Direitos_Culturais3

RISCOS SOCIOAMBIENTAIS ORIUNDOS DA LIBERAÇÃO DE ORGANISMOS GENETICAMENTE MODIFICADOS NO AMBIENTE

SOCIO-ENVIRONMENTAL RISKS RELEVANT TO THE RELEASE OF GENETICALLY MODIFIED ORGANISMS IN THE ENVIRONMENT

Silvana Terezinha WincklerI

Ana Elsa MunariniII

I Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), Programas de Pós-graduação em Direito e em Ciências Ambientais da Unochapecó, Chapecó, SC, Brasil. Doutora em Direito. E-mail: silvanaw@unochapeco.edu.br

II Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), Chapecó, SC, Brasil. E-mail: anaelsa@unochapeco.edu.br

DOI: http://dx.doi.org/10.20912/rdc.v14i34.2991

Recebido em: 24.02.2019

Aceito em: 18.06.2019

Resumo: O Brasil é reconhecido internacionalmente como detentor de significativa parcela da biodiversidade do Planeta e como grande exportador de commodities agrícolas. A agricultura, na modalidade do agronegócio ou nos moldes das unidades familiares de produção, é uma atividade fundamental para a economia do País e para a segurança alimentar dos brasileiros. Este artigo tem como objetivo analisar os riscos oriundos dos Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) à natureza e à livre determinação camponesa, com ênfase na proteção legal conferida pelo Direito brasileiro. Adotam-se como metodologias a revisão de literatura e a pesquisa empírica, mediante realização de entrevistas com camponeses da região oeste de Santa Catarina vinculados a movimentos sociais do campo. Conclui-se que os OGMs representam uma ameaça à agricultura camponesa devido ao contágio das sementes crioulas. A legislação vigente não atende as necessidades de proteção das sementes, questão essencial à livre determinação camponesa.

Palavras-chave: Biossegurança. Livre determinação camponesa. Teorias do risco.

Abstract: Brazil is internationally recognized as having a significant share of the planet’s biodiversity and as a major exporter of agricultural commodities. Agriculture, whether in the agribusiness modality or in the form of family production units, is a fundamental activity for the country’s economy and food security for Brazilians. The objective of this article is to analyze the risks posed by Genetically Modified Organisms (GMOs), -when released into the environment - to the nature and peasant self-determination, with emphasis on the legal protection conferred by Brazilian Law. The literature review and the empirical research are used as methodologies, through interviews with peasants from the western region of Santa Catarina linked to social movements in the countryside. It is concluded that GMOs pose a threat to peasant agriculture due to the contagion of Creole seeds. The current legislation does not meet the needs of seed protection, an essential issue for peasant self-determination.

Keywords: Biosafety. Free peasant determination. Theories of risk.

Sumário: 1 Introdução. 2 Teorias do risco. 3 Uma abordagem dos transgênicos no Brasil. 4 Considerações finais. Referências.

1 Introdução

Os riscos decorrentes da introdução de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) na natureza são debatidos desde que essa biotecnologia começou a se popularizar na agricultura e ser apresentada como uma nova “revolução verde”. A revolução verde representou a introdução das sementes produzidas em laboratórios para cultivos homogêneos em larga escala, vendidas num pacote tecnológico que inseria fertilizantes, biocidas e equipamentos agrícolas. Esse pacote foi apresentado aos agricultores brasileiros a partir da década de 1960, como signo da modernização necessária para a superação do “atraso” representado pelas práticas agrícolas camponesas até então estabelecidas.

A revolução verde não cumpriu muitas de suas promessas, como as de erradicar a fome no planeta e de reduzir as desigualdades entre países desenvolvidos e países pobres. Os resultados constatados pela difusão da agricultura em escala industrial foram a concentração fundiária, a dependência tecnológica, a erosão genética, a contaminação do solo e dos recursos hídricos por agrotóxicos e fertilizantes; em poucas palavras, a expulsão de famílias camponesas da atividade e a contaminação ambiental.

Ante esse cenário, o presente trabalho tem como objetivo analisar os riscos representados pela difusão ambiental dos Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) à agricultura camponesa, notadamente àquela que resiste à utilização dessa tecnologia e opta pelo cultivo das sementes crioulas.

A livre determinação camponesa é compreendida como a possibilidade de decidir o que cultivar, quanto e como cultivar. A detenção das sementes é fundamental para assegurar as escolhas autônomas de agricultores e agricultoras que optam pela agricultura livre de OGMs. Questiona-se se tal autonomia está sendo ameaçada pela disseminação descontrolada de cultivares transgênicos, tendo-se em conta os riscos de contágio e de comprometimento das sementes crioulas conservadas pelos camponeses.

Metodologicamente, a pesquisa foi desenvolvida por meio de revisão de literatura e de pesquisa empírica, partindo de algumas abordagens da teoria do risco (GIDDENS, 1990, 1991, 2002; BECK, 2006; BECK; GIDDENS; LASH, 1997; DOUGLAS, 1991, 1994, 1996). O trabalho de campo foi desenvolvido no segundo semestre de 2015 e primeiro semestre de 2016; consistiu na realização de entrevistas com dez agricultores da região oeste de Santa Catarina vinculados a movimentos sociais do campo: Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e Movimento de Pequenos Agricultores (MPA).

Um dos maiores e mais conhecidos movimentos de mulheres da história do meio rural brasileiro, o MMC, surgiu em 1983 no estado de Santa Catarina, denominado, então, Organização de Mulheres Agricultoras (OMA). Posteriormente, passou a chamar-se Movimento de Mulheres Agricultoras (MMA) e, após 2004, já integrado a outras organizações do campo, Movimento de Mulheres Camponesas (MMC). Nascido sob forte influência da igreja Católica, em especial da Teologia da Libertação e das Comunidades Eclesiais de Base, buscava a libertação das mulheres, passando pelo reconhecimento da profissão, sindicalização e direitos previdenciários. Atualmente, insere em suas pautas de discussão a ameaça dos transgênicos à soberania alimentar e do uso intensivo de agrotóxicos à saúde humana e ambiental.

O Movimento dos Pequenos Agricultores teve sua origem no ano de 1995, da luta de agricultores atingidos pela seca que castigou as plantações no final de 1995 e início de 1996 no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. Organizaram-se no Rio Grande do Sul, à época, cinco acampamentos da seca, reunindo mais de 25 mil pequenos agricultores. Nasceu, assim, um movimento para lutar por mudanças na política agrícola, crédito subsidiado e seguro agrícola, e para construir um novo modelo de agricultura brasileira. Dentre os temas de preocupação do movimento, estão a conservação e reprodução em escala comercial das sementes crioulas, atividades levadas adiante por meio de uma cooperativa.

2 Teorias do risco

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo vivenciou o agravamento da crise ambiental, a chegada das mudanças climáticas, da manipulação genética, da escassez dos recursos naturais, dos processos biomoleculares e da contaminação das águas provocada pelo uso descontrolado de agentes poluidores em grande escala.

Várias fórmulas de interpretação da crise ambiental são correntes. Dentre elas, encontramos as teorias do risco apresentadas por autores como o sociólogo alemão Ulrich Beck (BECK; GIDDENS; LASH, 1997; GIDDENS, 2006), o sociólogo britânico Anthony Giddens (GIDDENS, 1990, 1991, 2002; BECK; GIDDENS; LASH, 1997), a antropóloga britânica Mary Douglas e o cientista político norte-americano Aaron Wildavsky (DOUGLAS; WILDAVSKY, 2012), e analisadas por pesquisadores brasileiros de diferentes áreas do conhecimento (GUIVANT, 2001, 2008; MATTEDI, 2002; LEITE; FAGÚNDEZ, 2008; AYALA; LEITE, 2004).

Ulrich Beck (BECK; GIDDENS; LASH, 1997, p. 15) diz da sociedade de risco: “É uma fase no desenvolvimento da sociedade moderna, em que os riscos sociais, políticos, econômicos e individuais tendem cada vez mais a escapar das instituições para o controle e proteção da sociedade industrial.” Beck fala de processos e mecanismos sociais de decodificação, percepção e prevenção contra riscos futuros que se originaram na modernidade como resultados de decisões humanas associadas à inovação tecnológica e ao desenvolvimento econômico gerado pela industrialização.

De acordo com Beck (BECK; GIDDENS; LASH, 1997, p. 21),

“As questões de risco não podem ser transformadas em questões de ordem, porque estas últimas se asfixiam, por assim dizer, por causa do pluralismo imanente das questões de risco e se metamorfoseiam sub-repticiamente por trás das fachadas da estatística, em questões morais, questões de poder e de puro decisionismo”.

A ideia de decisionismo, retomada por Beck (BECK; GIDDENS; LASH, 1997), encontra-se em Luhmann (1992) na abordagem do futuro. Para este autor, o futuro da sociedade depende da tomada de decisões e se transforma em risco à medida que as possibilidades de escolha são incrementadas. Viver nessa sociedade de risco significa viver em circunstâncias incertas criadas pelos próprios seres humanos. Logo, o presente só pode tentar dar conta do futuro por meio da probabilidade (LUHMANN, 1992, p. 52).

Beck traz o tema dos riscos para o centro da teoria social. Abordando a sociologia ambiental como chave para interpretar a atual fase da modernidade, destaca que os riscos derivados da intervenção humana no meio ambiente, como o efeito estufa, a poluição das águas e a ameaça da extinção de certas espécies, sinalizam para uma característica de alteração na relação entre humanos e meio ambiente.

Giddens (1991) parte da discussão acerca das características singulares da modernidade. No debate entre modernidade e pós-modernidade, sugere que ocorre uma radicalização da primeira, ou seja, emerge a alta modernidade, ou modernidade tardia. Esta é caracterizada pela intensificação de grandes forças responsáveis pelo dinamismo moderno, com destaque ao mecanismo de desencaixe. Este é o deslocamento das relações sociais de seus contextos locais e a reestruturação indefinida no tempo e no espaço. Existem dois tipos de mecanismos de desencaixe: os sistemas peritos, sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje; e as fichas simbólicas, meios de intercâmbio que circulam sem ter em vista as características dos indivíduos que lidam com eles (GIDDENS, 1991).

Quanto às alterações na distribuição dos riscos trazidos por esses mecanismos, o autor aponta para a globalização do risco em intensidade e extensão, baseando-se em algumas conclusões de Beck (BECK; GIDDENS; LASH, 1997) quanto à sociedade de risco: os riscos não obedecem a divisões de classe ou fronteiras nacionais. O risco, na modernidade tardia, significa uma consciência de existência de um lado sombrio da modernidade.

No que tange às preocupações ambientais, para Giddens (1990) e Beck (BECK; GIDDENS; LASH, 1997), o conceito de “risco” ocupa uma posição central para entender as transformações e os limites da modernidade. Os autores enfatizam que as questões ecológicas perpassam a vida social e são reordenadas pela ação humana.

Dessa maneira, afirmam que,

“[...] se houve um dia em que os seres humanos souberam o que era a natureza, agora não o sabem mais. Atualmente, o que é natural está tão intrincadamente confundido com o que é social, que nada mais pode ser afirmado como tal, com certeza”. (BECK; GIDDENS; LASH, 1997, p. 8).

Para Leite e Fagúndez (2008), as teorias do risco representam a tomada de consciência da sociedade diante do contínuo crescimento econômico e do esgotamento do modelo de produção, o qual pode, a qualquer tempo, resultar em risco permanente de desastres e catástrofes, devendo ser estabelecidos limites: “[...] a sociedade moderna criou um modelo de desenvolvimento tão complexo e avançado que faltam meios capazes de controlar e disciplinar esse desenvolvimento” (LEITE, 2008, p. 132).

Cumpre ponderar que, nessa sociedade, o sistema jurídico ambiental acaba por exercer uma função figurativa diante da falta de efetivação das proteções garantidas em seu ordenamento, trazendo, até mesmo, falsos alívio e segurança à sociedade (LEITE, 2008, p. 135). “Assim, sendo o aspecto econômico um dos mais valorizados e presentes em boa parte do mundo, é compreensível que o ambiente ainda fique, na esfera jurídica, refém das necessidades de ordem econômica.” (LEITE, 2008, p. 140).

Nesse sentido, Beck (BECK; GIDDENS; LASH, 1997) aborda a crise ecológica como crise institucional profunda da sociedade industrial, que não sabe, ou não quer entender, os riscos que produz. Já Giddens (1990) apresenta a crítica à modernidade como algo além da constatação da inexistência de formas dignas de vida para a maioria das pessoas, mas como revelações dos perigos criados pelo avanço científico, com a decorrente produção de riquezas materiais e distribuição dessas mesmas riquezas, com os riscos correspondentes inclusos.

Outra característica é o aparecimento de ambientes de risco institucionalizado, em que o risco não surge como acidente, mas é parte inerente a algumas atividades, como a participação no mercado de investimentos, em que os investidores procuram prever a ação alheia para maximizar seus lucros (GIDDENS, 2002).

Giddens (1991) procura mostrar como o risco está vinculado a outros aspectos fundamentais da natureza das instituições modernas, como as relações de confiança que geram sentimentos de segurança. Identifica dois tipos de relação de confiança: a) confiança nos sistemas abstratos, que adota a forma de compromissos sem a presença daqueles que operam esses sistemas – sem rostos; b) confiança em pessoas, que são compromissos assumidos em momentos de encontro com os peritos nos locais denominados pontos de acesso – com rostos.

Os mecanismos de desencaixe trazem algumas características da vivência do risco: a) o reconhecimento do risco como risco, impedindo que seja percebido como destino; b) a consciência dos riscos pelo público: reconhecimento por parte dos leigos de que todos os sistemas peritos possuem lacunas e, portanto, não possuem controle pleno das consequências de suas decisões (GIDDENS, 1991).

O desenvolvimento industrial acelerado verificado após a Segunda Guerra Mundial foi acompanhado pela percepção social de riscos e perigos que, até então, não figuravam no imaginário das sociedades, mesmo das mais desenvolvidas. A intensificação das comunicações e o acesso, em tempo real, às informações sobre catástrofes contribuem para que as consequências indesejáveis da sociedade tecnológica sejam amplamente conhecidas e temidas.

Guivant (2001, p. 97) faz uma análise crítica da proposta teórica de Beck, apontando a falta de alternativa. Mesmo reconhecendo a importância do diagnóstico da modernidade como sociedade de risco, no plano das alternativas, “[...] só vislumbra algumas que permanecem, sobretudo num terreno profético e bem-intencionado na direção de uma desmonopolização do conhecimento científico.” Assim, “[...] a teoria global dos riscos ainda carece de uma abordagem com maior potencialidade explicativa das complexas relações entre os processos de globalização dos riscos e as manifestações específicas que estes podem adquirir em diferentes sociedades” (GUIVANT, 2001, p. 100).

Os Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) aparecem como um exemplo dos limites atuais da técnica e da ciência na análise dos riscos que envolvem alto grau de incertezas.

Ao abordar as escolas de riscos, Alexandra Aragão (2008) destaca que os OGMs representam um exemplo de escola de riscos retardados, irreversíveis e potencialmente globais.

“A libertação no ambiente de OGMs, pela utilização agrícola de variedades vegetais geneticamente modificadas, comporta riscos de poluição genética, contaminação de espécies agrícolas convencionais pelos genes modificados. A contaminação, que pode ocorrer por processos naturais como polinização ou ventos fortes, pode afetar geneticamente as espécies, pondo em perigo os equilíbrios ecológicos e a diversidade biológica”. (ARAGÃO, 2008, p. 25).

É importante mencionar que as preocupações observadas no trabalho de campo quanto aos riscos dos OGMs estão normalmente mescladas à angústia ante o uso de agrotóxicos pelos vizinhos que praticam a agricultura convencional. Os entrevistados frequentemente associam essas duas ameaças à iminência de danos para a saúde humana e a biodiversidade.

O risco é percebido nos relatos das entrevistadas: “Fiquei sabendo sobre essa questão das sementes transgênicas. E deu até um pavor da gente pensar em ficar sem nossas sementes crioulas e ter que usar somente sementes transgênicas.” (Agricultora 6).

Especialmente se consideramos o cultivo de sementes crioulas, podemos visualizar um cenário de conflito global em torno dos riscos. Como se pode observar na fala de uma entrevistada: “É uma ameaça, porque a gente não sabe como os transgênicos vão agir.” (Agricultora 4).

Outra entrevistada reafirma tal percepção:

“É uma ameaça muito grande, porque não sabemos até quando vamos poder produzir essa semente [crioula]. Mas a gente espera que o transgênico termine antes. Porque do jeito que está sendo destruído por causa dessas mudanças eu acho que ele não vai viver mais muito. Porque nós queremos que o nosso viva mais, porque imagina, além das intempéries, que hoje em dia o meio ambiente está muito descontrolado. Nós temos dificuldade de conseguir a semente, que às vezes ela não produz direito, e não temos recurso nenhum, temos que fazer por conta, ainda tem os transgênicos para incomodar.” (Agricultora 5).

Entendemos, como Guivant (2001), que a teoria global dos riscos nos coloca diante do desafio de traduzir as críticas em alternativas operacionais, pois existem movimentos de resistência à ordem posta e esse conflito entre leigos e peritos envolve problemas culturais, influências políticas, poder das corporações, com efeitos éticos e econômicos.

Adotamos, neste trabalho, a perspectiva culturalista do risco, em consonância com a abordagem de Douglas (1996), Douglas e Wildavsky (2012), por entender que essa teoria atende melhor os objetivos propostos quanto à percepção dos camponeses entrevistados acerca dos riscos relacionados aos OGMs.

A abordagem culturalista busca superar a ideia de que os riscos devem ser determinados por especialistas, uma vez que demandam uma atividade técnica e objetiva. Assim sendo, as pessoas leigas só poderiam ter um ponto de vista irracional sobre riscos e perigos.

Juntamente com o cientista político Aaron Wildavsky, Mary Douglas desenvolveu a teoria culturalista, na década de 80 do século passado, na qual apresenta o conceito de “percepção social do risco” como um processo social e cultural vinculado ao sistema de crenças e valores do grupo. Risk and Culture, An Essay on the Selection of Technological and Environmental Dangers, foi publicada em 1982. A edição brasileira (Risco e cultura - um ensaio sobre a seleção de riscos tecnológicos e ambientais) é de 2012. Antes desse livro, em Purity and Danger, de 1966, a autora analisou o conceito de “pureza” como um princípio que desempenha papel crucial no modo de organização de cada sociedade. A perspectiva culturalista adotada em sua teoria do risco é desenhada nessa obra seminal. Desde então, aborda a sociedade contemporânea por meio de seus símbolos, ritos e formas de perceber e classificar os acontecimentos. Em Risk Acceptability According to the Social Sciences, de 19861, aprofunda a ideia de “percepção do risco” como experiência eminentemente social.

Ao tratar dos efeitos dos riscos tecnológicos na área ambiental, Douglas e Wildavsky (2012) sinalizam que o estabelecimento dos riscos considerados relevantes por um grupo se dá em conformidade com as formas sociais por ele instituídas. A aceitabilidade dos riscos não decorre de fatores objetivos, nem é estritamente subjetiva, mas uma construção social. De um modo ou de outro, diante do risco, sempre prevalece a incerteza. Não obstante, Douglas (1996, p. 57, tradução nossa) observa:

“Os resultados melhor assentados da investigação do risco mostram que os indivíduos têm um sentido forte, porém injustificado, de imunidade subjetiva. Em atividades muito familiares existe a tendência a minimizar a probabilidade de maus resultados.”

Em outras palavras, as pessoas tendem a desconsiderar os perigos cotidianos e a temer aqueles mais infrequentes e de baixa probabilidade. Esta seria uma estratégia adaptativa da espécie humana, uma vez que estar atento permanentemente a toda e qualquer forma de risco demandaria um esforço sobre-humano e acabaria por diluir “perigosamente” a atenção (DOUGLAS, 1996, p. 58). Assim sendo, decorrerá ainda muito tempo antes que a investigação no campo da psicologia apresente contribuições à compreensão de “processos cognitivos altamente socializados tais como a percepção do risco” (1996, p. 68, tradução nossa). Nas palavras da autora,

“A atividade de um animal modifica muito seu entorno. Isto inclusive é mais exato em relação aos seres humanos. Mas uma diferença fundamental é o fato de que a experiência que os humanos têm de seu entorno é mediada por categorias conceituais elaboradas durante a interação social. [...] Para os animais, as condições físicas são um objeto direto da atividade perceptiva, mas para os seres humanos esta linha entre perceptor e objeto percebido é problemática. Para os seres humanos, a codificação não está controlada de forma genética, mas mediante a intervenção de imperativos culturais”. (DOUGLAS, 1996, p. 68, tradução nossa).

Mediante as contribuições da perspectiva culturalista de abordagem do risco, foi possível elaborar a hipótese de que as ações dos movimentos sociais do campo, neste caso especificamente do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), repercutem na percepção social dos riscos à biodiversidade associados ao cultivo de OGMs. As entrevistas realizadas evidenciam a preocupação com a contaminação das sementes crioulas pelas plantas geneticamente modificadas. Porém, não se observou, nas entrevistas, a existência de ações capazes de romper com o risco. Ou seja, no cotidiano, os camponeses tendem a se adaptar à situação de risco, mantendo preocupação e vigilância; em nenhum momento houve, no contexto deste estudo, enfrentamento para evitar a situação.

Relata a Agricultora 7:

Nós ficamos cuidando os vizinhos agora. Naquela vez que perdemos tudo as sementes crioulas, foi porque nós não sabia que ele tinha plantado transgênicos, só descobrimos quando o milho já estava grande, alto, que descobrimos que era transgênico que ele tinha plantado ali, daí não tinha mais o que fazer. E agora que a gente sabe que ele planta a gente fica olhando pra ver, ou pesquisando para ver quando que ele vai plantar. Se ele fala que vai plantar no mês de setembro a gente planta ou em agosto ou em novembro, que faz um mês de diferença a fim de evitar o contágio.

Observa-se, nesse relato, um importante elemento de resistência aos riscos: após uma situação fática, de contaminação das sementes crioulas por sementes transgênicas, pela polinização na mesma época, por não saber que o vizinho tinha plantado sementes transgênicas, a Camponesa entrevistada passou a monitorar a lavoura vizinha, evitando o risco de contaminação das suas sementes crioulas.

Esse monitoramento exige processos de investigação e observação. A opção de plantar mais cedo ou mais tarde eleva o risco de a plantação ser alvo de intempéries climáticas (estiagem, chuva, geada, vento). E, quando se trata de pequenas unidades de produção, a perda de produtividade significa o comprometimento da renda familiar, elevando a insegurança financeira, pela perda da qualidade e quantidade de alimentos para as famílias, além de atingir diretamente o modo de vida e os hábitos de plantar e colher.

3 Uma abordagem dos transgênicos no Brasil

A Lei n. 8.974, de 05 de janeiro de 1995, disciplinou legalmente o tema da Biossegurança e Biogenética, além de regular os incisos II e V, §1º do art. 225 da CF/88. Mas essa lei não foi aplicada devidamente, conforme destaca Derani (2005, p. 12):

“A lei n. 8.974/95, que estabelece normas para o uso das técnicas de engenharia genética e liberação no meio ambiente de organismos geneticamente modificados, traz um tipo penal que pela falta de tecnicidade jurídica na sua redação, tem sua aplicação inviabilizada, fazendo com que, na prática, não exista a criminalização da disposição indevida dos OGMs”.

Após a edição da referida lei, surgiram polêmicas, haja vista ter sido criada, no âmbito da Presidência da República, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio)2, órgão consultivo sobre a liberação no meio ambiente de OGMs.

No que tange aos princípios constitucionais, a referida lei enfatiza de forma expressa, no parágrafo único do art. 163, o princípio da prevenção, ao determinar que, no caso de existência de riscos graves para a saúde do homem ou dos animais, para as plantas ou para o meio ambiente, a CTNBio determinará a paralisação imediata da atividade.

O Decreto 1752/95, que regulamentou a Lei 8.974/95, dispôs sobre as competências e a composição da CTNBio, mantendo seu caráter consultivo, assim como sua vinculação à Secretaria Executiva do Ministério da Ciência e Tecnologia. Nesse sentido, vale citar alguns dos pontos considerados polêmicos, como a discricionariedade conferida a um órgão consultivo subsidiário, no caso a CTNBio, determinando que esta poderá “exigir como documento adicional, se entender necessário, estudo prévio de impacto ambiental [...] de projetos que envolvam a liberação de OGMs no meio ambiente” (AMORIM, 2005, p. 116).

No ano de 1996, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), extrapolando sua competência normativa, disciplinou, por meio da Instrução Normativa n. 03, a liberação planejada de organismos geneticamente modificados no meio ambiente. Segundo Amorim (2005, p.118),

“[...] ao regular a liberação intencional de OGMs no meio ambiente, agiu absolutamente fora dos padrões de precaução impostos pela Constituição Federal e pela Lei de Biossegurança, quer dizer, adotou postura antecipadamente permissiva, [...] sem que a estas decisões fosse exigido qualquer padrão mínimo de prudência ou parâmetro balizador”.

Em 1998, ano em que foram promulgadas as disposições da Convenção de Biodiversidade no ordenamento jurídico brasileiro (Decreto 2.519/98), a CTNBio autorizou, por meio da Instrução Normativa n. 18, a liberação do cultivo comercial da soja geneticamente modificada Roundup Ready (RR), resistente ao herbicida Roundup, ambos fabricados pela multinacional Monsoy Ltda. Tal decisão foi o marco inicial da liberação do plantio de sementes transgênicas no Brasil, baseada no Parecer Técnico favorável da CTNBio4 que destacou apenas a transformação genética da soja RR, principalmente a tolerância ao herbicida glifosato, sem menção aos impactos ambientais, por serem desconhecidos no teste de laboratório. (COMISSÃO TÉCNICA NACIONAL DE BIOSSEGURANÇA, 2008). Esse fato teve repercussões imediatas.

“[...] a isenção dada à soja Roundup Ready certamente coloca em sério e iminente risco a biodiversidade brasileira e a saúde humana, uma vez que, ao revés de qualquer atitude de precaução, municia a proprietária da patente do OGM mencionando contra qualquer tentativa de verificação dos riscos potenciais de seu produto. Desta forma, somente após a evidência incontestável dos danos que tal organismo pode causar à biosfera e à vida humana é que se poderá adotar medidas para a sua retirada do mercado. Amorim” (2005, p. 120-121).

Durante a vigência da Lei n. 8.974/1995, Lei de Biossegurança revogada pela Lei n. 11.105, de 2005 (BRASIL, 1995), ocorreram intensos debates, especialmente gerados por ações judiciais acerca da liberação de OGMs levadas ao Poder Judiciário. Foi o caso da ação civil pública5 que conseguiu suspender a liberação comercial da soja Roundup Ready, da empresa Monsanto, prestes a acontecer em 1998, alterando o curso da história da introdução dos transgênicos no Brasil por quase cinco anos, em razão da falta de prévio Estudo de Impacto Ambiental e de avaliação de riscos à saúde.

Do mesmo modo, houve a contribuição de estudos e pesquisas realizados, como a obra Riscos dos Transgênicos, organizada por Frei Sérgio Görgen (2000) com participação de Rubens Nodari e Pedro Guerra, material utilizado pelos movimentos sociais para embasar o debate sobre os riscos dos OGMs, haja vista ter linguagem de fácil compreensão. Destacamos o importante papel desses pesquisadores, em especial Rubens Nodari, nas intervenções em jornais de circulação local6, regional7 e nacional8.

Em 2001, a CTNBio editou a Instrução Normativa n. 20, com o objetivo de disciplinar a avaliação da segurança alimentar de plantas geneticamente modificadas ou de suas partes. A comissão foi criticada por organizações de saúde e vigilância sanitária, haja vista já ter ocorrido liberação do plantio, comercialização e transporte de plantas geneticamente modificadas, sem norma ou critérios que as regulamentassem.

As ações judiciais contribuíram para que o debate sobre os transgênicos chegasse à sociedade, mas, por outro lado, o embate travado no Judiciário culminou com uma forte pressão para a mudança da Lei de Biossegurança, concentrando o poder decisório nas mãos de um pequeno colegiado de cientistas (CTNBio) e facilitando a liberação de OGMs no País.

Em 26 de março de 2003, o Governo Federal editou a Medida Provisória n. 113 (BRASIL, 2003a), autorizando a comercialização de toda a safra daquele ano, que incluía cultivares transgênicos, ilegalmente introduzidos no País. A referida Medida Provisória foi posteriormente convertida na Lei n. 10.688, de 13 de junho de 2003 (GUIVANT, 2008, p. 255).

Ferreira (2008, p. 172) destaca que

“[...] a Medida Provisória nº 113/03 contrariou decisão judicial9 válida e eficaz que ordenava a realização do estudo de impacto ambiental antes do plantio em escala comercial da soja transgênica, o que confirma que a efetiva proteção do meio ambiente depende simultaneamente de compromissos jurídicos, políticos e sociais”.

Idêntica posição é a de Ayala e Leite (2004, p. 181-182):

“[...] o cancelamento da eficácia dos instrumentos de gestão de riscos é tão visível, que chegou a ser reproduzido textualmente no art. 1º, da Lei nº 10.688/03, excluindo expressamente a safra de soja de 2003, das restrições e do regime de segurança biológica imposto pela Lei nº 8.974/95. É a manifestação máxima da irresponsabilidade organizada no contexto da atual política ambiental brasileira”.

A situação das sementes transgênicas no País, em especial a soja, não se resolveu com a edição da Lei n. 10.688/03, sendo necessária a edição da Medida Provisória (MP) n. 131, de 25 de setembro de 2003, na qual o Governo Federal estabeleceu normas para o plantio e a comercialização da produção de soja, transgênica ou convencional, da safra do ano de 2004 (BRASIL, 2003b). A referida MP foi posteriormente convertida na Lei n. 10.814/2003.

Pouco depois da edição da segunda MP, foi enviado ao Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 2.401, de 2003, propondo estabelecer um novo marco legal para regular as atividades envolvendo organismos geneticamente modificados em território nacional. Enquanto o projeto de lei tramitava no Congresso Nacional, o Presidente da República editou, no dia 14 de outubro de 2004, a Medida Provisória n. 223, autorizando o plantio e a comercialização da produção de soja geneticamente modificada da safra de 2005 (BRASIL, 2004).

Da análise de tais fatos, Fernandes (2009, p. 26) evidencia:

“[...] os primeiros indícios de plantios ilegais na região Sul do País são de 1996. A soja RR só veio a ser liberada definitivamente em 2005 com a aprovação da Lei de Biossegurança. Ou seja, a autorização definitiva veio do Congresso Nacional, e não de decisão baseada na biossegurança ou em sua conveniência sócio-econômica. Entre 2003 e 2004, o Presidente Lula editou três medidas provisórias legalizando os plantios ilegais de soja transgênica”.

Observa-se que a mensagem da Casa Civil, na edição da MP/223, demonstra que o Estado Brasileiro era conhecedor do descumprimento da Lei e da prática de atos ilegais, como o contrabando de sementes, e em nenhum momento visava punir os infratores. Pelo contrário, buscava meios para legalizar o ato ilegal até então praticado (FERNANDES, 2005).

Neste contexto de debates jurídicos, técnicos e políticos, além dos pesquisadores já citados, percebe-se a contribuição, que iniciou nesse período, da pesquisadora Juliana Ferraz da Rocha Santilli, com destaque para seu estudo sobre a proteção jurídica à biodiversidade e aos conhecimentos tradicionais associados, à agrobiodiversidade, assim como aos direitos dos agricultores.

Observa-se, nesse cenário, o debate entre dois projetos de desenvolvimento para o campo. Ou seja, de um lado o “pacote” agronegócio/monocultura /biotecnologia; de outro, a agrobiodiversidade/agroecologia/projeto popular de agricultura. Nesse sentido, um grupo de organizações da sociedade civil brasileira se juntou ao Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) e ao Greenpeace, que desde antes já realizavam campanhas de esclarecimento sobre o tema; em conjunto, organizaram a Campanha Nacional por um Brasil Livre de Transgênicos10, atualmente composta por mais de 85 entidades11 de todo o Brasil que representam consumidores, ambientalistas, agricultores e movimentos sociais do campo.

O objetivo dessa rede foi disseminar informações sobre os impactos e riscos dos transgênicos e, ao mesmo tempo, apoiar a construção de um modelo mais sustentável de agricultura baseado na agroecologia. A importância da campanha é reconhecida pelos Movimentos Sociais do Campo, que utilizam seus materiais de divulgação, tais como os informativos, para orientar camponeses e dialogar sobre os riscos, a fim de que estes sejam conhecidos e estudados e para que a sociedade participe dos processos de tomada de decisão. Assim ocorreu no caso do milho transgênico no Brasil, que teve início em 2007, com a aprovação das três primeiras variedades com resistência ao ataque de lagartas: a campanha teve papel importante para repassar as informações à sociedade civil.

Cumpre recordar que a liberação comercial do milho geneticamente modificado, denominado Liberty Link, constante do Parecer Técnico CTNBio n. 987/2007, no processo administrativo n. 12000.005154/1998-36, sofreu muita resistência da sociedade. No mesmo ano, entidades ligadas aos agricultores e consumidores12 protocolizaram a ação civil pública n. 2007.70.00.015712-8/PR, pleiteando a suspensão dos efeitos da autorização, bem como a abstenção dessa comissão quanto à liberação comercial de milho transgênico até que fossem estabelecidas as normas técnicas de liberação comercial de OGMs e adotadas medidas de biossegurança para garantir a coexistência das variedades orgânicas, convencionais ou ecológicas com as variedades transgênicas. O pleito liminar foi parcialmente acolhido13 e, em razão dessa determinação, a CTNBio elaborou as Resoluções Normativas n. 3 e 4, que dispõem sobre o monitoramento de lavouras transgênicas e as distâncias mínimas entre essas lavouras e as convencionais, orgânicas ou ecológicas.

Da leitura dos artigos 1º e 2º da Resolução n. 4, observa-se que a única regra de coexistência prevista pela CTNBio foi o estabelecimento de distâncias mínimas de isolamento entre as espécies. E, mesmo não atendendo rigorosamente o estabelecido em decisão judicial, pois só determinou essas distâncias mínimas, a CTNBio liberou outro tipo de milho, o MON 810 da Monsanto, em descumprimento à decisão anterior para que se abstivesse de autorizar qualquer pedido de liberação comercial de milho transgênico sem as mencionadas medidas de biossegurança, fato que levou o Poder Judiciário a intimar a União ao cumprimento da liminar nos seus exatos termos.

Nesse sentido, os debates no Judiciário levaram a decisão ao TRF da 4ª Região (Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina), por meio de interposição de agravos de instrumento (2007.04.00.026126-4/PR e 2007.04.00.026471-0/PR), nos quais os desembargadores decidiram afastar a liminar concedida pelo juízo do Paraná, permitindo a liberação comercial sob os fundamentos de inexistência de periculum in mora e ausência de verossimilhança do alegado na inicial em face do exercício das competências legais da CTNBio.

Mesmo assim, e após as resoluções n. 3 e 4 da CTNBio, que determinam as distâncias mínimas de isolamento espacial entre cultivos de milhos transgênicos e não transgênicos, constatou-se no estado do Paraná a contaminação do milho por material transgênico, inclusive nas lavouras em que o isolamento regulamentado pela CTNBio foi aplicado. De acordo com o Plano de Monitoramento do Fluxo Gênico das Lavouras de Milho Transgênico no Estado do Paraná, realizado pela Secretaria da Agricultura e do Abastecimento (SEAB/PR), nos anos 2009 e 2010, registrou-se contaminação genética a 120 metros, mesmo com a bordadura exigida, ficando patente o descompasso entre a norma administrativa e a realidade, a tornar inócua qualquer fiscalização do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, MAPA (PARANÁ, 2010).

O referido plano sofreu críticas de cientistas e pesquisadores, como as constantes do parecer técnico elaborado pelo Instituto Agronômico do Paraná (IAPAR), fornecido à CTNBio, dando conta das deficiências da referida avaliação e dos motivos pelos quais deveria ser desconsiderado.

Todavia, a desembargadora, em voto proferido na Apelação Civil n. 5020884-11.2013.404.7000/PR (TRF 4ª REGIÃO, 2014), destaca:

“[...] a norma emitida pela CTNBio diz respeito tão somente a distâncias entre uma e outra lavoura e pretende regular todas as plantações de milho transgênico no Brasil, um país de dimensões continentais, com mais de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, sete biomas e diversos tipos de relevo, clima e regimes de vento, os quais, a meu ver, geram diferentes efeitos nas condições que proporcionam a polinização do milho e a transferência de genes entre um e outro plantio. Nessa perspectiva, a Resolução hostilizada não parece considerar o real impacto das diferentes especificidades sobre as plantações em cada região do País, tal como exigido pela Lei”. (TRF 4, 5020884-11.2013.404.7000/PR, Voto Desembargadora Vivian Josete Pantaleão Caminha).

Segundo dados da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio, 2017, no período de 2005 a 2016, foram aprovadas, para comercialização, 56 plantas geneticamente modificadas: nove variedades de soja; doze de algodão; uma de feijão; uma de eucalipto; trinta e três de milho.

4 Considerações finais

Nesta pesquisa, observamos que a biotecnologia vem suscitando um intenso debate nos campos social e jurídico, tendo-se em conta a magnitude dos impactos que os Organismos Geneticamente Modificados podem ocasionar na biota e, consequentemente, na sociobiodiversidade.

A ênfase do estudo recaiu sobre os impactos das biotecnologias na agricultura familiar, notadamente entre camponeses que fizeram a opção pela agroecologia. A liberação de OGMs tem o potencial de inviabilizar o projeto de agricultura camponesa fundado na autonomia e na soberania alimentar, que depende da detenção e conservação das sementes crioulas. Estas estão ameaçadas pela transgenia, que se dispersa em sentido horizontal (no espaço) e vertical (no tempo), comprometendo o futuro de significativa parcela da população brasileira.

A perspectiva culturalista da teoria do risco, aqui apresentada, levou-nos a indagar acerca da percepção dos riscos associados a essas biotecnologias pela população camponesa. Constatamos que a disseminação, pelos movimentos sociais do campo, das informações oriundas de estudos científicos possibilitou a inserção de agricultores familiares no debate sobre Organismos Geneticamente Modificados, especialmente os transgênicos.

Outro resultado deste estudo, igualmente significativo, foi a constatação de que, como apontado por Ayala e Leite (2014), a legislação ambiental não dá conta de assegurar aos bens ambientais a proteção preconizada nos documentos internacionais (declarações e convenções sobre meio ambiente) e na Constituição Federal Brasileira. A enxurrada legislativa, exaustivamente analisada, conduziu, efetivamente, a um estado de irresponsabilidade organizada, como sinalizado pelos autores.

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1 Neste trabalho, utilizamos a tradução espanhola dessa obra (DOUGLAS, 1996).

2 “Art. 1º A. Fica criada, no âmbito do Ministério da Ciência e Tecnologia, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, CTNBio, instância colegiada multidisciplinar, com a finalidade de prestar apoio técnico consultivo e de assessoramento ao Governo Federal na formulação, atualização e implementação da Política Nacional de Biossegurança relativa a OGM.” (Incluído pela Medida Provisória nº 2.191-9, de 23.8.2001).

3 “Art. 16 [...] Parágrafo único. Verificada a existência de riscos graves para a saúde do homem ou dos animais, para as plantas ou para o meio ambiente, a CTNBio determinará a paralisação imediata da atividade.”

4 Publicado pelo Comunicado 54, no Diário Oficial da União de 01 de Janeiro de 1998, Seção 3, página 59.

5 A Ação Cautelar n. 1998.34.00.0276818 e a Ação Civil Pública n. 1998.34.00.027682-0 foram movidas pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e pela Associação Greenpeace, que ingressou na ação como assistente do autor, em face da União Federal e da Monsanto, que ingressou como assistente da ré.

6 TRANSGÊNICOS: há riscos para a saúde humana? Jornal Cooperalfa, Chapecó, v. 13, n. 140, p. 2, 1 ago. 2000.

7 PLANTAS transgênicas: quais são os riscos? Jornal do Continente, Florianópolis, v. 1, n. 2, p. 15, 1 mar. 2000.

8 PRECAUÇÃO, Ministros e Plantas transgênicas (II). Gazeta Mercantil, São Paulo, p. 2, 8 ago. 2000.

9 Em junho de 2000, o juiz Antônio Prudente concedeu liminar impedindo a comercialização dos cultivares RR até que o governo federal definisse as regras de segurança, rotulagem e comercialização e que fosse apresentado um estudo de impacto ambiental, sendo que esta ficou vigente até 12 de agosto de 2003. Disponível em: http://www.cnpso.embrapa.br/download/cronologia_sojarr.pdf. Acesso em: 20 fev. 2014.

10 Observar no “Boletim por um Brasil Livre de Transgênicos” que, desde 1999, a AS-PTA produziu semanalmente até 2014. Por meio do boletim, observam-se o noticiado na imprensa e as experiências em agroecologia que mostram por que os transgênicos não são solução para a agricultura. (Disponível em: <http://aspta.org.br/itens-de-campanha/boletim/>. Acesso em: 14 ago. 2016.)

11 Action Aid Brasil; AS-PTA; Associação Biodinâmica; Centro Ecológico IPÊ; ESPLAR; Fase MT; FETRAF; Fórum Nacional de Entidades Civis de Defesa do Consumidor; Greenpeace; Idec; INESC; Instituto Biodinâmico; Terra de Direitos; Via Campesina (cada uma dessas organizações representa uma rede de outras organizações).

12 AS-PTA (Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa); Associação Nacional de Pequenos Agricultores; Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor; Terra de Direitos.

13 Decisão 29 do evento 4 dos autos originários – n. 5000629-66.2012.404.7000.

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