Revista_Direitos_Culturais_-_v._16,_n._34

OS LIMITES DA DEMOCRACIA: A TOLERÂNCIA RESTRITA E A CRIMINALIZAÇÃO DO TERRORISMO

THE DEMOCRACY LIMITS: RESTRICTED TOLERANCE AND THE TERRORISM CRIMINALIZATION

Rui Carlo DissenhaI

Giovanni Vidal GuaragniII

I Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil. Doutor em Direito. E-mail: ruidissenha@hotmail.com

II Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR, Brasil. Mestrando em Direito. E-mail: giovan.v.g@hotmail.com

DOI: http://dx.doi.org/10.20912/rdc.v14i34.2859

Recebido em: 09.11.2018

Aceito em: 08.07.2019

Resumo: O intuito do presente artigo é, a partir de uma abordagem teórica, com documentação indireta de fontes secundárias, e uma metodologia hipotético-dedutiva, apontar limites inerentes ao projeto político democrático ocidental e averiguar as consequências às searas política e jurídico-penal. A democracia busca sustentação em quatro principais pilares: pluralidade, tolerância, liberdade e igualdade. Tais valores fundamentais costumam conflitar, restando à política democrática a harmonização entre liberdade e igualdade e a manutenção de relações conflitivas, o que garante a pluralidade e tolerância e, com isso, a própria democracia. As democracias ocidentais contemporâneas, entretanto, buscando proteção contra modelos de pensamento intolerantes, adotam o chamado “princípio da tolerância restrita”, que legitima a intolerância contra os intolerantes, transformando-se em modelos paradoxais, tendentes à autofagia em razão da formação de consensos e da eliminação da pluralidade. O combate democrático à intolerância se manifesta de maneira sintomática na aplicação do poder punitivo e na criminalização do terrorismo, em um Direito Penal menos garantidor do que o destinado aos cidadãos comuns. Sociedades que se pretendam democráticas devem se afastar do duplo gume da tolerância restrita, adotando os eixos da liberdade democrática, da educação democrática e do controle democrático, erigindo um sistema punitivo mínimo, dedicado à criminalização de condutas lesivas a bens jurídicos e não a valores democráticos.

Palavras-chave: Estado. Democracia. Pluralidade. Tolerância restrita. Terrorismo.

Abstract: The objectve of this article is, through a theoretical approach, with indirect documentation of secondary sources, and a hypothetical-deductive methodology, to point western democratic political project inherent limits and to investigate its consequences on the political and juridical-criminal areas. Democracy seeks support in four main pillars: plurality, tolerance, freedom and equality. Such fundamental values usually conflict, leaving as a mainstream for democratic policy the harmonization between freedom and equality and the maintenance of conflicting relations, which guarantees plurality and tolerance and, therefore, democracy itself. Contemporary western democracies, however, seeking protection against intolerant models of thought, adopt the so-called “principle of restricted tolerance”, which legitimizes the intolerance against the intolerant, transforming into paradoxical models, tending towards self-phage because of the consensus formation and the plurality elimination.The democratic fight against intolerance manifest itself in a symptomatic way through the application of punitive power and the criminalization of terrorism, in a criminal law with less guarantees than that for ordinary citizens. Societies that wants to be democratic needs to move away of the double edge of restricted tolerance, adopting the axes of democratic freedom, democratic education and democratic control, erecting a minimum punitive system, dedicated to the criminalization of harmful conducts, not value conflicts.

Keywords: State. Democracy. Plurality. Restrict tolerance. Terrorism.

Sumário: Introdução. 1 A democracia e a fuga do consenso. 2 Democracias intolerantes. 3 O tratamento aos intoleráveis: o exemplo do terrorismo. Considerações finais. Referências.

Introdução

O pensamento ocidental, marcado pela ideologia moderna do progresso que, remontando à filosofia hegeliana, não passa de uma versão secularizada da promessa de redenção cristã, costuma dotar a história de um telos inevitável, um fim último para o qual todos os esforços humanos tenderiam, no qual os conflitos cessariam e se consolidaria um estado de paz e tranquilidade nas sociedades e entre os povos.

Desde o início da modernidade, entretanto, a experiência cansou de contradizer esta hipótese, levando à conclusão de que o conflito é inerente às relações humanas. Michel Foucault, invertendo a proposição clássica de Carl von Clausewitz – segundo a qual “a guerra não é mais que a continuação da política por outros meios”1 –, afirma que “a política é a guerra continuada por outros meios” (Foucault: 1999, p. 55). Por “outros meios”, entende-se a produção do direito, de discursos2 e verdades, dos efeitos dessas verdades, do exercício da política através da linguagem e dos debates não mais racionais do que passionais, não mais verdadeiros do que justificáveis, não mais necessários e universais do que contingentes e pontuais. À política como conflito inevitável soa inviável atribuir o papel de concretização de grandes projetos voltados a um fim último, o que a torna não uma questão de redenção, mas “de pragmatismo, reformas e compromissos de curto prazo [...]. O pensamento político se centra na tarefa de formular algumas hipóteses sobre como e sob quais condições as reformas devem ser efetuadas” (Rorty, 2005, p. 17, tradução livre). Nesse sentido, pensar a política nada mais é do que contrapor hipóteses e decidir, no interior de um campo de batalha, persuasão e contraposição de crenças e perspectivas irreconciliáveis, as atitudes e pequenas reformas a serem realizadas. Ao final de cada entrave, não se chega a acordos e consensos quanto a uma verdade ou solução final, mas a vitórias e derrotas que confirmam verdades singulares sobre as quais, temporariamente, erigir-se-ão promessas de reformas e compromissos, até que uma nova batalha seja travada e haja um novo vencedor.

De todo o exposto, extrai-se que a democracia ocidental liberal remete a um conjunto contingente de práticas e maneiras de pensar, consubstanciadas a partir de um discurso historicamente circunscrito, originado por medos e traumas, por relações de poder e guerra, por promessas, crenças e persuasão. Afirma-se que “a dimensão histórica do conhecimento é sempre negativa com relação à verdade” (Chomsky; Foucault, 2014, p. 20). Ao passo em que a primeira se vincula a concepções particulares e contextuais, a segunda pretende-se universal e total, sendo inatingível através da particularidade. Nessa linha, os limites da tolerância e da democracia não repousam “em quaisquer premissas racionais universalmente significantes e pertinentes: são, pelo contrário, o resultado da história em que se geraram os pressupostos com que interpretamos os enunciados e os gestos dos outros” (Aurélio, 2010, p. 124). Os princípios democráticos e liberais, como afirma a filósofa belga Chantal Mouffe, acabam por definir “somente um jogo de linguagem possível entre outros vários” (Mouffe; 2005, p. 4, tradução livre).

Tomando por base as colocações acima, buscar-se-á, a partir de uma abordagem teórica, com documentação indireta de fontes secundárias, e uma metodologia hipotético-dedutiva, apresentar uma concepção de política democrática avessa à ideia de consenso, cujo intuito não seria eliminar o conflito ínsito às relações interpessoais, mas mantê-lo e até mesmo cultivá-lo sob certos padrões de controle e aceitação. “Dado o caráter inerradicável do pluralismo de valores, não há solução racional para o conflito” (Mouffe, 2000, p. 102, tradução livre), de modo que, quanto maior a liberdade e igualdade para que sejam apresentadas ideias combativas, maior a chance de preservação da pluralidade e tolerância.

No segundo item, analisar-se-á o que ocorre quando crenças intolerantes buscam tolher direitos e limitar a pluralidade democrática. A democracia, na tentativa de manter uma realidade plural, pode permitir com que todos, sem exceção, sejam livres para expressar e sustentar suas ideias? Ou, pelo contrário, haveria, em uma politica que se pretende plural e tolerante como a democracia, a necessidade de não tolerar crenças que visem limitar a pluralidade e as liberdades das pessoas? Seria a democracia, neste último sentido, também um projeto político intolerante?

Por fim, no terceiro item, serão abordadas as reações punitivas do direito penal às práticas terroristas como uma das consequências, mais marcantes na atualidade, da utilização do “princípio da tolerância restrita” pelas democracias ocidentais.

1 A democracia e a fuga do consenso

A democracia tem por base a ideia de que não podemos conceber uma política livre e plural sem reconhecer que, em seu interior, haverá conflitos de crenças e valores que deverão ser tolerados. “Direitos irão conflitar e nenhuma vida democrática vibrante pode existir sem uma real confrontação democrática envolvendo direitos conflitantes e um desafio para as relações de poder existentes” (Mouffe, 2005, p. 8, tradução livre). Vêm à tona as ideias de pluralidade e tolerância, bem como liberdade e igualdade, conceitos que circunscrevem a teoria política democrática, constituindo seus alicerces e suas limitações. Uma vez enunciadas a validade e fundamentalidade principiológica destes valores, ficam estabelecidas as condições e o modo de agir em conformidade à crença e às expectativas que se criam a partir de atos de enunciação performativos34. Enunciações performativas, tais como: “somos livres”, “somos iguais” e “somos tolerantes”, são sentenças que “exaurem a sua própria legitimidade em seu ato de enunciação” (Douzinas, 2009, p. 109), não possuindo substrato ontológico capaz de possibilitar a verificação de sua veracidade ou falsidade. O critério de verificação é o sucesso ou insucesso da enunciação e esta será bem sucedida quando da prática de atos contemporâneos e subsequentes a ela, que se conformem aos seus conteúdos, tomando-los como pressupostos do agir sincero, em cumprimento às expectativas geradas, tais como a de que a pluralidade existe (enunciado constativo) e deve ser conservada a partir da tolerância, e de que é possível fazê-lo, uma vez que as pessoas são livres e iguais umas às outras, devendo assim se comportar e tratar respectivamente.

A fundação do plural remete à Bíblia, no livro do Gênesis 11:1-11, em que consta o Mito da Torre de Babel. Esse mito descreve, sob a ótica divina do antigo testamento, a perda de consenso entre os homens e o início da pluralidade. “O mito de Babel apresenta a expulsão da humanidade de um paraíso unitário, cujo conteúdo político poderia se caracterizar por um nome claro: consensus, a perfeita concordância de mentalidades e missões” (Sloterdijk, 1999, p. 12). A concordância plena que teria sido desfeita alude à ideia de universalização de perspectivas e consciências, o que somente é aventável através de promessas redentoras religiosas ou laicas, típicas do medievo e da modernidade, respectivamente. A contemporaneidade, contudo, é uma era marcada pelo “atomismo político”, fruto da derrocada dos grandes projetos políticos do século XX, que acreditavam em uma verdade política universal e redentora. Como já se cansou de afirmar e, na prática, confirmar, “toda vez que a política promete ser redentora, promete demais [...] a redenção sempre foi uma má ideia” (Rorty, 2010, p. 22). Na perspectiva política hodierna, percebe-se que o consenso não diz respeito àquilo com que todos concordam, mas às concepções daqueles mais poderosos que fazem valer suas crenças como se fossem lógicas, verdadeiras e racionais, em detrimento dos credos perdedores, irracionais e falsos. Todo e qualquer consenso “existe como um resultado temporário de uma hegemonia provisória, como uma estabilização do poder, sempre acarretando alguma forma de exclusão” (Mouffe, 2000, p, 104, tradução livre). A “estabilidade contínua significaria o fim da política e da ética” (MouffE, 2005, p. 10, tradução livre). Nesse sentido, o que se critica é a dimensão do universal: “a política consiste sempre e invariavelmente na supremacia de uma ‘classe política’ sobre o resto da sociedade, e também a democracia é o governo de alguma elite, por exemplo, da classe dirigente dos partidos políticos e das burocracias estatais” (Galli, 2013, p. 50, tradução livre). A política democrática, cara à ideia de pluralidade e em detrimento de autoritarismos descabidos, não necessita de um consenso final como motivo de seu empreendimento, não podendo “ter por objetivo a harmonia e a reconciliação” (Mouffe, 2005, p. 8, tradução livre).

Não se trata de um projeto rumo à redenção proporcionada pelo consenso universal e final, no qual a unidade prevaleceria estável e harmônica e os conflitos cessariam. Uma política democrática pluralista deve abrir espaço para a expressão do dissenso, através de interesses e valores conflitantes. O dissenso não pode, em hipótese alguma, ser enxergado como um obstáculo temporário, a ser ultrapassado para que se chegue ao consenso, visto que “acreditar que uma solução final do conflito é eventualmente possível, é colocar o projeto democrático pluralista em risco” (Mouffe, 2005, p. 8, tradução livre). Para que exista uma democracia é preciso que haja “uma sociedade democrática, ou seja, uma pluralidade de interesses e de poderes sociais difusos, distintos do poder político e que a ele não podem se submeter” (Galli, 2013, p. 38, tradução livre). Resta imprescindível às democracias pulsantes que se fomente a discussão e o desacordo, uma vez que, conforme já preconizava John Stuart Mill5, as crenças que

“[...] pensamos serem as mais sólidas não possuem outra salvaguarda na qual se apoiar, exceto o permanente convite para que o mundo todo venha e as provem infundadas. Se o desafio não é aceito ou, se aceito, as tentativas fracassaram, então estaremos ainda muito longe da certeza absoluta, mas teremos feito o melhor que o atual estado da razão humana permite” (Mill, 2010, p. 65).

Não somente a pluralidade resta ameaçada por concepções políticas consensualistas, mas também a tolerância, uma vez que para tolerar é preciso se colocar frente a frente, ou lado a lado, com o diferente, pois tolerar aquilo que é semelhante prescindiria de bases lógicas. Para haver tolerância, deve haver diferença e conflito. Chegar a um consenso universal significaria o fim da tolerância, pois não seria preciso tolerar. “Como condições de possibilidade para a existência de uma democracia pluralista, os conflitos e antagonismos constituem, ao mesmo tempo, a condição da impossibilidade de sua realização final” (MOUFFE, 2005, p. 11, tradução livre) em um consenso estável e harmônico. Suportar as diferenças e a pluralidade num ambiente de tolerância implica, antes de tudo, não eliminar as distinções entre sujeitos, o que pode configurar um problema quando da concretização do princípio da igualdade.

Capaz de conflitar com a ideia de pluralidade, na medida em que se busque tornar todos iguais, ao invés de tratar todos de igual modo, o princípio da igualdade se desdobra em duas distintas concepções. A primeira se chama “isonomia”, ao passo em que a segunda se denomina “equidade”. Poderíamos definir “isonomia”, grosso modo, como a igualdade formal, típica dos Estados Liberais de Direito, que deveriam operar de maneira frugal e abster-se de limitar os direitos dos cidadãos. A isonomia prevê o tratamento igualitário a todos, independentemente de suas distinções concretas. Trata-se da submissão de todos os indivíduos às mesmas leis. A partir desta acepção, entretanto, ignora-se, a exemplo das declarações de igualdade formal da modernidade clássica - como a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, datada do final do século XVIII –, a “diferença de cada indivíduo e, por maioria de razão, de cada grupo” (Auréli, 2010, p. 58). No final do século XIX e início do século XX, contudo, notou-se que os direitos individuais “eram vergados, sacrificados ou espoliados não apenas pelos detentores do Poder político, mas também pelos que o manejavam: os detentores do Poder econômico. Incorporou-se, então, ao ideário do Estado de Direito o ideário social, surgindo o Estado Social de Direito, também conhecido como Estado de Bem-Estar (Welfare State) e Estado-Providência” (Mello, 2009, p. 50). A igualdade promovida pelo Estado moderno somente passa a adquirir ares de equidade nesse novo período. A partir de então, o desafio passou a ser adequar os enunciados normativos isonômicos aos casos concretos, corrigindo as discrepâncias geradas entre desiguais que, igualados abstratamente pelas mesmas leis, não possuiam suas distinções materiais levadas em consideração. Busca-se, através da igualdade material, corrigir os vícios da igualdade formal isonômica, concedendo tratamento igual aos iguais, e desigual aos desiguais, na medida de suas desigualdades. A isto se chama “equidade”. A equidade exige que o Estado deixe seu caráter frugal e aja positivamente na realidade concreta com fins de promover as condições materiais necessárias para que os cidadãos fruam de seus direitos, impedindo com que a liberdade de um sujeito limite demasiadamente a liberdade de outro.

Assim, a igualdade, sob certo aspecto6, mostra-se como um limitador da liberdade e das diferenças, para que essas não acentuem demasiadamente uma à outra. A liberdade se divide em liberdades negativa e positiva. O conceito de liberdade negativa é aquele segundo o qual um sujeito é livre “na medida em que há certo espaço externo no interior do qual suas ações podem ser praticadas sem qualquer intervenção de outros sujeitos” (Honneth, 2016, p. 161, tradução livre). Nesse sentido, “quanto maior a não interferência, maior minha liberdade” (Berlin, 1997, p. 195, tradução livre). À democracia, o conceito de liberdade negativa se aplica fundamentalmente no que tange à liberdade de expressão, prevista na Constituição Federal de 1988, nos seguintes termos: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (artigo 5º, inciso IV). Da parte final do texto, que veda o anonimato, retira-se a ideia de liberdade positiva, remetendo àquilo que Isaiah Berlin denomina “o desejo, por parte do indivíduo, de ser seu próprio mestre” (Berlin: 1997, p. 195, tradução livre), ou seja, de depender somente de si, não de forças externas, em um sentido que se aproxima à definição de autonomia kantiana e, consequentemente, de responsabilidade e imputação7 sobre atos livremente praticados, o que implica, legalmente, na vedação do anonimato.

Frise-se, não obstante, que a liberdade individual se encontra sempre limitada, seja pelo choque com outros valores (como a igualdade), seja por condições concretas que condicionam seu exercício, seja em razão de sua própria origem que a circunscreve. “A lei da liberdade é, ao mesmo tempo, a lei da coerção” (Douzinas, 2009, p. 106), pois estabelece a própria condição de existência do ser humano livre, qual seja, o enunciado vinculante que o diga. Linguisticamente fundadas e circunscritas, as liberdades limitam umas às outras até o ponto em que a relação de poder se torna tão desigual que uma das partes se submete inteiramente aos interesses da outra. Relações autoritárias desta natureza são o que uma política democrática deveria evitar. Equilibrar pluralidade, tolerância e liberdade, de um lado, com a igualdade, de outro, faz parte do projeto democrático que, no cenário atual, aponta para algumas incoerências.

2 Democracias intolerantes

O ser humano é dotado de um aparato linguístico e “a linguagem performa seu poder de fazer o mundo” (Douzinas, 2009, p. 107). Através das mesmas enunciações performáticas com as quais se criam seres humanos livres e iguais, em comunidades plurais e tolerantes, pode-se fundar o determinado no interior da liberdade, o desigual no coração da igualdade, o intolerável nas entranhas da tolerância e o uniforme no âmago do plural. Conforme apontado, a liberdade individual se encontra sempre limitada. Isto se dá não somente pelos limites inerentes à enunciação do ser humano livre, mas também em razão de que “o ser humano individual aparece-nos sempre determinado por algum éthos” – modo de ser e agir do indivíduo – “escravo de preconceitos ou ideologias, originário de uma tradição e pertencendo a um grupo étnico, religioso, cultural ou econômico” (Aurélio, 2010, p. 55). Aquele que, entretanto, renega seus condicionantes histórico-sociais e afirma linguisticamente a universalidade de suas concepções, age etnocentricamente e de modo intolerante, universalizando suas metas, ignorando suas limitações e cimentando sua “verdade universal” sobre a sepultura de ethos “desviantes”.

A possibilidade de uma democracia intolerante, aos moldes etnocêntricos, encontra respaldo na chamada “tolerância restrita”, ideia que remete a pensadores como Voltaire, John Locke8 e Karl Popper, e demonstra o caráter paradoxal da tolerância e das democracias liberais autofágicas. Segundo esta concepção, “a tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da tolerância” (Popper, 1987, I, p. 289). Através da tolerância sem limites, abre-se margem para que pensamentos intolerantes ganhem espaço e suprimam a tolerância. Atingir-se-ia, assim, um “consenso”, eliminando as diferenças e, a partir disso, a própria tolerância, pluralidade e liberdade apregoadas pelo projeto democrático liberal – afinal, um consenso não surge senão de uma mostra de intolerância que faz com que todos se tornem iguais, em um “acordo” permanente.

A lógica se resume da seguinte forma: para que haja tolerância é preciso que haja diferença e, assim, que não haja consenso. Um governo que se pretenda tolerante, portanto, deve evitar os modelos de pensamento intolerantes, visto que estes ameaçariam um projeto político plural, buscando sempre conformar todas as perspectivas a um resultado homogêneo, uníssono e final. Tal solução para lidar com os “intolerantes” já era apresentada por François Marie Arouet, popularmente conhecido como Voltaire, no auge do iluminismo europeu. O filósofo francês afirmava que

“[...] para que um governo não tenha o direito de punir os erros dos homens, é necessário que esses erros não sejam crimes; os erros somente são crimes quando perturbam a sociedade; eles perturbam a sociedade desde que inspirem fanatismos; é preciso, portanto, que os homens comecem por deixar de ser fanáticos a fim de merecer a tolerância (Voltaire, 2008, p. 97)”.

Compactua de ideia semelhante o filósofo Karl Popper, segundo o qual, na tentativa de não colocar em risco o projeto político liberal, deve-se defender a liberdade e a pluralidade através da prática da intolerância para com aqueles que são intolerantes.

Trata-se do chamado “paradoxo da tolerância”:

“[...] a tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até àqueles que são intolerantes; se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância – Nesta formulação, não quero implicar, por exemplo, que devamos sempre suprimir a manifestação de filosofias intolerantes; enquanto pudermos contrapor a elas a argumentação racional e mantê-las controladas pela opinião pública, a supressão seria por certo pouquíssimo sábia. Mas deveríamos proclamar o direito de suprimí-las, se necessário mesmo pela força, pois bem pode suceder que não estejam preparadas para se opor a nós no terreno dos argumentos racionais e sim que, ao contrário, comecem por denunciar qualquer argumentação; assim, podem proibir seus adeptos, por exemplo, que dêem ouvidos aos argumentos racionais por serem enganosos, ensinando-os a responder aos argumentos por meio de punhs e pistolas. Deveremos então reclamar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes. Deveremos exigir que todo movimento que pregue a intolerância fique à margem da lei e que se considere criminosa qualquer incitação à intolerância e à perseguição, do mesmo modo que no caso da incitação ao homicício, ao sequestro de crianças ou à revivescência do tráfico de escravos” (Popper, 1987, I, p. 289-290).

Enfim, segundo Popper, adepto do “princípio de tolerância restrita”, “devemos tolerar apenas as ideias (e pessoas) que não atentem contra a ‘sociedade aberta’, isto é, que não se desviem de forma substancial dos princípios socio-políticos liberais” (Dascal, 1989, p. 10). A tolerância restrita é muito bem ilustrada pela afirmação do ex-primeiro-ministro britânico, Tony Blair, “em um clássico caso de autodesconstrução: ‘Nossa tolerância é parte do que faz a Grã-Bretanha ser a Grã-Bretanha. Assim, que se habituem a isso ou não venham para cá’” (Eagleton, 2011, p. 118). Dessa forma, a tolerância só existe junto da intolerância. Uma vez que se crê na tolerância como valor merecedor de cultivo, deve-se protegê-lo, e a maneira encontrada para tanto é ser intolerante com aqueles que nela não acreditam. O projeto democrático liberal se permite à intolerância, objetivando um consenso em que todos sejam “tolerantes” e “racionais”, ou seja, em que todos concordem e compartilhem das mesmas crenças liberais.

Recai-se, dessa forma, numa prática autodestrutiva e incoerente. Ao passo em que, por um lado, busca-se restringir o âmbito de participação política de determinados sujeitos e grupos por conta de seus posicionamentos radicais e intolerantes que colocariam em risco a liberdade e a pluralidade, por outro lado, elimina-se a pluralidade sob o pretexto de afirmá-la e protegê-la daqueles que estariam colocando-a em risco. Tem-se, assim, no seio (e talvez como pedra angular) de uma democracia que se pretende tolerante, a intolerância. Ocorre uma dicotomia aos moldes tribais, demandando o “auto sacrifício para o grupo ao qual o indivíduo pertence e inimizade mortal contra qualquer estrangeiro” (Boas, 2009, p. 83) e contribuindo para a aproximação da sociedade democrática às sociedades fechadas9. Perpetua-se em nome da racionalidade a divisão “entre nós e os outros, entre os amigos e os inimigos, exatamente a divisão característica do tribalismo que a racionalidade era suposto suprimir” (Aurélio, 2010, p. 124). A relação é deveras curiosa: de um lado, a tolerância se apresenta como um dogma fundante das democracias liberais e, de outro, como afirma o filósofo britânico Terry Eagleton, “o liberalismo não pode se dar ao luxo de ser liberal em excesso quando se trata de seus princípios fundadores, um dos motivos por que o Ocidente fica dividido entre tratar seus inimigos não liberais com justiça ou esmagar seus testículos” (Eagleton, 2011, p. 118).

O “princípio da tolerância restrita” vem à tona como um dos elementos que torna possível a manutenção do controle disciplinar e biopolítico na democracia ocidental. Ao deixar de constituir mero limite às ações políticas, torna-se um instrumento – talvez o principal - à disposição da democracia, em seus empreendimentos de guerra. Permite com que a democracia seja, também, um projeto político intolerante, contendo a pluralidade e estabelecendo um padrão que regule aquilo que se encontra dentro dos limites do tolerável, conforme interesses, crenças e padrões de verdade próprios da ordem democrática e dos princípios liberais. A leitura da tolerância enquanto paradoxo que somente é sanado através da intolerância, abre espaço à prática desta “intolerância legítima”. O paradoxo da tolerância é aquilo que autoriza um sistema político democrático a, soberanamente, calar as vozes daqueles que não deseja que sejam ouvidos; disciplinarmente, vigiar e controlar a todos para que se identifiquem os intolerantes e se combatam os inimigos internos; e biopoliticamente, cingir um contingente populacional, associando um ethos à irracionalidade, primitivismo e intolerância, em contraposição à “racionalidade”, o “progresso” e a “tolerância” das civilizações ocidentais; opondo às barbáries das “culturas primitivas”, o progresso da civilização. O paradoxo da tolerância permite, enfim, manter a distinção entre aqueles que devem viver e aqueles que se deve fazer e deixar morrer10.

Através do aval concedido pela tolerância restrita – de somente tolerar os tolerantes, ou seja, aqueles que compactuem do culto à liberdade, individualidade e pluralidade –, as grandes potências ocidentais se encontram legitimadas e impelidas a movimentar grandes aparatos de vigilância e combate, no intuito de identificar, dentro de sua população, cuja vida deve ser otimizada e maximizada, e nos diversos fluxos migratórios, aqueles contra os quais se deve proteger a população, indivíduos perigosos a serem combatidos e tratados com tolerância zero, uma vez que se mostram, aos olhos da democracia vigente, intolerantes e inaceitáveis. Serviços de espionagem e megaestruturas de governo são montados, dispendendo grandes quantias de dinheiro e tecnologia numa guerra em que o suspeito de ser o inimigo é praticamente qualquer indivíduo que se mova.

3 O tratamento aos intoleráveis: o exemplo do terrorismo

Uma parte importante desse exercício democrático de controle se dá por meio da aplicação do poder punitivo. De fato, aparte uma pletora de instrumentos sociais dedicados ao controle do cidadão pelo processo de educação para a Democracia e pluralidade, muito comuns na contemporaneidade e que fundamentam os modelos de formatação social aceitos constitucionalmente, instrumentos repressivos também desempenham um papel importante nesse encargo de esterilização ideológica de posições antiplurais. Nesse contexto, a criminalização de certos ideários e a repressão penal de posições e manifestações específicas completa a demanda democrática de seleção do que é tolerável. Embora seja possível discutir essa questão sobre vários pontos de partida, e tratando de várias temáticas (a criminalização do racismo, a criminalização da comercialização de símbolos nazistas, etc.) o presente trabalho entende pertinente discutir uma questão em especial, porque muito sintomática da tolerância restrita, qual seja, aquela da criminalização do terrorismo.

Embora a própria criminalização do terrorismo seja por si só criticável tanto pela dificuldade de definição do conceito (Zolo, 2006, p. 127) quanto pela desnecessidade de especialização da figura criminosa que não apresenta características particulares suficientes para diferenciar-se de outras espécies (Zaffaroni, 2007, p. 186-187), ela se tornou uma necessidade a todos os países especialmente depois que os eventos internacionais do início do século XXI deram início à “guerra contra o terror” e foi fomentada por organismos internacionais de alcance universal (Annan, 2005). No Brasil, o próprio texto constitucional elege à condição de princípio a necessidade de repúdio ao terrorismo (art.4º, VIII) e, além das normativas internacionais aceitas nacionalmente sobre a temática11, houve, mais recentemente, a publicação da Lei n. 13.260/16, constituída para a lida com o fenômeno do terrorismo e caracterizada por duras medidas processuais e fortíssimas respostas penais a serem manejadas contra condenados por crimes dessa espécie.

Essa proposta nacional é resultado de uma clara demanda internacional que tomou porte maior nos últimos trinta anos. No vácuo do fim da Guerra Fria, o Ocidente precisou ampliar seus mercados produtores e consumidores (Zolo, 2006), bem como a proteção militar necessária ao livre comércio, e para tanto invadiu – inclusive fisicamente – vários países do Oriente Médio. Como corolário do livre comércio, os modelos democráticos precisam também ser levados a essas regiões e, nesse contexto, a pretensão democratizante é exportada a regiões onde antes não existiam (Zaffaroni, 2007, p. 136).

A rejeição autóctone a essa proposta toma várias formas, algumas delas inclusive apoiadas em fundamentos religiosos que não são facilmente separáveis das formas de luta. No plano militar, especialmente, essa rejeição materializou-se em uma nova forma de guerra de slow approach (Herrmann, 2003, p. 42), já que outras formas de luta seriam impossíveis de se manifestar diante do portento militar dos novos colonizadores. Embora ocidentalmente criticável, essa nova forma de guerra levada a cabo pelos grupos que resistem ao processo de assimilação democrática não respeita as normas tradicionalmente estabelecidas para os combates (identificação dos combatentes, restrição a certas espécies de armamentos, proteção dos civis, etc.) e, especialmente pela facilitação de movimento produzido pelo processo de globalização, acaba exportada para dentro dos países ocidentais inclusive por meio de atentados violentos contra a população civil. É daí o recrudescimento do fenômeno terrorista dos últimos tempos.

Perceba-se, portanto, que a proposta terrorista, diferentemente do que se defende, não é desconectada de fundamentos políticos. Pelo contrário, é reconhecível como uma forma ilegítima de luta que pretende uma assimilação antidemocrática que não tolera a pluralidade. É, portanto, exatamente o modelo de posição que precisa ser rejeitada pela proposta democrática para garantir sua racionalidade e sobrevivência: o foco fundamental da tolerância restrita. Nesse contexto, a democracia mostra as suas armas e usa dos instrumentos que têm – constituições democráticas, poder punitivo, normativas de controle e assimilação – para se defender. É natural que o sistema penal, como tour de force da democracia, desempenhe um papel importante nesse contexto.

Entretanto, há limites dentro do próprio modelo democrático para o poder punitivo e para o sistema penal. Uma pletora de normas de controle impede que o poder punitivo se torne exageradamente violento, tais como os direitos processuais do acusado, as garantias da legalidade e da culpabilidade, a limitação das penas, etc. Tais limites são fundamentais, como se sabe, para o próprio exercício da cidadania no Estado Democrático de Direito, mas funcionam teoricamente bem apenas para o cidadão previsível e que é “redemocratizável” pelo processo de reeducação e ressocialização, porque originalmente circunscrito aos mesmos valores democraticamente eleitos como adequados. Esse processo não é capaz de produzir os mesmos efeitos em um sujeito que não se apegue aos princípios democráticos – como os personagens da obra de Marquês de Sade, cujas liberdades irrestritas se opunham a qualquer tutelage moral e, assim, tornavam-se os pesadelos dos contratualistas beccarianos (Melossi, 2008, p. 35-36).

Como lidar, portanto, com quem não aceita a pluralidade necessária à democracia, como é o caso do fundamentalista religioso ou político que se lança ao extremo do ato terrorista? Quando, enfim, esses limites não são suficientes é necessário rompê-los com a criação de novos limites. É aí que surge a penalização de exceção como uma demanda natural da tolerância restrita. O sistema punitivo comum serve bem à proteção da sociedade contra os riscos originários do próprio sistema democrático, mas não traz boas soluções para as ameaças externas. Como a proposta tolerante e inclusiva da democracia não pode impedir que agentes externos entrem no sistema, é fundamental encontrar respostas para anulá-los, já que não assimiláveis porque intolerantes.

É nesse contexto que “a nova emergência pretende justificar exigências internacionais de adoção de legislação penal e processual penal autoritária em todos os países do mundo”. Em defesa “não mais dos atos concretos de homicídio em massa e indiscriminados, mas sim do nebuloso terrorismo” está justificada a inclusão nos sistemas penais de medidas extremamente violentas e indignificantes que vão desde a justificação da guerra até restrições de liberdade sem acusações formais, denúncias pouco claras, tortura ou destruição física (Zaffaroni, 2007, p. 66, grifo original). Essa proposta encontra, inclusive, doutrina que lhe justifica. Originário da filosofia penal funcionalista-sistêmica de Günther Jakobs, o Direito Penal do Inimigo defende como necessária a distinção penal entre cidadãos (previsíveis) e inimigos (imprevisíveis), sendo que estes precisam ser anulados com antecedência porque claramente perigosos. Ao passo em que o “Direito penal do cidadão mantém a vigência da norma, o Direito penal do inimigo [...] combate perigos” (JAKOBS, 2005, p. 30). Enquanto aos primeiros se reserva um Direito Penal da culpabilidade, garantista e democrático, resta um Direito Penal de periculosidade e exceção àqueles que não se encaixam no modelo de cidadão tolerante exigido pela democracia e, assim, não se enquadram como “pessoas”, entendidas como alvos de expectativas normativas12.

Essa seria, como se vê, uma consequência inevitável da tolerância restrita exigida pelo modelo democrático consensualista (apresentado no item anterior). Entre a necessidade de liberdade para a expressão da individualidade e a demanda por segurança do sistema com vistas à garantia de tolerância, haveria uma “tensão estrutural, mas não dialética enquanto incapaz de produzir uma síntese” (Pavarini, 2007, p. 8) que produziria como resultado inevitável a demanda de um Direito Penal de exceção, desenhado para os inimigos. A criminalização do terrorismo, portanto, atende a essa pretensão de forma evidente. Afinal, embora não haja grandes diferenças entre um crime terrorista e um crime comum – nada além de especiais fins de agir – o reconhecimento de uma especial criminalização e de limites punitivos au delá dos limites do Direito Penal comum atende à necessidade de sufocação de propostas políticas com as quais o modelo democrático não concorda, porque intolerantes. A clausura do sistema justifica a sua existência: como “proposta tática de contenção”, a justificação (expressa ou velada) desse ramo do Direito Penal é fundamental para que se impeça que o Direito Penal democrático, reservado aos cidadãos, seja contaminado pelas medidas de exceção. Em outras palavras: trata-se de uma opção voluntária de proteção do sistema democrático que pode levar até, inclusive, a anulação física do inimigo.

Considerações finais

O presente texto pretendeu problematizar – sem a proposição de esgotamento do tema – a delicada questão dos limites da democracia no que tange aos ideários antiplurais. Essa questão é complexa, como se viu, porque ao passo em que a democracia sobrevive da pluralidade e do embate interno de ideias, não pode suportar tendências destinadas à supressão desse debate plural. Assim, ainda que se reconheça que a democracia é o modelo dentro do qual os debates permitem a superação dos conflitos individuais naturais de qualquer coletividade, deve-se ter em conta que a superação definitiva de conflitos, com a produção de consensos estáveis, não configura o fim último da política democrática, sendo imprescindível a manutenção de uma ampla pluralidade inerentemente conflitiva que sustente o pululante debate democrático, produzido pelo maior número de posições axiológicas, independentemente de quais sejam.

Entretanto, parece evidente que os modelos democráticos contemporâneos não se podem dar ao luxo de serem universalmente tolerantes, de forma que as posições tendentes a impedirem a pluralidade natural e necessária do modelo democrático precisam ser rejeitadas de plano diante do risco que produzem à própria diversidade de ideias. Nesse contexto, resta pouco à democracia para além de adotar uma posição de tolerância restrita pela qual renegue posturas intolerantes. Afinal, de outra forma, estaria engendrando o ovo da serpente que poderia destruir-lhe como forma política essencial.

Os problemas fundamentais dessa condição, evidentemente, vêm em par. Em primeiro lugar, é extremamente difícil selecionar os ideários a serem rejeitados. A inexistência de um padrão geral que seja capaz de dar os limites do que é aceito pela sociedade democrática cria uma dificuldade substancial do ponto de vista axiológico: o que deve ser aceito inevitavelmente passa por filtros morais e fica submetido a critérios históricos e sociais que não são facilmente definíveis. Há também a dificuldade do limite: como se exclui esse ideário apontado como nefasto? Na medida em que ele pode correponder a posições individuais decorrentes de conflitos internos e opções morais individuais constituídas a partir da experiência do ser, qual é a medida de controle social – ou de força, sobretudo penal – legítima para a tolerância restrita?

Não há resposta fácil para essas questões e o presente texto tampouco pretende respondê-las. O que parece razoável e possível indicar é uma tríplice necessidade decorrente das próprias demandas de uma sociedade que se pretenda democrática, a fim de afastar o duplo gume da tolerância restrita. Entendem-se necessários, portanto, três eixos estruturais (que são certamente conflituais e, algumas vezes, mutuamente incompatíveis em certa medida) fundamentais de sustentação da democracia no que tange às suas escolhas de tolerância: um eixo de liberdade democrática, um eixo de educação democrática e um eixo de controle democrático.

O eixo de liberdade democrática se refere à existência de um free market of ideas, tão amplo quanto possível, coligado a ainda mais amplas liberdades de expressão, crença e imprensa, que exponha ao arbítrio crítico do cidadão os ideários disponíveis com a indicação clara de seus efeitos positivos e negativos. Ao mesmo tempo, demanda-se o eixo de educação democrática, referente à possibilidade ampla e irrestrita de educação democrática e plural. Nesse contexto, ao cidadão devem ser oferecidas as possibilidades de compreender os ideários que lhe serão apresentados na ágora de forma a que ele possa, de forma livre, exercer sua possibilidade de escolha racional e crítica, orientada por critérios de pluralidade. Finalmente, o eixo de controle democrático clama por um sistema punitivo mínimo, dedicado à criminalização de condutas lesivas a bens jurídicos e não a valores apontados como ideais democráticos, servindo de trava importante ao exercício irrefreado e ideológico do poder punitivo que pode fazer facilmente um sistema democrático descambar para um modelo autoritário, violento e autocrático de poder.

Referências

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1 A partir da obra de Carl von Clausewitz, extrai-se uma noção de “guerra” como instrumento (caracterizado pela violência) à realização de fins políticos, conformado-se às contingências dos diversos contextos políticos existentes. Segundo o autor, “a guerra não é meramente um ato de política, mas um verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações políticas realizada com outros meios. O que continua sendo peculiar na guerra é simplesmente a natureza peculiar dos seus meios. A guerra de uma maneira geral, e o comandante em qualquer ocasião específica, tem o direito de exigir que o rumo e os desígnios da política não sejam incompatíveis com esses meios. Esta não é, evidentemente, uma pequena exigência, mas por mais que possa afetar os propósitos políticos num determinado caso, nunca fará mais do que modificá-los. O propósito político é a meta, a guerra é o meio de atingí-lo, e o meio nunca deve ser considerado isoladamente do seu propósito. [...] Em primeiro lugar, é evidente que a guerra nunca deve ser imaginada como sendo algo autônomo, mas sempre como sendo um instrumento da política. [...] Em segundo lugar, esta maneira de encará-lo nos mostra como as guerras podem variar quanto à natureza das suas causas e às situações que lhes dão origem.” (CLAUSEWITZ, p. 91-92). Em Michel Foucault, contudo, a relação entre guerra e política é invertida – o autor ressalta, inclusive, que a noção de que “a política é a guerra continuada por outros meios” já era difundida na Europa nos séculos XVII e XVIII e, portanto, seria anterior e teria sido invertida por Carl von Clausewitz (FOUCAULT, 1999, p. 55). A política aparece como um meio para a continuidade da guerra, não mais deflagrada e violenta, mas revestida por uma narrativa de estabilidade e paz, ainda que marcada por tensões constantes e inerentes às relações de poder firmadas no tecido social. Foucault alega que se deve “redescobrir o sangue que secou nos códigos e, por conseguinte, [...] não reportar a relatividade histórica ao absoluto da lei ou da verdade, mas, sob a estabilidade do direito, redescobrir o infinito da história, sob a fórmula da lei, os gritos de guerra, sob o equilíbrio da justiça, a dissimetria de forças” (FOUCAULT, 1999, p. 66). A política, assim, serviria aos propósitos militares, como um modo de manter a organização e configuração das relações de poder pretendidas. Assumir um fim político implicaria tomar partido em um conflito permanente, razão pela qual não se pode assumir a guerra como um instrumento da política sem compreender esta como um campo de batalha e, portanto, sem entender a guerra como uma constante, da qual as epopeias militares constituem somente uma manifestação. O irromper da guerra não seria a utilização de um meio violento para atingir fins políticos, mas o reconhecimento de que a política já não é suficiente para solucionar um determinado conflito, apelando-se à alternativa belicosa. A guerra, enfim, como um instrumento de si mesma.

2 Um discurso consiste em uma impossibilidade histórica dos indivíduos significarem o mundo de forma distinta da qual o fazem, por acreditarem, cada um ao seu tempo, deter a verdade e a correta apreensão do que seria o “mundo real”. Discursos, de um lado, possibilitam nossa capacidade epistemológica de significar o mundo e, de outro, limitam-na epaço-temporalmente.

3 John Langshaw Austin “[...] distingue enunciados constatativos de enunciados performativos: os primeiros descrevem estados de coisas e são passíveis do critério de verificabilidade, isto é, ou são verdadeiros ou são falsos; os segundos, por sua vez, não constatam nem descrevem. Em verdade, os performativos executam, realizam. Assim, eles não estão submetidos ao critério de verificabilidade, quer dizer, a eles não cabem os termos verdadeiro/falso. Não obstante ele ser inverificável, o enunciado performativo pode ser ou feliz (happy) ou infeliz (unhappy). Ele é feliz, quando surte efeito e infeliz, quando é sem efeito”. In: Ferraz, 2010, p. 203-204.

4 “[...] enunciados performativos, que não afirmam nem negam nada, mas que realizam um acto quando são pronunciados, e a respeito dos quais não é possível aplicar o critério da boa ou má adequação aos factos para concluir da sua veracidade ou falsidade. Estes enunciados não descrevem nenhum estado de coisas, mas realizam qualquer coisa ao serem pronunciados e pelo facto de o serem”. In: Flores, 1994, p. 03.

5 O filósofo britânico, em sua obra Sobre a liberdade (On Liberty, 1859), apresenta quatro principais argumentos em favor da liberdade de opinião e expressão. Primeiramente, adota-se um critério de falibilidade humana, no sentido de que uma opinião censurada pode estar correta. Em segundo plano, aventa-se que, mesmo não sendo totalmente correta, a ideia censurada pode ser em parte correta, o que contribuiria para o aperfeiçoamento do juízo majoritário. Em terceiro lugar, na hipótese de a opinião censurada ser totalmente errônea, perde-se, através da censura, a possibilidade de reforçar a opinião veraz, cujo vigor é renovado após um debate bem sucedido. Por fim, afirma-se que uma concepção majoritária que não se encontre em constante questionamento, sejam estes corretos ou não, está sob o risco de enfraquecer e perder vigor, diante da ausência de reafirmações constantes. In: Mill: 2010, p. 109.

6 Há de se mencionar, a título de ressalva, o entendimento, deveras plausível, de que enxergar a “igualdade” in abstracto em conflito com a “liberdade” é um modo obtuso de relacionar ambos os conceitos. O fundamento da crítica passa pela noção de que a igualdade constituiria um sumplemento à liberdade, tendo em vista que mesmo liberais ou libertários propõem uma distribuição igualitária de direitos às pessoas e demandam uma “igualdade de liberdades”. Assim, pode-se afirmar que a discussão gira em torno da questão “igualdade de que?”, não sendo possível afirmar que a igualdade, de maneira genérica, opõe-se à liberdade, uma vez que “a liberdade está entre os possíveis campos de aplicação da igualdade e a igualdade está entre os possíveis padrões de distribuição de liberdade” (SEM, 1992, p. 16). A contraposição entre os conceitos, portanto, somente se dá na medida em que aquilo que estiver sendo distribuído de maneira igualitária não sejam liberdades.

7[...] é o juízo pelo qual se declara alguém como autor (causa libera) de uma ação, a qual toma o nome de fato (factum) e que está submetida às leis”. In: Kant, 1993; p. 42.

8 “Ora, como é muito difícil para os homens se deixar pacientemente espoliar de seus bens, conseguidos por um empenho honesto, e como é contrário às leis da equidade, tanto a humana quanto a divina, ser entregue como uma presa à violência e rapina dos outros, especialmente quanto não se carrega culpa nenhuma, e como nas ocasiões em que são assim tratados absolutamente não fazem parte da jurisdição do magistrado, mas pertencem inteiramente à consciência de cada homem, [....] o que mais se pode esperar desses homens, cansados dos males sob os quais trabalham, senão que afinal acabem pensando que lhes é legal resistir à força com a força, e assim defender o melhor que puderem e com armas seus direitos naturais [...]?”. In: Locke, 2007, p. 93.

9 “[...] chamaremos também a sociedade mágica, tribal ou coletivista, sociedade fechada; e a sociedade em que os indivíduos são confrontados com decisões pessoais chamaremos sociedade democrática”. In: Popper, 1987, I, p. 188 (itálico original).

10 [...] o poder é cada vez menos o direito de fazer morrer e cada vez mais o direito de intervir para fazer viver, e na maneira de viver, e no “como” da vida, a partir do momento em que, portanto, o poder intervém sobretudo nesse nível para aumentar a vida, para controlar seus acidentes, suas eventualidades, suas deficiências [...]. In: Foucault, 1999; p. 295.

11 Dentre outras medidas: Convenção Internacional para a Supressão de Atos de Terrorismo Nuclear (Nova Iorque, 14 de setembro de 2005 - Decreto Legislativo n. 267/2009); Convenção Internacional para a Supressão do Financiamento do Terrorismo (Assembléia Geral das Nações Unidas, em 9 de dezembro de 1999 - Decreto n. 5640/2005); Convenção Interamericana contra o Terrorismo (Barbados, 3 de junho de 2002 - Decreto Legislativo n. 890/2005); Convenção de Prevenção de Terrorismo (Washington, 02 de fevereiro de 1971 - Decreto do Executivo n. 3018/99).

12 “[...] o direito imputa às pessoas a tarefa de querer observar as normas como seu dever. Pessoa é aquele que é responsável; a capacidade de observar a norma se imputa à pessoa” (JAKOBS, 2007, p. 148, tradução livre e itálico original).

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