias de justiça precisam ser mais modestas, já que a superação de paradigmas se tornará algo não tão extraordinário, e o que sempre fará parte da realidade constitucional em razão da evolução dinâmica da humanidade em todos os segmentos10.

Assim, não há como negar que o advento da Repercussão Geral conduz a abstrativização do controle difuso concreto de constitucionalidade como um fenômeno inexorável, em prol da “eficiência e da economicidade” (GONÇALVES, 2004, p. 519). No entanto, deverá, sobretudo, estar comprometido com uma visão de reconstrução interpretativa (GONÇALVES, 2004, p. 520) da Constituição comprometida com os Direitos Fundamentais, e o que levará o referido instituto à clara demonstração de fortalecimento do princípio da igualdade na sua maior acepção, e como corolário da dignidade da condição humana, este sendo o centro normativo das constituições democráticas (HESSE, 1991, p. 15).

Assim, por todas as razões expostas, é de se concluir que a Repercussão Geral é um instituto necessário e adequado à sistemática recursal brasileira quando utilizada através de uma perspectiva enquadrada na visão clássica de “abertura” e “fechamento”, promovendo um necessário redirecionamento do Supremo Tribunal Federal, preservando-se direitos e garantias fundamentais como a igualdade, celeridade, efetividade, segurança jurídica, devido processo legal, contraditório, ampla defesa etc., e ainda, contribuindo significativamente para o fortalecimento do Estado Democrático brasileiro, o que não impede de eventuais adaptações a serem realizadas tenham por objetivo reforçar o seu caráter legítimo.

Referências

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1 Dentro do referido controle difuso de constitucionalidade, também pode ser denominado de controle horizontal de convencionalidade, realizado pelo juiz, em um caso concreto, quanto a análise da aplicação do tratado sobre a lei.

2 Afirma Canotilho que: “o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente, a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito. Esses dois princípios – segurança jurídica e proteção da confiança – andam estreitamente associados, a ponto de alguns autores considerarem o princípio da confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objetivos da ordem jurídica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a proteção da confiança se prende mais com os componentes subjetivos da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos dos actos”.

3 Segundo Jorge Miranda (2008, p. 123), “essa supremacia do Parlamento consubstancia-se no seguinte: “(i) poder do legislador de modificar livremente qualquer lei, de forma fundamental ou não; (ii) de distinção jurídica entre leis constitucionais e ordinárias; (iii) inexistência de autoridade judiciária ou qualquer outra com o poder de anular um ato do Parlamento ou considerá-lo nulo ou inconstitucional”.

 

4 Afirma Bonavides (2008, p. 124) que: “representado, todavia, a excelsitude normativa das disposições constitucionais, são os princípios a mola-mestra dessa teoria, a manivela do poder legítimo, a idéia-força que ampara todo o sistema organizacional; violá-los, de último, configura uma inconstitucionalidade material quer a violação afronte direta ou indiretamente, externa ou internamente, corpo normativo do Estatuto Supremo”.

 

5 Em discurso de abertura do Anuário de 2011, o Presidente do STF, Ministro Cezar Peluso destacou que, “esses e outros consideráveis resultados obtidos em 2010, testemunhos de desempenho singular, nem sempre reconhecido, em favor do cidadão, constituem produto direto da introdução de medidas concebidas, formuladas e negociadas pelo Judiciário, como, por exemplo, a sistemática da Repercussão Geral, que possibilitou, em pouco mais de três anos de vigência, alteração significativa do perfil dos julgamentos da Corte.” (Discurso do presidente do STF, Min. Cezar Peluso, no judiciário de 2011. Disponível em: http://www.stf.jus.br/repositorio/cms/portalStfInternacional/portalStfDestaque_pt_br/anexo/Discurso_abertura_ano_judiciario.pdf. Acesso em: 12 out. 2013).

6 Nicole Gonçalves (2004, p. 550) afirma que, “a repercussão geral só trará benefícios verdadeiros se sua apreciação estiver absolutamente comprometida com a tutela dos direitos fundamentais, os quais são ‘naturalmente transcendentes’, uma vez que o reconhecimento desses direitos não interessa apenas ao indivíduo lesado, mas a toda sociedade”, o que parece demonstrar o verdadeiro papel de uma Corte de vértice.

7 Clémerson Merlin Clève, em excelente explanação proferida no Seminário Internacional Trabalho e Constituição, realizado no Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, em Curitiba/PR, no dia 24.06.2010, ressaltou isso muito bem ao afirmar que “hoje, todos os movimentos sociais reivindicam em nome da CR, não a sua aplicação. Na verdade, o que falta são consensos mais concretos. O campo da discussão é o da política e o dissenso opera em favor da realização constitucional. Não há como prescindir do paternalismo sem uma igualdade material. A Constituição de 88, aponta para um paternalismo não radical, e não sendo liberal para que haja uma sociedade mais justa e solidária (...). Assim, devemos lutar para que haja um consenso constitucional, levando-se em conta que os direitos fundamentais deverão ser protegidos na área da democracia e dos direitos políticos”.

8 Na XXI Conferência Nacional dos Advogados. Conferência Magna de Encerramento. “Democracia, Desenvolvimento e Dignidade Humana: Uma agenda para os próximos dez anos”, realizada em 24.11.2011, em Curitiba/PR.

9 Temas de grande repercussão que foram objeto de análise pelo STF no ano de 2015 através do reconhecimento de repercussão geral em recurso extraordinário envolvendo direitos fundamentais e humanos: 1) Obras emergenciais em presídios (RE 592.581, com repercussão geral reconhecida, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento concluído em 13.08.2015) em que o iniciou o julgamento do polêmico tema da descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal, atualmente tipificado no artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006); 2) Tratamento social de transexuais (RE 845.779, com repercussão geral reconhecida, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgamento ainda não concluído); 3) Caso ainda não concluído é o RE 845.779, que discute o direito de transexuais – uma das minorias mais marginalizadas da sociedade – serem tratados socialmente de forma condizente com sua identidade de gênero; 4) Danos morais a presos (RE 580.252, com repercussão geral reconhecida, Rel. Min. Teori Zavascki, julgamento ainda não concluído). Caso em que discute o direito de presos submetidos a condições desumanas de encarceramento à obtenção de indenização do Poder Público a título de danos morais; 5) Validade de cláusula de renúncia em plano de dispensa incentivada (RE 590.415, com repercussão geral reconhecida, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgamento concluído em 30.04.2015). Em relevante decisão no âmbito do direito do trabalho, o Plenário do STF reconheceu, em votação unânime, a validade de cláusula de quitação ampla de todas as parcelas decorrentes do contrato de emprego nos Planos de Dispensa Incentivada (PDIs), desde que este item conste de Acordo Coletivo de Trabalho e demais instrumentos assinados pelo empregado; 6) Poderes investigatórios do Ministério Público (RE 593.727, Rel. original Min. Cezar Peluso, Rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, julgamento concluído em 18.05.2015). A Corte também concluiu o aguardado julgamento do RE que discutia os poderes investigatórios do Ministério Público, que havia se iniciado em junho de 2012. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-dez-28/retrospectiva-2015-10-principais-decisoes-pauta-supremo>. Acesso em: 30 jun. 2016.

10 Álvaro Cruz (2009, p. 5) afirma que: “A novidade acaba surgindo em função do refinamento desse conhecimento que se acumulou, colocando, posteriormente em xeque as bases desse próprio paradigma. O paradigma cria instrumentos cada vez mais eficazes para a solução dos problemas que lhes são inerentes. Contudo, será esse mesmo refinamento que ‘levará a sepultura do paradigma’, pois o paradigma cria condições para o surgimento de uma Ciência Extraordinária na qual os dogmas postulados e princípios do paradigma em questão são questionados. A partir de então, os fundamentos do conhecimento científico passaram a ser paulatinamente erodidos, o que permite o surgimento de novos padrões científicos e, em seguida, a consolidação de um novo paradigma (...). A oportunidade de uma revolução científica está sempre em aberto. Isso se dá primeiramente porque a comunidade de cientistas se esforça sempre para aplicar ainda com mais força os instrumentos do paradigma em xeque. Contudo, a crise se aprofundará com a construção das bases de um novo paradigma que, de imediato, passará a concorrer com o outro”.

 

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