Revista_Direitos_Culturais_-_v._16,_n._34

ESPECIFICIDADES DO CONCEITO “DEMOCRACIA” EM KELSEN

SPECIFICITIES OF THE CONCEPT “DEMOCRACY” IN KELSEN

Matheus Pelegrino da SilvaI

I Faculdade de Direito da Albert-Ludwigs-Universität Freiburg, Freiburg, Alemanha. Pós-Doutorado no exterior junto à Faculdade de Direito da Albert-Ludwigs-Universität Freiburg e doutor em Direito e em Filosofia. E-mail: mathpelegrino@hotmail.com

DOI: http://dx.doi.org/10.20912/rdc.v14i34.3012

Recebido em: 11.03.2019

Aceito em: 09.08.2019

Resumo: O presente artigo apresenta o modo como Kelsen elabora e desenvolve sua definição de democracia e as particularidades envolvidas na definição que ele propõe. Esse objetivo é desenvolvido por meio da exposição e análise de textos de Kelsen nos quais são oferecidas considerações sobre a forma democrática de governo. O método empregado consiste na pesquisa bibliográfica dos escritos de Kelsen sobre o tema. Indica-se que a referência inicial para a análise kelseniana do termo “democracia” esta assentada em certa compreensão da definição de democracia da Grécia Antiga. Por meio dessa análise são destacados dois elementos importantes para o estudo, “povo” e “autonomia política”. Analisa-se então os significados possíveis desses elementos e é indicando que existe certa flexibilidade da atribuição de sentido aos mesmos. Finalmente, como reflexo das observações relativas às particularidades dos termos “povo” e “autonomia política” se esclarece como Kelsen concebe o significado do conceito “democracia”.

Palavras-chave: Autonomia política. Democracia. Kelsen. Povo.

Abstract: The following article presents how Kelsen elaborates and develops his definition of “democracy” and indicates the particularities involved in the definition that he offers. This purpose is attained through the display and analysis of Kelsen’s texts on the democratic form of government. The employed method consists in the bibliographical research of Kelsen’s writings on the subject. It is indicated that the initial reference for the Kelsenian analysis of the meaning of the concept “democracy” will be based on a certain understanding of the Ancient Greek definition for “democracy”. Through this analysis two important elements for the investigation are indentified, “people” and “political autonomy”. The possible meanings for these elements are analyzed and a certain flexibility in the attribution of meanings for them is indicated. Finally, as a reflex of the observations about the peculiarities of the concepts “people” and “autonomy” it is clarified how Kelsen conceives the meaning of the concept “democracy”.

Keywords: Democracy. Kelsen. People. Political autonomy.

Sumário: 1 Introdução. 2 O emprego da noção de democracia da Grécia Antiga. 3 Governo democrático e a meta da igual liberdade dos governados. 4 Defesa das metas autonomia e igualdade. 5 Democracia não como o governo de todos, mas sim como o governo da maioria. 6 A liberdade intelectual como elemento essencial de um governo democrático. 7 A espécie de autonomia presente nos governos democráticos. 8 Conclusão. Referências.

1 Introdução

Kelsen dedica uma parcela significativa de seus escritos às reflexões sobre a democracia, contudo ele não apresenta de modo direto e unificado qual seria sua definição para esta forma de governo. O presente texto se origina dessa constatação e objetiva apontar elementos em escritos de Kelsen que permitem esclarecer de que modo se configura a sua perspectiva com respeito ao significado do conceito “democracia”, bem como as razões que subjazem a seu modo de proceder com respeito a esta matéria.

2 O emprego da noção de democracia da Grécia Antiga

No início de Essência e valor da democracia Kelsen afirma que o conceito “democracia” é de difícil compreensão, pois quando se observa os casos em que tal conceito é empregado o que se encontra não torna possível a obtenção de um significado comum, unívoco, ou mesmo animado por uma ideia comum para tal termo.

“Democracia é a palavra de ordem que de modo quase universal dominou os espíritos nos séculos XIV e XX. Exatamente por isso, porém, perde ela – como toda palavra de ordem, seu sentido próprio. Pois se acredita – a fim de acompanhar a moda política – que se deve utilizar o conceito de democracia, o qual é o mais mal-utilizado de todos os conceitos políticos, para todas as finalidades possíveis e em todas as ocasiões possíveis, muito frequentemente contraditórias, até que ele seja degradado a uma frase sem sentido determinado, convencional, por meio da costumeira irreflexão do linguajar político vulgar”.1

O texto acima citado foi publicado em 1929, porém a validade da observação, de cunho sociológico, com respeito ao emprego retórico do termo “democracia”, permanece plenamente atual. Nos dias de hoje não é difícil encontrar casos concretos de governos que se autonomeiam democráticos apesar de não oferecerem qualquer espécie de liberdade política aos seus cidadãos, não admitirem o livre acesso às informações, à expressão de opiniões, além de estabelecer uma série de outros limites às atividades de cunho político dos indivíduos – a título exemplificativo cabe referir a República popular democrática da Coréia, nome oficial da Coréia do Norte. Considerando essa peculiaridade do conceito “democracia” Kelsen decide adotar uma premissa básica para desenvolver seu estudo sobre os governos democráticos, ele decide recorrer ao significado primeiro, do ponto de vista cronológico, ou seja, ao significado grego do termo “democracia”.

“O significado original do termo “democracia”, cunhado pela teoria política da Grécia Antiga, era: governo do povo (demos = povo, kratein = governo). A essência do fenômeno político designado pelo termo era a participação dos governados no governo, o princípio da liberdade no sentido de autodeterminação política”.2

O elemento mais importante na definição “democracia” que a citação acima apresenta diz respeito à noção “autodeterminação política”, ou seja, à noção de autonomia, à capacidade de determinar os rumos do governo, determinar as normas existentes em certo estado. Essa definição propõe a vinculação da democracia à ideia de que os indivíduos irão controlar o governo e ela se ancora em um aspecto do modelo primeiro de democracia, na espécie de democracia que existiu na Atenas antiga. A democracia grega era caracterizada pelo fato de que todos os cidadãos possuíam a capacidade de interferir nas decisões políticas, pois eles determinavam quais normas seriam aprovadas e impostas. Contudo, é importante observar que essa espécie de democracia não incluía todos os indivíduos, mas apenas uma parcela destes, significa dizer, a democracia grega antiga não propiciava a todos o poder político, mas apenas a um grupo de indivíduos. Quando Kelsen oferece a descrição de democracia acima exposta ele já está apresentando uma abstração com respeito ao modelo ateniense de democracia. Tendo por base a democracia da Grécia Antiga seria preciso definir democracia, afirmar que uma democracia, em seu significado original, seria a espécie de governo no qual o “povo” (uma espécie de povo, o grupo dos indivíduos com capacidade para exercitar a autodeterminação política) determinaria os rumos do governo. Kelsen não inclui na sua exposição da democracia da Grécia Antiga acima citada esse elemento, o significado restrito para o termo “povo”, porém é de se reconhecer que esta restrição é de grande importância caso se pretenda esclarecer o que significava a democracia grega antiga, principalmente quando comparada com modelos contemporâneos, por exemplo, ao modelo francês ou norte-americano. Seguindo esse objetivo seria apropriado apontar que a democracia ateniense não seria idêntica à democracia norte-americana, por exemplo, uma vez que ela estaria muito mais próxima daquilo que se convencionou chamar de aristocracia (ou seja, governo de alguns) do que de uma democracia nos moldes da Idade Moderna ou Contemporânea.

Entretanto existe uma razão para Kelsen não se ocupar dessa espécie de consideração ao buscar definir “democracia”, pois o que ele pretende apontar, reconhecer e em boa medida reverenciar é um princípio contido na concepção grega antiga de democracia. O importante nesse modelo de democracia é uma ideia que permanece apesar das modificações ocorridas e dos desenvolvimentos que foram introduzidos no projeto de um governo democrático. A democracia contém, desde sua versão original, uma ideia importante, qual seja, atribuir aos indivíduos que se encontram sob o poder estatal a capacidade de controlar e orientar tal poder. O que reside em tal capacidade, o que torna tal regime, em sua primeira experiência concreta (a da democracia na Grécia Antiga), algo digno de consideração, é o fato de que ele oferece a primeira experiência de transferir a um grupo de submetidos ao governo (grupo este que no caso da democracia antiga é significativamente reduzido3) o poder de controlar tal governo.

3 Governo democrático e a meta da igual liberdade dos governados

Pode-se nesse momento observar que até o presente momento não se apontou qualquer virtude na ideia de um governo democrático, não foi demonstrada a validade de tal proposta de organização do governo. Um passo na direção de uma espécie de justificação será dado por Kelsen a partir da seguinte observação:

“Na ideia de democracia – e é dela, e não da [ideia] mais ou menos semelhante dela da realidade política que devemos falar no que segue – estão unidos dois postulados de nossa razão prática, dois instintos primordiais do ser social exigem satisfação. Em primeiro lugar a reação contra aquela coerção que parte da situação social, o protesto contra a vontade estranha, frente à qual a própria [vontade] precisa se curvar, [o protesto] contra o tormento da heteronomia. É a própria natureza que se rebela na exigência da liberdade contra a sociedade. – O peso da vontade alheia, a ordem jurídica imposta será tão opressora quanto mais ilimitado for nos homens o sentimento primário do próprio valor em si e na rejeição da sobrevalorização dos outros, quanto mais elementar for o domínio, o comando relativamente à experiência da obediência: Ele é um homem como eu, nós somos iguais! Onde está seu direito a me comandar? Assim se põe a ideia decididamente negativa e com profundas raízes anti-heroicas da igualdade a trabalho da exigência igualmente negativa da liberdade”.4

O núcleo argumentativo do texto acima citado consiste na apresentação da tese de que o modelo democrático seria dotado da capacidade de realizar dois propósitos, estaria relacionado à satisfação de duas metas identificadas por certo número de indivíduos como relevantes: 1ª evitar a heteronomia, significa dizer, evitar que as normas sejam normas produzidas por outros indivíduos que não aqueles que devem obedecer as normas; 2ª evitar que hajam diferenças (do ponto de vista da relação indivíduo-estado) entre os indivíduos, assegurar a igualdade política entre eles. Em verdade, pode-se reelaborar essas duas metas em uma única, a qual afirma ser objetivo da democracia a igual autonomia para todos os submetidos ao governo.

As metas acima mencionadas, impedir a heteronomia e assegurar a igualdade, são metas que em princípio são consideradas como capazes de serem atingidas em um governo democrático. É importante observar que Kelsen não reivindica, em qualquer momento, que tais metas possuam alguma espécie de valor objetivo, absoluto. Kelsen menciona que partimos, ao tratar da democracia “[d]a ideia de que somos – idealmente – iguais”.5 Isso não significa de modo algum que de fato somos iguais, assim como não significa que Kelsen considera existir uma inclinação nos seres humanos, em todos eles, a se considerarem como iguais, a buscarem o reconhecimento de uma hipotética igualdade entre os indivíduos. Quando apresenta a definição para o conceito “democracia” Kelsen expõe um modelo de governo que seria o mais adequado quando os indivíduos possuem as duas metas acima citadas. A obrigação que ele assume é relativa, ela consiste em afirmar que o modelo democrático será o mais eficiente na satisfação das metas igualdade e autonomia dos indivíduos, e é a partir deste pressuposto que ele terá de provar as qualidades da democracia como forma de governo. O que fundamenta a relevância de tal alternativa, o que torna tal proposta algo digno de atenção, é algo que para Kelsen não estará presente em todos os indivíduos, significa dizer, não há, dentro da concepção oferecida por Kelsen, uma defesa absoluta da democracia.

“O exame [...] do fundamento filosófico da democracia não é e não pode ser direcionado para uma justificação absoluta deste tipo de organização política; ele não tem a intenção, e nem poderia de fato tê-la, de provar que a democracia é a melhor forma de governo. É uma análise científica, e isto significa dizer objetiva, de um fenômeno social e não a sua avaliação no sentido de pressupor um valor social como incondicionalmente válido e a demonstração de que a democracia seja a realização desse valor. [...] uma teoria científica da democracia somente pode sustentar que esta forma de governo tenta realizar a liberdade juntamente com a igualdade do indivíduo e que se esses valores devem ser realizados, a democracia é o meio apropriado; isto implica que se outros valores sociais, outros que a liberdade e igualdade dos membros individuais da comunidade, devem ser realizados, como por exemplo o poder da nação, a democracia pode não ser a forma apropriada de governo. Isso, é claro, é – se for de fato uma justificação – somente uma justificação condicional da democracia”.6

No pensamento de Kelsen a defesa da democracia se apoiará em dois objetivos que não são fundamentados. Não se encontra em suas reflexões uma justificação para o fato de que autonomia e igualdade seriam consideradas metas importantes, e igualmente não há uma defesa, de qualquer espécie, com respeito às (potenciais) qualidades de tais metas. A decisão sobre quais metas devem ser identificadas pelos indivíduos como importantes, a escolha sobre se igualdade e autonomia são objetivos importantes, ou se outros valores devem se sobrepor a estes, é deixada em aberto, ela resta nas mãos dos submetidos ao poder estatal, não fazendo parte dos objetivos de Kelsen justificar a validade de tais metas.

Com respeito a esse tema e em resposta a uma crítica recebida Kelsen menciona o seguinte: “Se me pronuncio a favor da democracia, faço-o exclusivamente pelos motivos que expus no último capítulo, ou seja, devido ao laço existente entre democracia e teoria relativista”.7 Por um lado é importante observar que Kelsen entende haver razão na teoria relativista, ser ela a teoria correta com respeito às questões axiológicas e epistemológicas. Ainda assim, ou, formulando de outro modo, exatamente em razão de tal relativismo, a preferência pelo governo democrático, quando ela ocorre, é de natureza utilitarista. Kelsen assume sua preferência pessoal pelo modelo democrático após reconhecer a validade do relativismo axiológico, pois a democracia facilita a materialização de tal relativismo. Em conexão com esse ponto é de se observar que para Kelsen a defesa incondicionada da democracia não é possível, nem mesmo quando se admite a validade do relativismo axiológico. Uma vez que (hipoteticamente) não existem valores absolutos, não se pode oferecer uma defesa desta natureza (i. e., em termos absolutos) para o modelo democrático, pois conforme esta concepção um governo democrático não é melhor do que um governo autocrático, e, portanto, ele não seria preferível, justamente por não existirem verdades absolutas conforme tal perspectiva, capazes de apoiar juízos absolutos sobre as qualidades de formas de governo.

4 Defesa das metas autonomia e igualdade

Conforme apontado, na teoria de Kelsen as metas autonomia e igualdade não são fundamentadas, porém, ainda assim, elas podem ser assumidas por alguns indivíduos. Partindo do fato de que os indivíduos reconhecem essas metas, cabe então dar o passo seguinte, é preciso notar que esses indivíduos devem não apenas reconhecer tais metas, mas também reivindicar a sua materialização, a sua implementação no estado existente. Colocando em outros termos, se tais indivíduos puderem escolher o modelo de governo, e se eles buscarem uma espécie de governo que possua a capacidade de atender suas expectativas, então o modelo a ser adotado será a democracia. Pode-se chegar à justificação do modelo democrático como o mais apropriado de modo direto, através da definição de democracia apontada por Kelsen, a qual é produto de uma abstração do modelo da Grécia Antiga de democracia e exibe um modo de assegurar a autonomia para todos, contudo também se pode chegar a este resultado pela via oposta, por meio da exclusão das outras alternativas.

Caso se considere as outras alternativas clássicas de formas de governo, a aristocracia e a monarquia, é possível perceber por quais razões tais modelos não se mostram apropriados. Na aristocracia o governo é orientado pelas decisões de um grupo de indivíduos, na monarquia ele é guiado pela decisão de um único indivíduo. Em ambos os casos está claro, desde o início, que tais governos não são compatíveis com a meta da igual autonomia. Nos dois modelos há uma diferença entre os indivíduos, uma vez que nem todos participam das decisões políticas, nem todos são dotados de autonomia, da capacidade de elaborar leis. Assim, pode-se por meio da exclusão de outras alternativas clássicas de organização estatal atingir a conclusão de que apenas uma democracia, e nunca uma aristocracia ou uma monarquia, possui a capacidade de realizar as metas da igualdade e da autonomia.

Entretanto, ainda existe outra espécie de governo a ser analisada, pois é preciso considerar outra forma de configuração do governo que também pode ser identificada como democrática. Juntamente com a ideia de democracia como governo do povo pode-se alinhar uma ideia semelhante, a de que a democracia poderia ser um governo para o povo. O argumento em favor dessa alternativa estaria fundado na ideia de que se um governo democrático é um governo que busca atender os interesses do povo, então não haveria a necessidade de os governados participarem da tomada de decisões por parte deste governo, contanto que o governo reconhecesse e perseguisse o propósito de satisfazer os interesses do povo. Além disso, ainda se aduz em favor dessa proposta a ideia de que um governo para o povo poderia ser inclusive superior qualitativamente a um governo do povo, pois se pode pensar que neste caso apenas especialistas participariam das decisões políticas e em virtude disto as decisões tomadas seriam mais apropriadas, estariam baseadas em informações privilegiadas e não no mero arbítrio popular, o qual poderia ser menos hábil na escolha dos meios para realizar os objetivos perseguidos.

Duas críticas que Kelsen aponta a tal ideia podem ser sintetizadas da seguinte maneira: a) é difícil ou mesmo impossível determinar em que consiste o interesse do povo, eis que “o povo enquanto uma massa de indivíduos de diferentes níveis econômicos e culturais não tem uma vontade uniforme, que somente o ser humano individual possui uma vontade real, que a assim chamada ‘vontade do povo’ é uma figura de linguagem e não uma realidade”8; b) o bem do povo pode ser interpretado como constituindo algo distinto do que o próprio povo poderia considerar como sendo o seu bem, e deste modo tal categoria, “o bem do povo”, pode servir a qualquer propósito estabelecido por um governo.9

Além de observar a vagueza, aparentemente incontornável, relativamente ao significado da expressão “vontade do povo”, a segunda crítica acima citada indica um aspecto que é fundamental para a presente discussão, pois aponta para o requisito da liberdade enquanto autonomia. Quando os propósitos do governo são estabelecidos pelos indivíduos submetidos a este governo, eles exercem uma espécie de liberdade, a liberdade de elaborar as normas que eles deverão seguir. Esse é um elemento que está presente no modelo grego clássico de democracia, é um elemento que pode ser atribuído a um grupo de indivíduos, como o faz Kelsen, e tal elemento é rejeitado no modelo de democracia enquanto governo para o povo. Além dessa razão puramente formal e que consiste em apontar um interesse básico dos indivíduos, o qual, devemos aqui lembrar, é a referência primeira e fundamental para a proposta do governo democrático, pois ele é o modelo que mostra a maior capacidade de atender tal interesse (a autonomia), Kelsen ainda aduz outro motivo para que se rejeite a ideia de uma democracia como governo para o povo.

“Essa perversão do conceito de democracia, de um governo do povo [...] para um regime político [direcionado] no interesse do povo não é somente teoricamente inadmissível em razão de um mau uso da terminologia, mas é também muito problemática politicamente. Ela substitui enquanto critério a forma do governo definida como democracia por um julgamento de valor altamente subjetivo – o interesse do povo – ao invés do fato objetivamente apurável da representação por órgãos eleitos. Todo governo pode [...] afirmar que está agindo no interesse do povo. Uma vez que não existe qualquer critério objetivo para [julgar] o que é chamado de o interesse do povo, a frase “governo para o povo” é uma fórmula vazia, capaz de ser usada para uma justificação ideológica de qualquer espécie de governo”.10

Deve-se reconhecer, como proposto acima, que um governo para o povo pode ser mais eficiente do que um governo do povo, pois um governo para o povo pode satisfazer quaisquer interesses que os indivíduos tenham (exceto o desejo da autonomia) em maior grau e com maior eficiência na obtenção dos resultados. A negação plena da autonomia que uma tal forma de governo propõe é a única razão que torna legítima, para aqueles que valoram a autonomia, a rejeição de tal governo. As críticas com respeito ao significado da “vontade geral” e à falta de controle sobre as decisões são válidas, porém o fundamento último e absoluto para a rejeição dessa proposta de governo permanecerá sendo o desacordo com a meta da autonomia.

Neste momento se mostra conveniente recordar uma observação apresentada por Kelsen em um texto intitulado Verteidigung der Demokratie (Defesa da democracia): “a compreensão correta da democracia não se refere tanto ao princípio da igualdade, e muito mais à liberdade, a autonomia política”.11 O ponto central que tal observação visa indicar é que o cerne da ideia de democracia estará na satisfação do interesse na igual autonomia, significa dizer, “a democracia [em Kelsen] é fundada na (igual) liberdade (de todos), ao invés [de estar fundada] na igualdade”.12 É preciso ressaltar que o argumento de Kelsen não busca sustentar a impossibilidade de defender a igualdade material entre os indivíduos, pois o que ele pretende indicar, caso se combine a passagem acima citada com os argumentos destinados a criticar a ideia de governo para o povo, é que não haveria um vínculo necessário entre as metas da igual autonomia e da igualdade material. É possível que por meio da igual autonomia a igualdade seja promovida, porém não há garantia de que tal ocorra, eis que as decisões podem conduzir à perpetuação das desigualdades. O importante aqui é a alternativa contrária a essa: não se pode afirmar que a igual autonomia permanecerá quando a igualdade for reconhecida como meta última. Como visto acima, ao aceitar a ideia de um governo para o povo acaba-se por renunciar à necessidade da participação dos governados no governo. Consequentemente, o resultado que consiste na igualdade material pode advir de um governo que propicia a igual autonomia, mas o contrário, a igual autonomia, não precisará ser aceita (ao menos em certa medida) por um governo que busca a igualdade material, um governo para o povo.

5 Democracia não como o governo de todos, mas sim como o governo da maioria

Uma vez que se consegue excluir da esfera de possibilidades, para os indivíduos que adotam a meta da igual autonomia, as outras formas de governo que não a democracia, entendida esta como o governo do povo, é preciso se ocupar de uma segunda tarefa e explorar em que medida um governo democrático de fato está dotado da capacidade de oferecer a igual autonomia aos indivíduos.

Considerando a definição da Grécia Antiga de democracia seria possível pensar que um governo democrático é um governo em que todos participam da tomada de decisões. Contudo, quando se avalia os governos democráticos que existem ou existiram não se encontra sequer um governo no qual todos os governados participaram da tomada de decisões políticas, e igualmente não se identifica qualquer governo no qual todos os indivíduos que compõem povo estão em acordo, aceitam todas as normas existentes. Justamente em razão dessas circunstâncias pode ser introduzida a distinção apontada por Kelsen entre povo sujeito e povo objeto do poder.

Se a unidade do povo é somente a unidade dos atos humanos regulados e normativizados pela ordem jurídica estatal, então, nesta esfera normativa do “poder” enquanto vínculo normativo, como submissão a normas estabelecidas, a unidade buscada será o povo, mas como objeto do poder. Como sujeito do poder as pessoas são observadas somente na medida em que tomam parte na produção da ordem estatal. Precisamente nessa função decisiva para a ideia da democracia, precisamente no “povo” como agente da produção de normas, apresenta-se a diferença inevitável entre este [povo] e aquele “povo” submetido a normas estabelecidas. Pois nem todos os que pertencem ao povo como submetidos às normas e ao poder tomam parte do processo de produção das normas, e esta é a necessária forma de exercício do domínio – nem todos formam o povo como sujeito do poder.13

Kelsen explora o tema da restrição no significado do conceito “povo” como grupo de indivíduos que possuem autonomia política, “como sujeito do poder”, e observa que existem duas espécies de limitações aos direitos políticos e, consequentemente, à inclusão de certos indivíduos no grupo do “povo” sujeito do poder.

“[...] certos limites naturais conhecidos, como a idade, a saúde intelectual e moral, se põem no caminho da ampliação dos direitos políticos e, portanto, [da ampliação do significado] do “povo” no sentido ativo, limites que não existem de modo algum para o conceito de povo em sentido passivo. É significativo que a ideologia democrática tolera limitações ulteriores [ao conceito] “povo”, bem mais do que os [limites] envolvidos [no conceito de] partícipes do poder. A exclusão dos escravos e ainda hoje das mulheres dos direitos políticos realmente não impede que uma ordenação estatal seja denominada democracia”.14

O texto acima, o qual reflete o período histórico no qual ele foi escrito, mostra-se relevante, pois aponta para o fenômeno da existência de restrições ao significado do termo povo. A primeira espécie de restrições pode ser defendida com base no argumento de que a autonomia política envolve em princípio a ideia de que o próprio indivíduo deve ser autônomo, ter controle de suas opiniões. Porém o elemento mais interessante no texto de Kelsen se encontra na segunda espécie de restrição, nos limites que resultam de decisões aparentemente contrárias à ideia original de democracia. Aqui é importante notar uma expressão empregada por Kelsen, a expressão “ideologia democrática”. As restrições ao significado do termo “povo”, e que tanto no primeiro quanto no segundo caso resultam em uma parcial negação da ideia original de democracia, são defendidas, observa Kelsen, com base em uma “ideologia”, significa dizer, tais restrições são aceitas como válidas e a presença destas não é considerada fundamento suficiente para a rejeição do emprego do conceito “democracia”. Ao final é de se notar que um governo democrático pode ser um governo que é “do povo” não em virtude de ele ser controlado por toda a população, mas mesmo que ele o seja apenas por uma parcela desta, por um grupo que será, de acordo com critérios artificiais, identificado como o povo, como o grupo dos possuidores de autonomia política.

Essa é uma das diferenças encontradas por Kelsen quando ele compara a ideia original de democracia com certo número de casos concretos de democracia. É relevante o fato de Kelsen, ao se deparar com circunstâncias como essas, não adotar uma posição de rejeição absoluta dos casos concretos, ou seja, ele não afirma que um governo que não inclui certo grupo de indivíduos na participação das decisões políticas será não-democrático. A abordagem empregada é outra, Kelsen deixa, em certa medida, de utilizar a meta de igual autonomia para todos como critério identificador da democracia, e começa a aceitar – com a ressalva de estar tratando de uma “ideologia democrática” – um uso do conceito “democracia” que não mais exige a presença da igual autonomia para todos. Esse emprego do termo “ideologia” deve ser tomado como significativo, pois ao que parece ele sugere que tais restrições, ainda que não estejam dotadas de fundamento, são tornadas válidas por um sistema de justificação das mesmas, e exatamente em virtude disto são restrições passíveis de críticas.

A restrição da definição de democracia, de um governo do povo (enquanto grupo de todos os submetidos ao governo) para o governo de um certo grupo de indivíduos, o povo como sujeito da democracia, marca uma face das limitações subsequentes e consequentemente das resignificações do conceito democracia. Junto a isso a análise de outro elemento também contribuirá para identificar as modificações da ideia originalmente sustentada e de origem grega, o elemento “liberdade”, entendido este como autonomia política.

De acordo com a ideia de democracia originária da Grécia Antiga todos os indivíduos (identificados como o povo enquanto sujeito ativo) tomariam parte nas decisões políticas. Contudo, as formas contemporâneas de democracia não empregam esse modelo, elas operam por meio da representação, ou seja, os indivíduos devem eleger políticos que buscarão atender esses interesses. Além disso é de se observar que ainda se pode listar outras limitações à liberdade política dos indivíduos. Em primeiro lugar, os indivíduos nascem dentro de uma sociedade já estabelecida, com normas vigentes, as quais eles somente posteriormente terão a capacidade de modificar. Ademais, a liberdade política que se manifesta envolve o requisito da maioria, ou seja, o indivíduo deve de algum modo encontrar uma maioria que esteja em acordo quanto ao objetivo por ele perseguido, pois somente assim ele poderá criar uma norma que atenda tal objetivo. Com respeito às razões para adotar o critério da maioria, ao invés da unanimidade, Kelsen observa adequadamente o seguinte:

“Na medida em que a democracia, em prol da ideia – hipotética – de liberdade, por meio do contrato, ao invés de um acordo unitário, conforma-se com uma decisão majoritária, ela se contenta com uma aproximação da ideia original. Que ainda se fale de autonomia e que cada um esteja sujeito apenas à própria vontade, quando é a vontade da maioria que vale, [isto] se trata de um passo adiante na metamorfose do pensamento da liberdade”.15

O critério da unanimidade seria, do ponto de vista objetivo, o único aceitável caso se buscasse sem relativizações seguir a ideia de democracia como governo que realiza a liberdade enquanto autonomia, igual autonomia, para todos. Relativamente a este tema Kelsen observa que “parece que o princípio democrático da liberdade exige que a possibilidade de uma decisão imposta à minoria se reduza ao mínimo: maioria qualificada, possivelmente unanimidade, são vistas como garantias para a liberdade individual”.16 Entretanto, destaca ele na sequência do texto, “a oposição de interesses é para a vida prática algo [...] indiscutível”.17 Assim, uma vez que a existência de oposições não pode ser questionada, não resta outra alternativa a não ser a redução do grau de acordo exigido para a aprovação de uma norma, e, como reflexo, tem-se uma redução na esfera de autonomia dos indivíduos. Não se pode mais afirmar que a democracia contempla a igual autonomia dos indivíduos, pois após excluir a exigência da unanimidade a liberdade enquanto autonomia será algo que nem todos os indivíduos (incluídos no grupo do povo como sujeito ativo) poderão exercer de modo irrestrito. Com a implementação de um critério de maioria, ao invés da unanimidade, a liberdade como autonomia é modificada, passando a ser a liberdade daqueles que integram a maioria e não a liberdade de todos. Ressaltando a ideia exposta no texto há pouco citado, “ainda” se está falando “de autonomia”, contudo “é a vontade da maioria que vale”.

Uma vez adotado o critério da maioria, a liberdade enquanto autonomia passa a ter seus limites e sua existência delineados em conformidade com o requisito exigido para a obtenção da maioria exigida. A consequência disso é que ser livre, do ponto de vista político, significa em uma democracia o mesmo que atingir a maioria, estar com sua vontade em acordo com a vontade da maioria exigida para aprovar ou revogar uma norma. Esse é um dos aspectos da liberdade democrática, da liberdade enquanto autonomia, pensada esta como liberdade de dar as próprias normas.

6 A liberdade intelectual como elemento essencial de um governo democrático

Junto a essa liberdade como autonomia Kelsen alinha outra espécie de liberdade, a liberdade intelectual, a qual precisa ser levada em consideração na exposição de sua perspectiva sobre o que é um governo democrático.

“Por liberdade democrática [...] dois princípios diferente são pensados: a liberdade positiva ou política de autodeterminação, a participação dos governados no governo, significa dizer, na criação e aplicação da ordem coercitiva; e a liberdade negativa ou intelectual, a liberdade com relação ao governo ou à coerção, garantida pelos direitos humanos constitucionais”.18

A valorização da liberdade intelectual é destacada por Kelsen tendo em conta um elemento fundamental para a ideia de liberdade enquanto autonomia: se os indivíduos almejam ser livres para determinar as normas que desejam seguir, é razoável que tais indivíduos disponham das informações relevantes para decidir sobre a questão, que eles possam formar uma opinião em um ambiente no qual não existe a imposição de uma concepção sobre certos temas, no qual eles podem ouvir e expressar seus pensamentos. Todas essas liberdades, em realidade, podem ser vistas como um pressuposto necessário para a existência da liberdade enquanto autonomia, consequentemente tornando a presença de tais liberdades intelectuais um elemento essencial a toda democracia.

“Se definirmos a democracia como um método político por meio do qual a ordem social é criada e aplicada pelos que estão sujeitos à ordem, de tal modo que a liberdade política, no sentido de autodeterminação, é assegurada, então a democracia necessariamente, sempre e em todo lugar servirá este ideal de liberdade política. E se incluirmos em nossa definição a ideia de que a ordem social, criada do modo recém indicado, a fim de ser democrática, deve garantir certas liberdades intelectuais, tais como a liberdade de consciência, a liberdade de imprensa, etc., então a democracia necessariamente, sempre e em todo lugar serve também este ideal de liberdade intelectual”.19

7 A espécie de autonomia presente nos governos democráticos

Com base no que se analisou até o presente momento e tendo especial atenção às facetas da liberdade como autonomia e da liberdade intelectual, atingiu-se o momento adequado para abordar as considerações apresentadas por Kelsen ao final do primeiro capítulo de Essência e valor da democracia.

“Mas uma vez que se deixe de lado a ideia de que os semelhantes dominam, não se recusa mais o fato de que o indivíduo, na medida em que ele precisa obedecer à ordem estatal, não é livre. Modifica-se com o sujeito do domínio justamente o sujeito da liberdade. Afirma-se de fato com insistência que o indivíduo, na medida em que ele se constitui em vínculo orgânico com outros indivíduos na ordem estatal, simplesmente nesse vínculo e somente nele é “livre”. [...] A conseqüência indicada – obtida logicamente por vários autores – é que como os cidadãos somente são livres em sua incorporação ao Estado, [é que] simplesmente não é o cidadão individual, mas sim a pessoa do Estado, que é livre. Isso se expressa também na frase, de que somente é livre o cidadão de um Estado livre. No lugar da liberdade do indivíduo entra a soberania do povo, ou o que é o mesmo: o Estado [que é] livre, o Estado-livre [Freistaat] como requisito fundamental.

Essa é a última etapa na mudança de significado da ideia da liberdade. Quem não quer ou não consegue acompanhar esse movimento, o qual esse conceito segue com uma poderosa lógica imanente, pode opor-se com respeito à contradição existente entre o significado original e o [significado] final, e renunciar a acompanhar as deduções, que o mais engenhoso defensor da democracia extraiu, sem retroceder frente à afirmação de que o cidadão é livre somente por meio da vontade geral, e que portanto aquele [indivíduo] que se recusa à obediência a essa vontade, ele é forçado à vontade do Estado, é forçado a ser livre. É mais do que um paradoxo, é um símbolo da democracia que na república genovesa sobre as portas das prisões e nas correntes dos escravos de galera podia ser lida a palavra “Libertas”.20

A passagem acima constitui o fechamento do capítulo que tratou da definição grega antiga de democracia e das observações realizadas com respeito a esta definição, principalmente no que diz respeito ao significado do termo “liberdade”. O ponto central do argumento de Kelsen consiste em apontar que a ideia da liberdade como autonomia individual acaba por ser abandonada quando se leva em consideração a democracia com base em suas manifestações concretas. A liberdade como autonomia sofreu uma modificação de tal monta que ao final da análise se encontra uma autonomia condicionada à obtenção de certa maioria em um processo de democracia representativa. Sob essa perspectiva é correto afirmar que a liberdade do indivíduo (quando nos referimos à liberdade enquanto autonomia) é agora a liberdade da soberania popular, a qual se manifesta em um “Estado [que é] livre” por dar-se as próprias normas. Por isso é apropriado apontar uma “contradição existente entre o significado original e o [significado] final” da “liberdade”. Em virtude das dificuldades e empecilhos ao indivíduo que deseja dar-se as próprias normas é possível afirmar que tal alternativa para a preservação da liberdade do indivíduo se orienta em sentido oposto àquele da meta estabelecida, àquele da meta da liberdade como autonomia. Aqui se tem o resultado de que um governo democrático não oferece, nos casos concretos, a liberdade como autonomia aos indivíduos, e que a liberdade que o indivíduo terá será a liberdade em conformidade com o estado, com as normas existentes.

Porém é preciso ressaltar um aspecto. A conclusão de Kelsen, do modo como ele a apresenta, não se mostra inevitavelmente necessária. Não é o caso de o processo democrático de elaboração de normas negar de modo pleno a liberdade do indivíduo. Primeiramente, como apontado acima, existem as liberdades intelectuais, as quais estão presentes em maior ou menor medida nos governos democráticos e asseguram certas liberdades aos indivíduos. Essas liberdades, deve-se ressaltar, são liberdades frente ao estado, liberdades que se desenvolvem e se materializam não graças à previsão de normas, mas ao estabelecimento de limites na ação de tais normas, por exemplo, uma norma não deveria atentar contra a liberdade de consciência dos indivíduos, ou contra a liberdade de imprensa. Em segundo lugar, também a liberdade como autonomia não é completamente negada, ainda que ela seja submetida a restrições significativas. A autonomia sofre limitações, porém ela persiste, contudo de modo substancialmente diferente e enfraquecido quando comparada com o que seria o seu modo de ser original. O que se precisa atentar, no contexto da discussão sobre a autonomia, é que os governos democráticos não abrigarão os interesses dos indivíduos isoladamente considerados, sendo em razão disto que se afirma que a liberdade do indivíduo é substituída pela “soberania do povo”. Em outros termos, agora a autonomia é exercida pelo povo soberano, que se pode traduzir como sendo a maioria vitoriosa em certa disputa política e que não pode ter seus interesses negados simplesmente com base na divergência de alguns indivíduos.

Entretanto, e esse é um ponto a ser destacado, o principal interesse de Kelsen reside em apontar que há uma diferença substancial e significativa entre a ideia original de democracia, aquela que seria adotada por indivíduos que buscam a igual autonomia, e as manifestações concretas desta ideia.

“A mudança do conceito ideal para o conceito real de “povo” não é menos profunda do que a metamorfose da “liberdade” natural para a política. Por isso é preciso admitir que a distância entre ideologia e realidade, aliás, entre a ideologia e a máxima possibilidade de sua realização, é extraordinária. [...] Por isso a liberdade natural é reduzida à autonomia política por meio da decisão majoritária, o conceito ideal de povo é reduzido ao conceito muito mais estreito dos titulares de direitos políticos e seu uso, contudo a redução não está ainda completa. [...] O parlamentarismo é talvez o mais significativo dentre os elementos que até agora foram mencionados e que limitam a ideia da liberdade e a ideia da democracia. Ele deve ser compreendido antes de tudo, caso a essência de todo grupo que atualmente é visto como democrático deva ser compreendida”.21

Nessa passagem são apresentados de modo esquemático os três elementos principais da presente investigação, quais sejam, “povo”, “liberdade” e “democracia”. O que Kelsen observa com respeito a tais elementos é que eles não possuem significados fixos, estabelecidos, eles sofrem mudanças, metamorfoses. Consequentemente, a inclusão de tal flexibilidade na análise do modelo democrático de governo não é somente razoável, mas efetivamente indispensável. Um elemento dessa configuração, como verificado, reside na impossibilidade de estabelecer de modo claro e preciso o que seria uma democracia. Já vimos que os conceitos “povo”, o sujeito da democracia, e “liberdade”, entendida como autonomia, são delineados de modos diferentes nos casos concretos. Governos podem se configurar de tal maneira que em um destes governos o povo incluirá, em virtude da adoção de certos critérios, um certo percentual da população total, ao passo que outro governo poderá estabelecer outros critérios, resultando em uma participação proporcionalmente maior ou menor do que aquela que ocorre no primeiro caso. Do mesmo modo, também a liberdade enquanto autonomia pode sofrer limitações distintas em razão de configurações diferentes do processo de aprovação de normas. Um governo pode aceitar decisões parlamentares tomadas pela maioria absoluta, enquanto em outro governo a decisão parlamentar sobre o mesmo tema exigirá uma maioria qualificada. Se para entender o que é “democracia” é preciso compreender o significado dos termos “povo” e “liberdade”, então não se pode, em razão da própria flexibilidade de tais termos, oferecer uma definição precisa de “democracia”. Essa característica do termo “democracia”, a flexibilidade, torna-se evidente quando Kelsen busca avaliar o modo como se emprega o termo democracia em situações concretas.

“Democracia significa que a “vontade” que está representada na ordem legal do Estado é idêntica às vontades dos sujeitos. Seu oposto é a submissão da autocracia. Aí os sujeitos são excluídos da criação da ordem legal e a harmonia entre a ordem e suas vontades não é de modo algum garantida. A democracia e a autocracia, assim definidas, não são de fato descrições de constituições historicamente conhecidas, mas ao invés disto representam tipos ideais. Na realidade política não existe nenhum Estado que se conforme completamente a um ou ao outro tipo ideal. Todo Estado representa uma mistura de elementos de ambos os tipos, de tal modo que algumas comunidades estão mais próximas de um polo, e algumas mais próximas do outro. Entre os dois extremos existe uma profusão de estágios intermediários, a maioria dos quais não possui designação específica. De acordo com a terminologia usual, um Estado é chamado democracia se o princípio democrático prevalece na sua organização, e um Estado é chamado autocracia se o princípio autocrático prevalece”.22

A análise acima inicia com a recapitulação da meta adotada pelo ideal democrático, oferecer uma ordem legal na qual os indivíduos têm seus interesses, suas vontades atendidos, ou, dito de outro modo, proporcionar um ordenamento jurídico que seja o produto do exercício da autonomia por parte dos governados. A autocracia, o oposto da democracia, caracteriza-se pela não-participação dos submetidos no ordenamento jurídico, na produção destas normas. Após apresentar essa definição básica de democracia e autocracia, Kelsen se volta à tarefa de encontrar exemplos para essas definições. Nesse momento e tendo em conta as considerações acima expostas, sobre os limites existentes nos significados atribuídos aos conceitos “povo” e “liberdade política”, Kelsen precisa então descartar a possibilidade de encontrar situações nas quais a definição básica de democracia estaria materializada. Não existem governos em que todos participam da produção das normas, e tampouco governos nos quais todos os indivíduos reconhecem todas as normas como existindo em acordo com suas vontades. Tal como observa Kelsen, as características da definição básica de democracia existem como metas, objetivos identificados, propostos e em algum grau perseguidos, porém elas não se materializam plenamente.

8 Conclusão

Tendo em consideração essas circunstâncias, essas facetas dos governos democráticos, a definição de democracia que Kelsen propõe, ao final, não possui limites claros, os quais certamente não poderiam existir, uma vez reconhecida a flexibilidade inerente aos conceitos que a compõem, os conceitos “povo” e “liberdade política”. Um governo será nomeado democrático quando o “princípio democrático prevalece”, e isto significa, por contraposição à autocracia, que neste governo existe maior preponderância das vontades dos indivíduos do que seu contrário, a negação, a rejeição em considerar tais vontades. Consequentemente se está autorizado a afirmar que na perspectiva kelseniana “democracia” significa, dadas as considerações acima apresentadas, um governo no qual a meta da igual autonomia é em certa medida (e esta medida é variável) perseguida, em maior medida do que a meta da heteronomia, da imposição de uma vontade sobre a maioria, e no qual as liberdades intelectuais, condição necessária para o exercício da autonomia, são preservadas.

9 Referências

JESTAEDT, Matthias; LEPSIUS, Oliver. Texto introdutório para a obra Verteidigung der Demokratie. In: KELSEN, Hans. Verteidigung der Demokratie. JESTAEDT, Matthias; LEPSIUS, Oliver (Hrsg.). Tübingen: Mohr Siebeck, 2006. p. VII-XXIX.

KELSEN, Hans. Foundations of Democracy. In: Id. Verteidigung der Demokratie. JESTAEDT, Matthias; LEPSIUS, Oliver (Hrsg.). Tübingen: Mohr Siebeck, 2006. p. 248-385.

KELSEN, Hans. General Theory of Law and State. New Jersey: The Lawbook Exchange, 2009.

KELSEN, Hans. “Verteidigund der Demokratie”. In: Id. Verteidigung der Demokratie. JESTAEDT, Matthias; LEPSIUS, Oliver (Hrsg.). Tübingen: Mohr Siebeck, 2006. p. 229-237.

KELSEN, Hans. Vom Wesen und Wert der Demokratie. 2. Aufl. 1929. In: Id. Verteidigung der Demokratie. JESTAEDT, Matthias; LEPSIUS, Oliver (Hrsg.). Tübingen: Mohr Siebeck, 2006.

THORLEY, John. Athenian Democracy. London: Routledge, 1996.


1 KELSEN, Hans. Vom Wesen und Wert der Demokratie. 2. Aufl. 1929. In: Id. Verteidigung der Demokratie. JESTAEDT, Matthias; LEPSIUS, Oliver (Hrsg.). Tübingen: Mohr Siebeck, 2006, p. 153. Grifos do autor. Esse e todos os demais textos citados foram traduzidos pelo autor deste artigo.

2 KELSEN, Hans. Foundations of Democracy. In: Id. Verteidigung der Demokratie. JESTAEDT, Matthias; LEPSIUS, Oliver (Hrsg.). Tübingen: Mohr Siebeck, 2006, p. 251. Grifos do autor.

3 Conforme aponta Thorley, na democracia da Grécia Antiga o número de adultos participantes das decisões políticas era consideravelmente inferior ao número total da população. “Em termos de números, parece que durante o quinto século o número de cidadãos homens adultos variava entre 30.000 e 50.000 de uma população total de aproximadamente 250.000 a 300.000. Havia talvez 80.000 escravos [...] e aproximadamente 25.000 metecas (homens, mulheres e suas famílias). Os cidadãos homens adultos eram provavelmente não mais do que 30 por cento da população adulta total”. THORLEY, John. Athenian Democracy. London: Routledge, 1996, p. 74.

4 KELSEN, Hans. Vom Wesen und Wert der Demokratie. 2. Aufl. 1929. In: Id. Verteidigung der Demokratie. JESTAEDT, Matthias; LEPSIUS, Oliver (Hrsg.). Tübingen: Mohr Siebeck, 2006, p. 154. Grifos do autor.

5 Id. Ibid., p. 154. Grifo nosso.

6 KELSEN, Hans. Foundations of Democracy. In: Id. Verteidigung der Demokratie. JESTAEDT, Matthias; LEPSIUS, Oliver (Hrsg.). Tübingen: Mohr Siebeck, 2006, p. 307. Grifos do autor.

7 KELSEN, Hans. Vom Wesen und Wert der Demokratie. 2. Aufl. 1929. In: Id. Verteidigung der Demokratie. JESTAEDT, Matthias; LEPSIUS, Oliver (Hrsg.). Tübingen: Mohr Siebeck, 2006, p. 218, nota de rodapé número 40.

8 KELSEN, Hans. Foundations of Democracy. In: Id. Verteidigung der Demokratie. JESTAEDT, Matthias; LEPSIUS, Oliver (Hrsg.). Tübingen: Mohr Siebeck, 2006, p. 252.

9 “A objeção de que [...] o interesse que o governo tenta realizar pode não ser o que o próprio povo considera ser seu interesse é rejeitada pelo argumento de que o povo pode estar equivocado quanto a seu ‘verdadeiro’ interesse, e que se o governo realiza o verdadeiro interesse do povo ele também representa a verdadeira vontade do povo e, portanto, ele deve ser considerado uma ‘verdadeira’ democracia – em contraposição a uma democracia meramente formal ou falsa”. Id. Ibid., p. 255. Grifos do autor.

10 Id. Ibid., p. 257. Grifos do autor.

11 KELSEN, Hans. “Verteidigund der Demokratie”. In: Id. Verteidigung der Demokratie. JESTAEDT, Matthias; LEPSIUS, Oliver (Hrsg.). Tübingen: Mohr Siebeck, 2006, p. 231.

12 JESTAEDT, Matthias; LEPSIUS, Oliver. Texto introdutório para a obra Verteidigung der Demokratie. In: KELSEN, Hans. Verteidigung der Demokratie. JESTAEDT, Matthias; LEPSIUS, Oliver (Hrsg.). Tübingen: Mohr Siebeck, 2006, p. XXV.

13 KELSEN, Hans. Vom Wesen und Wert der Demokratie. 2. Aufl. 1929. In: Id. Verteidigung der Demokratie. JESTAEDT, Matthias; LEPSIUS, Oliver (Hrsg.). Tübingen: Mohr Siebeck, 2006, p. 164. Grifos do autor.

14 Id. Ibid., p. 164-165. Grifos do autor.

15 Id. Ibid., p. 158. Grifo do autor.

16 Id. Ibid., p. 157.

17 Id. Ibid., p. 157. Grifo do autor.

18 KELSEN, Hans. Foundations of Democracy. In: Id. Verteidigung der Demokratie. JESTAEDT, Matthias; LEPSIUS, Oliver (Hrsg.). Tübingen: Mohr Siebeck, 2006, p. 357. É oportuno mencionar que, se por um lado na segunda edição de Vom Wesen und Wert der Demokratie (1929) Kelsen não põe em posição de destaque a liberdade intelectual, três anos depois, em Verteidigung der Demokratie, já se pode encontrar a menção conjunta à liberdade enquanto autonomia e à liberdade intelectual. Cf. KELSEN, Hans. “Verteidigung der Demokratie”. In: KELSEN, Hans. Verteidigung der Demokratie. JESTAEDT, Matthias; LEPSIUS, Oliver (Hrsg.). Tübingen: Mohr Siebeck, 2006, p. 236.

19 KELSEN, Hans. Foundations of Democracy. In: Id. Verteidigung der Demokratie. JESTAEDT, Matthias; LEPSIUS, Oliver (Hrsg.). Tübingen: Mohr Siebeck, 2006, p. 254.

20 KELSEN, Hans. Vom Wesen und Wert der Demokratie. 2. Aufl. 1929. In: Id. Verteidigung der Demokratie. JESTAEDT, Matthias; LEPSIUS, Oliver (Hrsg.). Tübingen: Mohr Siebeck, 2006, p. 161-162. Grifos do autor.

21 Id. Ibid., p. 173. Grifos nossos.

22 KELSEN, Hans. General Theory of Law and State. New Jersey: The Lawbook Exchange, 2009, p. 284. Grifos nossos.

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