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A CONTRIBUIÇÃO DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO PARA SUPERAÇÃO DA DEMOCRACIA RESTRITA E TUTELADA NO BRASIL

CTHE CONTRIBUTION OF JUSTICE OF TRANSITION TO OVERCOMING OF DEMOCRACY AND RESTRICTED WARD IN BRAZIL

 

Rosendo Freitas de AmorimI

Gessler Santos da SilvaII

Jefrei Almeida RochaIII

 

I Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da UNIFOR, Fortaleza, CE, Brasil. Doutor em Direito. E-mail: rosendo@unifor.br

II Faculdade Grande Fortaleza (FGF), Fortaleza, CE, Brasil. Mestre em Direito. E-mail: gesslerss@hotmail.com

III Secretaria da Educação do Estado do Ceará (SEDUC), Fortaleza, CE, Brasil. Mestre em Informática Educativa. E-mail: jefrei.rocha02@gmail.com

 

DOI: http://dx.doi.org/10.31512/rdj.v19i33.2292

Processo de avaliação: Double Blind Review

Recebido em: 14.11.2018

Aceito em: 17.04.2019

 

Sumário: Introdução. 1 Contexto histórico e sociopolítico pré-golpe de 1964. 2 O golpe militar de 1964 no Brasil. 3 A democracia é vítima do golpe militar no Brasil. 4 O processo de redemocratização e a anistia aos perseguidos políticos. 5 Transição democrática no Brasil. 6 O papel da justiça transicional para a consolidação da democracia brasileira. Conclusão. Referências.

Resumo: O presente estudo elabora reflexões sobre a década de sessenta no Brasil, o golpe militar de 1964, a interrupção do regime democrático, a instauração de uma ditadura militar e as perseguições políticas que perduraram até a o período da redemocratização. Com o advento da democracia, possibilitada pela Constituição de 1988, emerge a necessidade da Justiça de Transição para a busca da verdade e a concessão de anistia política, não para eximir de punição as pessoas que praticaram crimes contra os direitos humanos, mas objetivando que o Estado reconheça que cometeu erros e que não pode esquecer suas iniquidades, bem como sua responsabilidade em assistir as pessoas que foram alvo de perseguição política e os familiares delas, para assim poder garantir uma assistência mínima, reparando economicamente as vítimas das arbitrariedades da ditadura militar. O esforço em aperfeiçoar a Justiça Transicional no Brasil almeja atingir aos ditames dos tratados internacionais de Direitos Humanos, evitando que o Brasil venha a sofrer punições pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, como aconteceu em novembro de 2010, no caso da Guerrilha do Araguaia. Esse trabalho se debruçará mais especificamente sobre a Justiça Transicional e os seus princípios, a garantia do direito de justiça, verdade, memória, reforma institucional e reparação econômica para as vítimas da violência autoritária do Estado e seus familiares. Trata-se de uma pesquisa qualitativa de caráter eminentemente bibliográfico.

Palavras-chave: Golpe Militar de 1964. Justiça de Transição. Democracia. Memória. Verdade.

Abstract: This study develops reflections on the sixties in Brazil, the 1964 military coup, the interruption of the democratic regime, the establishment of a military dictatorship and political persecution that lasted until the period of democratization. With the advent of democracy made possible by the 1988 Constitution emerges the need for Transitional Justice in the quest for truth and the granting of amnesty, not to refrain from punishing those who committed crimes against human rights, but the objective that the State recognizes that mistakes and that can’t forget your iniquities, and their responsibility to assist the victims of political persecution and their families so as to guarantee a minimum assistance, repairing economic victims of the arbitrariness of the military dictatorship. The effort to improve the Transitional Justice in Brazil aims to meet the dictates of international human rights treaties, avoiding that Brazil will suffer punishment by the Inter-American Court of Human Rights, as happened in November 2010 in the case of the Araguaia Guerrilla. More specifically, this paper will look at the Transitional Justice and its principles, guaranteeing the right of justice, truth, memory, institutional reform and economic compensation for the victims of authoritarian state violence and their families. This is an eminently qualitative research literature.

Keywords: Military Coup of 1964. Transitional Justice. Democracy. Memory. Truth.

INTRODUÇÃO

A história política brasileira, do final da década de cinquenta e início da década de sessenta, foi marcada por agitações políticas e fatos que afetaram as estruturas democráticas, principalmente os ocorridos na década de sessenta. Dentre os quais, o fato político mais marcante dessa década foi o golpe militar de 1964, que ainda hoje repercute na sociedade brasileira, pois representou uma ruptura com a democracia renascente no Brasil e, que somente voltou a existir com a redemocratização na década de 1980.

O governo instaurado com o golpe militar de 1964 procurou criar mecanismos formais de legitimação do seu poder, porém atos oriundos de estados de exceção não têm como conseguir legitimidade, pois em si mesmos são atos que rompem com as estruturas democráticas existentes. Na busca formal de legitimidade, criaram os meios para seus agentes agirem sob uma aparente legalidade, porém atos contra a humanidade não são legítimos ao ponto de receber anistia, ou muito menos de receberem legitimação das suas práticas, nem podem ser relegados ao esquecimento.

Os conflitos ocorridos nesses anos de ditadura foram desde atos civis pacíficos, com manifestações culturais e sociais, até os atos de resistência armada. Já o governo militar, por meio de seus agentes, agiu contra essas pessoas e no combate às reivindicações delas, que eram mudanças na forma de governar e o retorno à democracia. Vale destacar que muitos desses atos violaram os direitos humanos.

Esse tem sido um problema enfrentado para a redemocratização do Brasil, pois o governo militar manteve a determinação de criar estruturas e meios para evitar a punição dos seus agentes, artífices da manutenção da estrutura do Estado autocrático. A postura mais comum residiu em tentar colocar no esquecimento os fatos de violação de direitos humanos ocorridos no período. Por outro lado, o governo militar reservou a si a condução do processo de redemocratização, criando a Lei de Anistia (Lei nº 6.683/79), que foi, em última instância, uma autoanistia, pois garantiu que as rédeas da redemocratização ficassem em suas mãos, tentando assegurar, mesmo que temporariamente, a impunidade dos seus agentes.

Com o processo de redemocratização política e o advento da Constituição de 1988 surgem os meios para uma anistia política que busque a Justiça Transicional, dando início ao percurso do Estado em assumir a sua responsabilidade pelos fatos ocorridos no passado, evitando que a verdade fique escondida, abrindo condições para que seja construída uma memória dos fatos passados, para que haja reparação às vítimas de perseguição política e aos seus familiares, bem como a busca de informar o destino dos seus entes queridos que desapareceram sob os ditames da ditadura militar.

A Justiça Transicional constitui uma busca pela reconciliação entre os atos passados e o caminho da paz, porém devido às peculiaridades do Brasil, a Justiça Transicional está bem adiantada no país no aspecto de reparação econômica aos sujeitos vitimados, ainda que não tenha chegado ao alinhamento internacional de punir os agentes que realizaram atos criminosos contra a humanidade, pois violaram os direitos humanos de suas vítimas.

Diante disso, muitas instituições como a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Ministério Público (MP) vêm especialmente após 2007 se preocupando com a Justiça Transicional no sentido de punir os agentes que cometeram crimes contra a humanidade, e na busca da verdade. No entanto, a grande demora em seguir esse rumo de evitar anistiar pessoas que praticaram crimes contra a humanidade resultou recentemente na condenação do Brasil, em novembro de 2010, pela Corte Internacional de Direitos Humanos, tendo em vista a falta de celeridade nesse processo de apuração, julgamento e punição dos responsáveis pelos crimes.

Espera-se que, com esse direcionamento da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, da Ordem dos Advogados do Brasil e do Ministério Público em busca da verdade, possa-se atender aos tratados internacionais pertinentes aos direitos humanos.

1 CONTEXTO HISTÓRICO E SOCIOPOLÍTICO PRÉ-GOLPE DE 1964

No contexto geopolítico internacional do século passado, principalmente no pós- segunda guerra mundial ocorreu à formação de dois blocos de poder em face de ideologias bastante diferenciadas: o bloco capitalista e o bloco comunista.

Nesse cenário internacional de disputa entre essas forças, foram se formando áreas de influência numa crescente e forte guerra ideológica, além dos conflitos armados indiretos que eram patrocinados pelas principais potências representantes desses blocos. Contudo, tais potências evitavam o confronto direto, para assim não correrem o risco de um conflito armado generalizado e uma talvez possível guerra nuclear.

As principais potências envolvidas nessa disputa eram os Estados Unidos da América (EUA), liderando o bloco capitalista, e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), atual Comunidade dos Estados Independentes (CEI) e que liderava o bloco comunista, em seus campos de influência tinham respectivamente a América Latina e o Leste Europeu.

Na luta ideológica e de influência sobre outros países, o aumento da atuação da URSS junto a Cuba, onde acabara em 1959 assumindo o poder um grupo guerrilheiro de ideologia comunista, provocou uma maior necessidade dos Estados Unidos da América em criar mecanismos de atuação e divulgação da sua doutrina na América Latina, e assim evitar o efeito dominó que a influência da URSS poderia fazer na região, ao ter outros países aderindo ao modelo comunista.

Razões não faltavam aos EUA para temer que os países Latino-Americanos pudessem aderir ao caminho comunista, com a ajuda da URSS. As possíveis causas relacionavam-se ao contexto sociopolítico e econômico da década de 1960, quando existiam entre esses países problemas semelhantes, tais como a alta inflacionária, déficit fiscal e na balança comercial e fuga de capitais, gerando instabilidades políticas.

“[...] Os países da América Latina enfrentavam grave crise na década de 1960, sendo em comum entre eles a alta inflação, déficit na balança comercial, fuga de capitais e déficit fiscal. Além desse fator, existia no cenário mundial a bipolaridade Estados Unidos-União Soviética, o que importou na proposição, pelo governo Kennedy, de uma integração com os países signatários da Organização dos Estados Americanos (OEA), sob o pretexto de afastar a ideologia comunista na América Latina. Consistente num programa de ajuda financeira, a “Carta de Punta del Este” foi o resultado dessa aliança, restando ratificada em agosto de 1961” (REMÍGIO, 2009, p. 179).

Os Estados Unidos da América defendem que o afastamento da influência do bloco comunista seria um caminho à integração entre os países da Organização dos Estados Americanos e propõem um programa de ajuda financeira através de uma aliança, que foi ratificada em 1961, denominada Carta de Punta del Este ou Carta da Aliança, cujo objetivo era facilitar a criação de um mercado comum latino-americano.

A Carta da Aliança tinha como metas: crescimento econômico, acesso à educação, moradias de baixo custo, melhoria no sistema de saúde pública, distribuição de renda, eliminação do analfabetismo, ou seja, eram ofertas muito boas. Aos países necessitados bastavam o apelo em firmar empréstimos financeiros para realizar suas metas.

Os EUA, assim, lançavam as justificativas para uma ingerência nos países Latino-Americanos, pois agora tinham interesses a preservar e manter na região em prol de um bem maior: esse foi um dos pretextos norte-americanos para justificar a defesa dos seus interesses em apoiar governos, democráticos ou não democráticos desde que garantissem os interesses norte-americanos.

“Durante um longuíssimo período, a política externa norte-americana foi orientada por um axioma segundo o qual as ditaduras latino-americanas garantiam melhor a proteção dos interesses norte-americanos do que as turbulentas e instáveis democracias que ocasionalmente despontavam na região” (BARON, 1994, p. 34).

A instabilidade política na América Latina foi criada principalmente nesse contexto em que os EUA apoiavam governos que defendiam seus interesses, conforme o historiador brasileiro Luiz Alberto Moniz Bandeira (2007, p. 192) afirma:

“Los golpes de Estado, que ocurrieron en los más diversos países de América Latina tras la revolución cubana, no suciederon solo por factores endógenos, inherentes a los paises de América Latina. Representaron mucho más un fenómeno de política internacional continental, en el contexto de la Guerra Fría, que de política nacional argentina, ecuatoriana, brasileña etc.”

Ou seja:

“Os golpes de Estado, que ocorreram nos mais diversos países da América Latina depois da revolução cubana, não aconteceram somente por fatores endógenos, inerentes aos países da América Latina. Representaram muito mais um fenômeno de política internacional continental, no contexto da Guerra Fria, do que política nacional argentina, equatoriana, brasileira etc.” (BANDEIRA, 2007, p. 192, tradução minha).

No caso do Brasil, havia se experimentado uma instabilidade política recente, o suicídio de Getúlio Vargas, na madrugada de 23 para 24 de agosto de 1954, tendo assumido o vice-presidente Café Filho (Potiguar Café Filho), que adoeceu e o Presidente da Câmara dos Deputados Carlos Luz assumiu em 8 de novembro de 1954 e foi deposto em 11 novembro de 1955 pelo General Henrique Lott (Henrique Batista Duffles Teixeira Lott). Quem assumiu o poder foi o Presidente do Senado Nereu Ramos que, com as eleições para novo Presidente, entrega o cargo ao Presidente eleito Juscelino Kubitschek de Oliveira, cujo vice-presidente era João Goulart, mandato de 31 de janeiro de 1956 até 31 de janeiro de 1961.

O Presidente Jânio Quadros – eleito em 1960, tendo João Goulart novamente como vice-presidente – assumiu o Governo e em sete meses, tentando conseguir mais poder, arquitetou um autogolpe para pressionar o comando dos militares, que foi a chamada carta renúncia. Essa era uma forma, ao menos na visão de Jânio Quadros, de conseguir mais poder, pois apostava que os militares não aceitariam João Goulart. Contudo, o Congresso aceitou a carta renúncia no mesmo dia, e frustrou esse plano de Jânio. O Brasil passou por momentos de articulação política até a posse de João Goulart, que no momento da renúncia de Jânio Quadros estava em viagem no exterior.

O caminho político para sair do impasse de assumir ou não a Presidência do Brasil por parte de João Goulart foi a Emenda Constitucional nº 4, de 2 de setembro de 1961, denominado Ato adicional, que implementou o regime Parlamentarista no Brasil, e assim ao aceitar a proposta João Goulart pode assumir a Presidência do Brasil.

2 O GOLPE MILITAR DE 1964 NO BRASIL

Nesse cenário político efervescente, o governo de João Goulart propôs implementar suas Reformas de Base, a despeito de uma oposição forte e conservadora, que detinha no Congresso a maioria. Esse fato impossibilitou que seus projetos, desagradáveis à maioria, fossem aprovados, no entanto, a oposição ao Governo João Goulart não cessou, pelo contrário, continuou ativa e forte.

O incidente com a Revolta dos Marinheiros (motim) em 26 de março de 1964, decorrente de reivindicações desses militares e de sua associação contra os maus-tratos às praças, que em conjunto com outros grupos e associações de classes procuravam seus direitos políticos para uma vida mais digna dentro das forças armadas, cujos envolvidos foram anistiados pelo Presidente João Goulart, ensejou uma forte reação dos comandantes militares contrários ao Governo que, sob a alegação de quebra da disciplina, agiram o mais rápido possível para colocar em prática seus planos para dar o golpe militar.

“Em 26 de março, eclodiu no Rio de Janeiro a chamada Revolta dos Marinheiros, que representou uma reação à liberdade de manifestação da associação militar chamada “Fuzinauta” contra os maus-tratos às praças. O confronto armado somente ocorreu porque foram enviadas tropas para expulsá-los de uma reunião na sede do Sindicato dos Metalúrgicos no Rio de Janeiro. Estavam no sindicato, além dos praças da Marinha, grupos da Aeronáutica, componentes da Associação dos Cabos da Força Aérea Brasileira, igualmente insatisfeitos, cujas reivindicações eram, essencialmente, o direito de se casarem, de constituírem uma associação e o direito a um tratamento mais digno dentro das forças armadas. Ao tomar conhecimento dessa reunião, o ministro da Marinha deu ordens para encerrar o encontro. Mas o Almirante Aragão, executor da ordem, negou-se a cumpri-la. Quando outro grupo de oficiais chegou ao local e ordenou a invasão aos fuzileiros, estes desobedeceram e aderiram ao movimento. A crise se estendeu até o dia seguinte, pois o presidente João Goulart encontrava-se fora da capital federal, chegando ao ápice quando alguns marinheiros foram metralhados após deixaram seus navios para se juntarem aos demais. Encerrada a crise, Jango acatou as reivindicações, sem que ordenasse a punição dos envolvidos. Mais uma vez, um fato que desagradou aos militares, pois a passividade de João Goulart com a apontada indisciplina militar o fez alvo de acusações de apoiar o movimento comunista possivelmente existente dentro das forças armadas, fato este que se revela como a causa mais imediata para o golpe” (REMÍGIO, 2009, p. 181).

Em 31 de março de 1964, iniciavam-se os preparativos para o golpe de 1º de abril de 1964, por conta do qual o Presidente João Goulart partiu para o exílio. Não se deve pensar que foi somente um golpe militar, pelo contrário, foi um golpe com apoio das classes dominantes, de grupos da classe média e principalmente financiado pelo governo norte-americano através dos seus mecanismos de incentivos e agências.

Estava assim instaurada a ditadura militar no Brasil, que passa a agir tentando formar um aspecto de legalidade e democracia. Para justificar o seu governo, começaram a emitir atos ilegais, pois não tinham previsão constitucional para sua edição e assim formar uma estrutura aparentemente legal na forma, porém ilegal e antidemocrática no seu conteúdo, que eram os atos institucionais, chamados de AI.

No primeiro AI (AI-1), 09 de abril de 1964, foram suspensos os direitos constitucionais por sessenta dias e foram cassados direitos políticos das pessoas que integravam uma lista indicada pelo regime militar. Também foram autorizadas a suspensão dos direitos políticos e a cassação de mandatos eletivos, além da extinção de órgãos que apoiavam reformas de base e da suspensão por seis meses das garantias de vitaliciedade e estabilidade; dessa forma foi possível a dispensa e demissão de servidores civis ou militares, através de atos sumários como investigações.

“A primeira fase da ditadura brasileira pode ser situada entre o golpe de Estado, quando, em abril de 1964, o autodenominado Comando Supremo da Revolução editou o AI-1 estabelecendo o estado de exceção no país, e a consolidação do regime imposto pelos militares. Baixado pelos comandantes das três Armas, tal ato formalmente manteve, depois de várias modificações, a Constituição de 1946, mas ampliou substantivamente os poderes do Executivo. Ao contrário de outros países da região, o Congresso Nacional seguiu funcionando, ainda que de forma cerceada – o Parlamento tinha, por exemplo, prazos bastante estritos para apreciar os projetos de lei encaminhados pelo presidente da República, que precisava de apenas um mês para aprová-los, em qualquer uma das Casas” (MEZAROBBA, 2004, p. 8).

O AI-2, de 27 de outubro de 1965, dissolveu os partidos políticos, criando o bipartidarismo e conferiu amplos poderes ao Presidente da República, além disso, determinou que as eleições para Presidente fossem indiretas. Já o AI-3, de fevereiro de 1966, ampliou os poderes das Assembleias Legislativas, que além de nomear os governadores e vice-governadores de Estado também podiam, agora, indicar os prefeitos das capitais e de outras cidades classificadas como de “segurança nacional”.

No dia 7 de dezembro de 1966, o AI-4 convocou extraordinariamente o Congresso Nacional para a elaboração de uma nova constituição, a qual foi aprovada em 24 de janeiro de 1967. No entanto, foi o AI-5, de 13 de dezembro de 1968, a que alguns chamaram de o “golpe dentro do golpe”, em razão de ter sido o total endurecimento da conduta do governo militar. Ele estabeleceu poderes ao Presidente da República para fechar provisoriamente o Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e as Câmaras de Vereadores, além de intervir nos estados e suspender direitos individuais, permitindo também cassar mandatos eletivos (federais, estaduais e municipais) e a garantia do habeas corpus.

“A segunda fase da ditadura teve início em dezembro de 1968, com o AI-5, que concedeu ao Presidente da República poderes para fechar provisoriamente o Congresso Nacional, intervir nos estados e suspender direitos individuais e a garantia ao habeas corpus. No chamado “golpe dentro do golpe”, o ex-presidente Juscelino Kubitschek e o ex-governador Carlos Lacerda chegaram a ser detidos e foram cassados os direitos políticos não apenas de integrantes do MDB, o partido de oposição ao governo, como da Arena, agremiação que dava sustentação aos militares. Foi o período onde a repressão atingiu seu grau mais elevado, com forte censura à imprensa e ações punitivas em universidades. Enquanto governaram o país, e ao contrário de ditaduras como a chilena, por exemplo, no Brasil os generais se revezaram no cargo de presidente, simulando uma espécie de alternância de poder, em processos sucessórios dos quais participavam apenas seus próprios pares” (MEZAROBBA, 2004, p. 8-9).

Foram editados outros atos institucionais como os AI-6 (de 01/02/1969), AI-7 (de 26/02/1969), AI-8 (de 02/04/1969), AI-9 (de 25/04/1969), AI-10 (de 16/05/1969), AI-11 (de 14/08/1969), AI-12 (de 01/09/1969), AI-13 (de 05/09/1969), AI-14 (de 10/09/1969), AI-15 (de 11/09/1969), AI-16 (de 14/10/1969), e o AI-17 (editado de 14/10/1969). Não se deve esquecer que foram criados e editados os mais diversos tipos de “atos administrativos”, que na verdade eram atos de natureza política disfarçados de meros atos administrativos para assim controlar e expurgar da vida pública e da administração pública as pessoas que poderiam pleitear reivindicações democráticas durante os governos militares.

A duração por longos anos de governo militar ensejou reações de reivindicações de direitos, levando em alguns casos até a luta armada, mesmo que de forma restrita, e não generalizada como a de uma guerra civil, bem como a movimentos que sempre procuraram reivindicar seus direitos políticos e o restabelecimento da democracia, foi um longo processo político até chegarmos à primeira lei de anistia em 1979.

3 A DEMOCRACIA É VÍTIMA DO GOLPE MILITAR NO BRASIL

O Brasil antes do golpe vinha construindo seu processo de redemocratização, pois os políticos vinham exercendo, mesmo com as inquietações políticas, os ditames previstos na Constituição de 1946. Portanto, seguia-se a ideia de uma democracia constitucional, cujos líderes representavam o poder do povo, exercendo-o em seu nome e tendo sido eleitos pelo voto. Apesar dos percalços que marcaram o período de 1946 a 1964, essa elite parecia comprometida com as instituições democráticas e com as garantias e direitos da sociedade, conforme a obediência aos preceitos constitucionais.

Com o golpe de 1964 e a instauração do governo militar, assiste-se uma ruptura com a democracia em razão de que a suposta “intervenção cirúrgica” (tomada do poder em 1º de abril de 1964), que seria breve e que manteria o país longe da ameaça comunista e restabeleceria a ordem em face do governo subversivo que existia, não foi tão breve.

No âmbito do pensamento jurídico existiram argumentos utilizados para justificar a chamada “Revolução de 1964”. Segundo o jurista Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1974, p. 68), residiria no fato de ela ter sido um contragolpe militar destinado a interromper o processo de subversão existente no governo de João Goulart – o que justificaria o fortalecimento dos aparelhos burocráticos do Estado para que a ordem fosse restabelecida.

Ainda nessa linha de que uma solução especial para salvar e fortalecer o Estado seria possível, por um curto tempo, afirma o jurista Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1974, p. 73) que:

“Tolerável, por mera suspeita a restrição, da liberdade individual além do normalmente aceito, além dos prazos normais previstos no Código de Processo Penal. Seria esse o preço de viver em sociedade numa época de crise. Essa salvaguarda seria ainda maior se a aplicação dessa legalidade especial, própria para enfrentar a guerra revolucionária, fosse condicionada à autorização prévia por tempo limitado, dado pelo próprio Chefe do Governo e controlada pela representação popular.”

A ideia de brevidade para o ato ilegal, que foi o golpe, não prosperou e instalou-se um regime de exceção com perseguição política, e com a prática de crimes contra a humanidade. O governo militar implementou os mecanismos para garantir a sua continuidade e a sua política de segurança nacional.

Quanto ao golpe militar e o afastamento da democracia, pode-se citar partes do artigo publicado na Revista de Anistia Política e Justiça de Transição do Ministério da Justiça, cujo autor é Rodrigo Ferraz de Castro Remígio (2009), que menciona:

“Desse modo, a democracia não pode ser encarada somente como o regime político que garanta a capacidade eleitoral, a organização de partidos políticos, a liberdade de expressão etc. Ela deve ser enxergada de acordo com a sua finalidade: evitar o controle estatal nas mãos de poucos, situação esta que tende a manter os privilégios de poucos grupos, aumentando-se as desigualdades sociais.

[...]

De outro lado, podemos dizer que aquilo que não é normal ou de uso corrente é algo excepcional.

[...]

A realidade brasileira do golpe de 1964 demonstra que a instalação do Estado de Exceção resultou de uma aliança entre militares, oposição e apoio norte-americano, contra a ameaça comunista representada pela política de João Goulart. Não podemos afirmar que houve um Estado Totalitário, mas sim um “Estado Autoritário” (Loewenstein) ou “Estado Burocrático Autoritário” (O’Donnel)” (REMÍGIO, p. 182-183).

A democracia sofreu com limitações e com a supressão de seus ideais de participação popular, de representação popular, de direitos e de garantias individuais, de liberdade, o que ensejou reivindicações para o fim do governo militar e o restabelecimento da democracia.

4 O PROCESSO DE REDEMOCRATIZAÇÃO E A ANISTIA AOS PERSEGUIDOS POLÍTICOS

No Brasil o início da luta pelo retorno da democracia iniciou-se desde a ocorrência do golpe militar. Essa busca aconteceu por meio de reivindicações originadas a partir da iniciativa dos vários movimentos que iam desde atos pacíficos até à luta armada.

As várias instituições de classe, os partidos políticos, o ativismo individual, a participação e as manifestações políticas, as manifestações culturais e as manifestações populares, mesmo que colocados na clandestinidade ou não, agiram para formar no seio da sociedade o desejo pela redemocratização e pela anistia aos perseguidos políticos, assim como a defesa dos direitos humanos fez brotar a semente de inquietação pelo fim do governo militar e, assim, a extinção desse estado de exceção que tivemos entre a década de sessenta até meados da década de oitenta.

Vale destacar também o fator econômico, pois o contexto mundial era de crise do petróleo e apresentava-se mais uma vez para a sociedade brasileira a necessidade de mudanças em busca de um Estado mais atuante na proteção dos direitos e anseios da sociedade como um todo, e não como um simples representante da classe dominante e de seus seguidores. Daí a preocupação do governo militar brasileiro sobre o modo como ocorreria a transição democrática, pois estava receoso acerca dos atos que tinha praticado e como poderia criar mecanismo para evitar uma busca dos fatos ocorridos e a punição dos seus agentes que agiram, em alguns casos, com atos de tortura física e psicológica, e até casos de mortes praticadas pelos agentes do Estado.

O último Presidente militar, João Baptista de Oliveira Figueiredo, que governou de 15 de março de 1979 a 15 de março de 1985, direcionou sua política de governo para realizar uma transição democrática, mais adequadamente entendida como autoanistia, por meio da aprovação da Lei de Anistia de 1979 (Lei nº 6.683/79), a qual deixou de punir os crimes políticos realizados pelos agentes públicos da repressão utilizada pelo Estado.

Essa anistia política foi o acordo possível naquele momento histórico do país, pois as forças políticas em disputa somente conseguiram essa saída para aquele momento em que ocorreu a transição. Porém, tal Lei de Anistia foi um esquecimento dos atos passados, o que era buscado pelos agentes que serviram a estrutura estatal e que atuaram durante os quinze anos de ditadura militar.

“[...] embora de grande significado no processo de democratização do país, a lei 6.683 se deu basicamente nos termos que o governo queria, mostrou-se mais eficaz aos integrantes do aparato de repressão do que aos perseguidos políticos e não foi capaz de encerrar a escalada de atrocidades iniciada com o golpe de 1964. Em outras palavras, a Lei da Anistia ficou restrita aos limites estabelecidos pelo regime militar e as circunstâncias de sua época. [...]. Dessa forma, naquele primeiro momento, em 1979, pode-se dizer que a anistia significou uma tentativa de restabelecimento das relações entre militares e opositores do regime que haviam sido cassados, banidos, estavam presos ou exilados. A legislação continha a ideia de apaziguamento, de harmonização de divergências e, ao permitir a superação de um impasse, acabou por adquirir um significado de conciliação pragmática, capaz de contribuir com a transição para o regime democrático” (MEZAROBBA, 2006, p. 146-147).

O processo de transição do governo militar para o governo civil configurou-se ainda como processo de resistência da parte do governo militar, objetivando manter o controle do processo e assim evitar maiores reivindicações, tendo em vista que as eleições foram indiretas para Presidente da República. Ao fim desse processo eleitoral, o candidato vencedor foi Tancredo Neves, mas não pode tomar posse por motivos de saúde, por esse motivo assumiu seu vice-presidente José Sarney (José Ribamar Ferreira Araújo da Costa Sarney), com o mandato de 15 de março de 1985 até 15 de março de 1990.

Diante de um novo governo foi criado uma constituinte para elaborar a nova Carta Magna, que resultou na Constituição de 1988, chamada de “Constituição Cidadã”, devido ao destaque dado aos direitos e garantias fundamentais como princípios constitucionais e a democracia. A nova Carta também estabeleceu uma diferente roupagem ao conceito de Anistia Política, conforme o art. 8 de suas disposições constitucionais transitórias (ADCT), que não segue o mesmo caminho da Lei de Anistia de 1979 (Lei nº 6.683/79), pois não deu anistia aos crimes humanitários.

5 TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA NO BRASIL

Em relação ao processo de transição no Brasil ocorreu o possível naquele momento em que os militares entregavam o poder, ou seja, a Lei de Anistia de 1979 (Lei nº 6.683/79), decorrente do acordo de força que os militares colocaram para entregar o poder e não de uma Justiça de Transição. Entretanto, vale ressaltar que os mecanismos de autoanistia não são aceitos pela Corte Internacional de Direitos Humanos.

A preocupação inicial era garantir uma possibilidade de retorno das pessoas cassadas politicamente e que foram exiladas pelo Estado, ou se autoexilaram para escapar da perseguição política, e também garantir a criação de uma Assembleia Constituinte, pois o foco era garantir uma mudança de governo.

“A anistia brasileira, datada de 1979, embora tenha surgido pela pressão de movimentos sociais que se opunham ao regime ditatorial e lutavam pela abertura política, foi conduzida e chancelada pelo próprio regime militar, o que impediu que processos mais incisivos de resgate da memória política pudessem acontecer, nos moldes do que se viu, por exemplo, tanto no Chile quanto na Argentina” (MARTINS, 2010, p. 218).

Na verdade, a Justiça de Transição somente vai ocorrer de forma mais coerente a partir da Constituição de 1988, pois, embora não citada textualmente na Constituição, optou-se pela Anistia Política (art. 8, ADCT). Nesse sentido, compreende-se como a Anistia Política nos moldes do art. 8 do ADCT da CF/1988, como o reconhecimento de que o Estado errou, que os atos passados não devem ser esquecidos e que os crimes cometidos contra a humanidade são imprescritíveis. Assim, o Estado brasileiro tem de assumir a responsabilidade pelos momentos históricos ocorridos, dar às vítimas de perseguição de natureza política, e aos seus familiares, o direito de reparação, seja de ordem econômica, seja de ordem jurídica.

A Corte Internacional de Direitos Humanos considera limitada a forma que o Brasil trata o seu passado de perseguição política, especialmente com relação à jurisprudência daquela corte no tocante à punição dos culpados de crimes contra a humanidade. Aos olhos daquela corte o país não revelou a verdade dos fatos de violação dos direitos humanos e não puniu as pessoas que os praticaram como se era de esperar de uma ordem política comprometida com a efetivação dos direitos humanos. Essa postura do Brasil poderá ter como consequência uma punição no âmbito internacional por descumprir esse entendimento, como já foi punido no caso da Guerrilha do Araguaia em 24 de novembro de 2010.

Surge uma questão diante dessa decisão da Corte Internacional de Direitos Humanos em relação ao Estado Brasileiro, que é a capacidade ou não de o Estado Brasileiro utilizar dispositivos de âmbito interno a fim de viabilizar proteção e obediência ao disposto na Convenção Americana de Direitos Humanos.

Buscando dirimir essa questão diante da Corte Internacional de Direitos Humanos, o Estado Brasileiro mostrou na defesa do processo da Guerrilha do Araguaia que adota medidas como as Leis nº 9.140/95, 10.536/02 e 10.559/02, e o relatório da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e a Comissão Interministerial.

“Por sua vez, a realidade do Estado brasileiro reflete a condição histórica trazida pelas alterações realizadas essencialmente nos planos social, político e econômico, o que faz aflorar questões que ainda não foram resolvidas no âmbito do Direito, retratadas como desafios perpassados pelas exigências de mudanças.

No que tange à Justiça de Transição pode ser analisado que as atitudes do Estado brasileiro não têm sido suficientes para garantir a reparação, respeitando os direitos à verdade e justiça das vítimas das atrocidades a que aqueles que não apoiavam a ditadura militar foram submetidos” (LISBÔA, 2011, p. 11325).

A linha de conduta adotada pelo Governo Brasileiro em relação à temática da anistia centrou-se na Lei nº 6.683/79 e na EC nº 26/85, concedendo anistia de forma irrestrita às pessoas que praticaram crimes contra a humanidade, desconsiderando a jurisprudência da Corte Internacional, que é pelo não acolhimento do perdão contra crimes humanitários.

O Estado Brasileiro tem outros mecanismos albergados na Constituição de 1988, que, no seu art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias não acolheu a proteção das pessoas que cometeram crimes contra a humanidade, e sim direcionou o seu foco em matéria constitucional para as pessoas que foram vítimas de atos de perseguição política, aos familiares dos mortos e desaparecidos.

Ao realizar a reparação econômica das vítimas de atos de perseguição política, dos familiares de mortos e desaparecidos, o Estado reconhece seus erros passados. Isso não deve ser uma busca do esquecimento da verdade do que aconteceu nos anos da ditadura, mas sim uma reparação para tentar restabelecer às vítimas ao menos uma mínima condição de assistência do Estado pelos erros que permitiu que ocorressem.

“d) Lei nº 9.140/95: Reparação econômica aos familiares de mortos e desaparecidos políticos. Reparação, Verdade e Memória.

Sete anos após a promulgação da Constituição, surge a Lei nº 9.140/95, criando a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, vinculada à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Em seu anexo, a lei traz uma lista contendo 136 nomes de pessoas desaparecidas em razão de detenção por razões políticas, conferindo a elas o status de morte presumida.

Apesar de a finalidade legal consistir na concessão de indenização aos familiares de desaparecidos políticos, na realidade a Lei nº 9.140/95 assume um papel muito mais nobre dentro da Justiça de Transição observada no Brasil. O pagamento, sem dúvidas, é meramente simbólico, representando, sobretudo, o reconhecimento do Estado brasileiro dos fatos do regime ditatorial. Embora se faça uma reparação econômica, as atividades dessa Comissão significam um resgate da verdade e da memória. Além disso, espelha uma reconciliação entre Estado e vítimas, por meio do restabelecimento de uma história de vida interrompida, possibilitando aos familiares um novo fôlego para a vida. É, por isso, um importante passo para a reconfiguração dos anseios de muitas famílias, de terem conseguido obter uma resposta democrática do Estado, das agruras praticadas por ele próprio enquanto esteve sob as rédeas da repressão militar.

e) Lei nº 10.559/02: Reparação econômica aos atingidos por atos de exceção.

A Lei nº 10.559/02 é fruto da Medida Provisória nº 2.151, de 2001, que se apresenta como efetivação da anistia política prevista no art. 8º do ADCT. Como já fora mencionado, revela a preocupação com a reparação econômica a quem sofreu perseguição política, possibilitando a reintegração do servidor e a readmissão do trabalhador. A Lei nº 10.559/02 dispõe sobre o regime jurídico do anistiado político, enunciando, em seu art. 2º, um rol de pessoas que se enquadram na previsão constitucional, consideradas “perseguidas políticas”. Mas, frise-se desde já, que essa listagem é meramente exemplificativa, uma vez que o legislador não poderia prever todos os casos de perseguição política. Em verdade, referido dispositivo serve de vetor orientador para a Comissão de Anistia no momento de análise dos requerimentos de anistia política” (REMÍGIO, 2009, p. 191-192).

A rediscussão da Anistia Política vem sendo abordada com certa ênfase desde 2007 pela Comissão de Anistia (órgão de assessoramento do Ministério da Justiça). O Ministério Público Federal e a OAB vêm despertando para a chamada Justiça Transicional.

“Em relação à atuação da OAB, o seu Conselho Federal ingressou com a ADPF nº 153 perante o Supremo Tribunal Federal, para que o Judiciário brasileiro declare que a anistia por ela tratada em lei “não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos durante o regime militar (1964/1985)”. Sustenta a OAB que mesmo sendo a Lei nº 6.683/79 fruto de um acordo político, os direitos humanos são inegociáveis. Por essa razão, não seria possível fazer-se, por meio da lei, uma convalidação dos crimes contra a humanidade.

Sobre a atuação do Ministério Público Federal, foi ajuizada em 14 de maio de 2008 uma ação civil pública contra a União e os militares Carlos Alberto Ustra e Audir Santos Maciel. Ela tem a pretensão de tornar públicos os chamados arquivos secretos do DOI-Codi de São Paulo, bem como a declaração judicial de reconhecimento da culpa por torturas e assassinatos pelos segundos demandados. Também se observa que o procurador da república Marlon Weichert denunciou o caso à organização não governamental Cejil (Center for Justice and International Law). Esta, por sua vez, denunciou o caso na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, questionando o Estado Brasileiro sobre a omissão na investigação e punição de torturadores na época do regime militar.

Em 28 de agosto de 2001 foi criada a Comissão de Anistia como órgão de assessoramento do Ministério da Justiça, cuja finalidade precípua é assessorar o Ministro da Justiça na concessão das anistias políticas. A partir de 2007 houve uma preocupação em incluir dentre as atividades da Comissão de Anistia medidas que trouxeram à tona o conceito de Justiça de Transição, nos moldes adotados em outros países da América Latina e em conformidade com as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Sobre tais medidas, podemos destacar a Caravana da Anistia, a Anistia Cultural e o Seminário Latino-Americano de Justiça de Transição” (REMÍGIO, 2009, p. 192-193).

Dessa forma, a Justiça Transicional vem sendo exercida em busca da verdade e na manutenção das reparações das vítimas e dos seus familiares. No entanto, essa busca pela verdade parece não gerar na sociedade como um todo os mesmos desejos que foram demonstrados pela redemocratização e pela realização da apuração da verdade dos fatos, ficando ainda sem a devida importância de que a temática merece.

“Permanentemente assombrados pela possibilidade de reconstituição do passado, os militares continuam se mostrando os mais interessados em não lembrar os abusos ocorridos a partir de 1964, evidenciando que ainda hoje não lhes foi possível esquecer. Da mesma forma, a duradoura necessidade de recordar, movida por reivindicações nunca atendidas, verdades desconhecidas e pelo desejo de que aquele sofrimento não mais se repita, tem oposto às vítimas do arbítrio e seus familiares a possibilidade de olvidar. Desprendida do debate segue, alheia, a sociedade. Parece ser a única que, de fato, conseguiu construir o esquecimento” (MEZAROBBA, 2006, p. 150-151).

6 O PAPEL DA JUSTIÇA TRANSICIONAL PARA A CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA BRASILEIRA

O legado de violações de direitos humanos pela sociedade onde ocorreram precisa ser enfrentado, bem como os atos de barbárie praticados por conflitos armados ou momentos de repressão, exigindo a transformação das estruturas político-administrativas que permitiram a ocorrência de tais atos e possibilitando uma recondução a um regime legítimo que passou a limpo os atos abusivos que tantos malefícios causaram às vítimas da repressão.

Para que isso ocorra, faz-se necessária a utilização da Justiça Transicional, que tem por objetivo desenvolver todo um caminho para se alcançar a construção dessa paz na sociedade e o resgate da verdade dos fatos ocorridos durante a ditadura.

“A Justiça Transicional é um ramo altamente complexo de estudo, que reúne profissionais das mais variadas áreas, passando pelo Direito, Ciência Política, Sociologia e História, entre outras, com vistas a verificar quais processos de Justiça foram levados a cabo pelo conjunto dos poderes dos Estados nacionais, pela sociedade civil e por organismos internacionais para que, após o Estado de Exceção, a normalidade democrática pudesse se consolidar. Mais importante, porém, é a dimensão prospectiva desses estudos, cuja aplicação em políticas públicas de educação e justiça serve para trabalhar socialmente os valores democráticos, com vistas à incorporação pedagógica da experiência de rompimento da ordem constitucional legítima de forma positiva na cultura nacional, transformando o sofrimento do período autoritário em um aprendizado para a não-repetição”. (ABRÃO; TORELLY; ALVARENGA; BELLATO, 2009, p. 12).

As famílias das vítimas devem saber o que aconteceu aos seus entes queridos, devem ser reparados econômica e judicialmente, com a punição dos algozes que agiram sob o comando do Estado. Essas são as condições mínimas para que se possa falar de justiça transicional.

“Pode-se definir a justiça transicional como o esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos. O objetivo da justiça transicional implica em processar os perpetradores, revelar a verdade sobre crimes passados, fornecer reparações às vítimas, reformar as instituições perpetradoras de abuso e promover a reconciliação. O que foi mencionado anteriormente exige um conjunto inclusivo de estratégias formuladas para enfrentar o passado assim como para olhar o futuro a fim de evitar o reaparecimento do conflito e das violações. Considerando que, com frequência, as estratégias da justiça transicional são arquitetadas em contextos nos quais a paz é frágil ou os perpetradores conservam um poder real deve-se equilibrar cuidadosamente as exigências da justiça e a realidade do que pode ser efetuado a curto, médio e longo prazo” (ZYL, 2009, p. 32).

A obrigação do Estado não pode ficar limitada apenas à reparação econômica, pois o mesmo tem o dever de investigar, processar e punir os que cometeram crimes contra os direitos humanos, de revelar a verdade dos fatos para as vítimas, e seus familiares, bem como para a sociedade. O Estado precisa reestruturar-se a fim de efetivar os direitos humanos.

“[...] a necessidade de uma punição para os crimes cometidos contra a humanidade, crimes de genocídio perpetrados contra quem pensava diferente, buscando, em especial, que tais fatos não se repitam. Não se prega aqui a pena de morte, mas a aplicação de uma pena que mostre que abusos praticados por pessoas sob a guarida de uma ditadura não podem ser esquecidos, não podem ficar impunes” (RUDNICKI, 2009, p. 177).

Em vários países do mundo, a Justiça Transicional tem exemplos de sua atuação onde tiveram necessidade de sua aplicação, tais como Timor Leste, Argentina, Chile, África do Sul e outros mais. Portanto, é um campo jurídico cuja atividade tem uma contribuição a oferecer na reconstrução dos caminhos para um Futuro mais justo, fraterno e solidário.

Durante regimes de repressão e de conflitos armados, atrocidades podem ocorrer, bem como violação de direitos. Porém, passar desse estado de exceção para a democracia é um processo que acontece mediante transformações que visam melhorar as estruturas do Estado, que estão envolvidas nessas violações, ou as que permitiram a sua ocorrência em razão da falta de mecanismo que possibilitassem a manutenção da democracia e do exercício dos direitos e garantias individuais.

O Estado tem de assumir suas responsabilidades em relação ao passado. Entretanto, é o engajamento da sociedade junto ao Estado que pode construir uma paz duradoura e criar mecanismos que não permitam o retorno de momentos de exceção, garantindo o expurgo dos fantasmas do passado. Trata-se de passar a limpo o passado sem revanchismo, somente uma busca pela verdade.

O exercício da Justiça de Transição exige dimensões que servem de base para construção de um caminho capaz de recompor o Estado e a Sociedade, em acordo com as necessidades e peculiaridades de cada país, que as utilizarão em conjunto ou separadamente.

“[...] I – A justiça transicional tem por finalidade promover uma transição de regimes, que oportunize justiça, o que engloba a implementação de diversas dimensões e/ou estratégias, tais como: perdão, reparação pecuniária, respeito à memória individual e coletiva, promoção do direito à verdade e à justiça e de reforma da administração pública e dos seus quadros, todos com vistas à (re)construção de uma genuína democracia;

II – Deve ser sublinhado que a justiça transicional não se propõe a formalizar revanchismos de um grupo – ou segmento da sociedade – em face dos demais, mas tão somente pretende estabelecer a reconciliação nacional;

III – O propósito de tratar os direitos relacionados à transição, quais sejam: direito ao perdão ou direito à anistia, reparação econômica, direito à verdade e à memória, direito à justiça e reforma da administração pública, como dimensões, é transmitir a ideia de que elas não são excludentes, mas adicionadas, como que em cadeia, podendo – ou não – seguir uma ordem – e, quando conjugadas, colaboram efetivamente para a concretização de uma justiça transicional plena;

IV – Convém destacar que o direito à anistia e o direito à reparação pecuniária estão bastante avançados no Brasil, tanto no que se refere à legislação, como à sua implementação, o que se atribui ao fato de ser menos oneroso ao Estado quitar o passivo da ditadura, ao invés de discuti-la, o que certamente ensejará responsabilidades e reformas significativas na sua política e estrutura administrativa;

V – No que tange aos direitos à verdade, à memória e à justiça, percebe-se um caminhar tardio e leniente do Estado brasileiro. Primeiramente, em decorrência do longo transcurso temporal para a construção do conjunto regulatório transicional ora vigente. Por semelhante modo, a leniência patenteia-se nos obstáculos gerados, pelo próprio Estado, para promover a apuração, a exposição e os julgamentos das arbitrariedades perpetradas durante o regime ditatorial militar. Ainda, há que ser comentado sobre a apatia gestada, permitida e consensuada na sociedade civil, para deslegitimar e suprimir de todo a busca pela verdade, inclusive, por meio da obstacularização aos seus marcos normativos;

VI – Ainda, verificou-se a razoabilidade quantitativa das normas constitucionais, normas infraconstitucionais e documentos internacionais sobre justiça transicional hodiernamente vigentes no Brasil, os quais garantem sua plena guarida normativa;

VII – Por fim, entende-se que a questão remanescente – para a efetividade da justiça transicional no Brasil – subjaz, dentre outros motivos, na vontade política do governo nacional de apurar e expor os arbítrios cometidos durante o regime de exceção, através da Comissão Nacional da Verdade, bem como dos julgamentos judiciais que se fizerem necessários, não se olvidando de, na tessitura de ambos, incluir a própria sociedade, haja vista ser esta a genuína beneficiária, que, ademais, traz consigo a legitimidade – tão necessária – para a promoção e monitoramento das políticas públicas vinculadas à verdade, à memória e à justiça”. (LOPES; CHEHAB 2011, p. 11375-11376).

A Justiça de Transição, com medidas eficazes, procura criar uma interação entre os fatos passados e o presente, para que a nação não fique com meias verdades, ou omissões em punir os culpados de crimes. Tais medidas passam pelo resgate da memória dos fatos ocorridos, a busca da verdade, da responsabilização do Estado pelos atos ilegais ocorridos, e reformulação das estruturas do Estado. Isso é necessário para que a consciência política social aconteça e evite no futuro novos fatos de violência contra a humanidade.

A consolidação do chamado Estado de Direito, com as estruturas de controle e equilíbrio entre os poderes da república, deve evoluir ao que se denomina de neoconstitucionalismo. Vale ressaltar que o âmago da ideia de Estado de Direito se relaciona ao salvo-conduto de direitos fundamentais como limites à ação estatal instrumentalizada pela força da maioria. Dessa forma, o caráter neoconstitucionalista manifesta na democracia e no pluralismo jurídico sua concretização existencial, realizável no princípio da dignidade humana contra a intolerância de uma visão monista do Estado e do sistema jurídico. Tais princípios devem, sob pena de superficialidade do processo de transição, alimentar a Justiça Transicional.

“A democracia pluralista forma uma consequência organizadora da dignidade humana – o que aparece como simples “forma estatal” é uma correspondência mais profunda. (...) Dignidade humana e democracia formam as duas faces da mesma res publica, que dão forma ao Estado Constitucional do atual estágio de evolução. A ilustração e o entendimento ocidental da democracia atuam profundamente. A dignidade e o valor próprio da pessoa tiveram de ser concebidos por filósofos antes de se “coagularem” em princípios jurídicos. A democracia teve de ganhar-se lutando bem duramente – partindo da Inglaterra –, até que amadureceu nesse conjunto de procedimentos e instituições múltiplas que hoje a caracteriza. Competência e diversidade, alternativas e oposição, a alternância de maioria e minoria, o desenvolvimento aberto – tudo isso são consequências da dignidade humana como premissa antropológico-cultural do Estado Constitucional” (HÄBERLE, 2015, p. 70).

A busca pela verdade na Justiça Transicional é o resgate do que realmente aconteceu, porém no Brasil ocorreu a edição da Lei nº 11.111/05, que colocou os documentos do governo em segredo durante um bom lapso de tempo, dificultando ou até mesmo tornando trabalhoso, ou inviável essa pesquisa pela verdade.

“[...] Um dos diferenciais da comissão de verdade é a ênfase na vítima. Enquanto julgamentos criminais procuram analisar os fatos e sua relação causal com o acusado, a comissão permite uma maior atenção aos relatos das vítimas e de seus familiares. Este fato beneficia uma cura psicológica e um alívio dos traumas causados pela violência das violações. O efeito catártico e expurgatório que os achados de uma comissão podem gerar na sociedade não pode ser ignorado” (PINTO, 2010, p. 130).

Apesar da autoanistia instituída pelo governo militar (Lei nº 6.683/79 e a EC nº 26/85), espera-se do Estado brasileiro a responsabilização dos agentes que praticaram crimes contra a humanidade, apurando-os e punindo seus executores.

“[...] a justiça não se esgota nos atos de reparação. É preciso examinar o outro lado da questão. A reparação e a indenização aos que foram perseguidos, demitidos, presos, torturados ou mortos é apenas uma meia justiça. A justiça completa implica – e não podia deixar de ser assim – no julgamento dos culpados. Senão não é justiça. O crime de tortura – é preciso repetir mil vezes – é um crime hediondo, imprescritível e insuscetível de anistia. Passar ao largo da monstruosidade que o país viveu durante a ditadura macularia para sempre a nossa história” (MARTINS, 2010, p. 249).

A dimensão da reparação está bem avançada no Brasil, o que demonstra que nesse campo a vontade política tem sido muito bem direcionada, ao cumprir a anistia política prevista nos moldes do art. 8º do ADCT da CF/1988, que foi regulamentado pela Lei nº 10.559/2002.

A busca de elaborar uma memória dos fatos passados constitui-se num dever do Estado. Esse resgate de um passado que causou prejuízos de todos os tipos às pessoas, precisa ser catalogado e publicizado para assim criar na sociedade uma noção do que realmente ocorreu, evitando que uma nova edição desses tipos de atos volte a ocorrer no futuro.

A autoanistia criou e permitiu que estruturas estatais comprometidas para o exercício pleno da democracia fossem reformuladas no Brasil, embora no âmbito econômico tenham sido reformuladas. As estruturas de polícia e os demais órgãos investigativos têm evitado formular reformas profundas que afetem seus funcionamentos nos moldes antigos que lá estão colocados, pois a realidade é que a mudança de uma ditadura militar para uma democracia.

“[...] a Constituição democrática de 1988 recebeu o Estado estruturado sob a ditadura militar (1964-1985), ou seja, o Estado reformado pelo PAEG (Plano de Ação Econômica do Governo), elaborado por Roberto Campos e Octávio Gouvêa de Bulhões (1964-1967). O PAEG, e as reformas a ele vinculadas, propiciou a atual configuração do sistema monetário e financeiro, com a criação do Banco Central do Brasil (Lei 4595, de 31 de dezembro de 1964), do sistema tributário nacional (Emenda Constitucional nº 18, de 1º. de dezembro de 1965, e Código Tributário Nacional, Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966) e da atual estrutura administrativa, por meio da reforma implementada pelo Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, ainda hoje em vigor” (BERCOVICI, 2010, p. 78).

O poder político resulta do amálgama entre deveres e responsabilidades pautadas na carta magna e nas leis ordinárias e resguardar os direitos do cidadão contra usos e abusos de quem exerce o poder político. Destacam Pinho e Sacramento (2009), acerca da relação entre a prestação de contas (accountability) e democracia:

“Nesse ponto, considera-se importante destacar que um dos primeiros resultados das reflexões de Campos foi o de relacionar accountability com democracia (1990:33), considerando que é maior o interesse pela accountability em sociedades que apresentam avançado estágio democrático. Mais tarde, Schedler (1999) vai reconhecer que o significado da accountability é antagônico ao poder monólogo, o que contribui para reforçar a ideia anteriormente apresentada sobre a responsabilidade objetiva, exigida de fora, tornando necessário o estabelecimento de um diálogo entre os atores responsáveis e os responsivos. Esse autor ressalta que a verdadeira razão de ser da accountability reside na pressuposição da existência do poder e, nesse sentido, o seu principal objetivo não é eliminá-lo, mas controlá-lo. De fato, como pensar em exigir prestação de contas em regimes ditatoriais, nos quais a liberdade de expressão é tolhida e os dirigentes não são delegados “no” poder, mas usurpadores “do” poder? Conclui-se, portanto, que o controle da atividade estatal deve ser visto como um dos eixos que dão sustentação ao regime democrático” (PINHO; SACRAMENTO, 2009, p. 1350).

Para Andreas Shedler (2008), a prestação de contas se dá ao menos de três formas distintas, que visam prevenir e corrigir os abusos de poder: a) informação, o poder político é obrigado a apresentar os fatos de modo transparente; b) justificação, obrigação de dar justificativa e explicações de seus atos; e c) responsabilização, mediante a imputação de sanções. A congruência dessas três formas dá ao conceito da prestação de conta uma perspectiva ampla, bem como nos faz compreender que a transição do autoritarismo para uma democracia resulta de um conjunto complexo de ações, valores e processos que extrapolam a transição política. Assim como assegura Mezarobba (2009):

“O arcabouço da justiça de transição não ignora o fato de que a mudança de um regime político para outro é algo extremamente complexo, caracterizado por déficits entre normas, princípios e a realidade, e frequentemente marcado por inúmeras dificuldades – o sistema judicial existente, por exemplo, costuma ser fraco, corrupto ou ineficiente; o número de criminosos a ser processado pode ultrapassar a capacidade do sistema legal e a quantidade de vítimas e sobreviventes que aguardam uma oportunidade para narrar suas histórias ou receber uma compensação financeira pode ser imensa. Outros obstáculos para se avançar em termos de justiça e accountability costumam ser as anistias (que, num primeiro momento, podem contribuir, ou mesmo possibilitar, a mudança de regime e muitas vezes resultam de negociações entre as lideranças que deixam o poder e as que assumem o novo governo) e os enclaves autoritários que insistem em permanecer mesmo após a flexibilização do regime” (MEZAROBBA, 2009, p. 14).

Dentre as dificuldades para a efetivação da constituição de um Estado de Direito destaca-se a artificialização de reconciliações. Tais como os processos de falsa integração ou adaptação entre ordens jurídicas incompatíveis, ou melhor, irreconciliáveis. Essa realidade pode ter como produto um Estado Democrático formal, mas sem materialidade, sem a capacidade de ultrapassar as barreiras impostas pela democracia eleitoral.

Como resultante, quando não observados esses pontos é comum a crença de que a proteção e a afirmação dos direitos humanos é procedimento puramente formal. Na verdade, é necessário o entendimento de que a transição efetiva se dará com a mudança de cultura apoiada na proteção da norma jurídica, na substancialidade do conceito e na eficácia da norma constitucional, sem deixar que os interesses e as conveniências de grupos particulares se sobreponham ao processo transicional, contaminando a mudança jurídica com aspectos negativos da transição política.

Nossa transição, marcada formalmente pela Constituição de 1988, tem seu processo anterior a isso, ainda na década de 1970, sob a égide dos militares que foram perdendo pouco a pouco as rédeas do processo, assim como os civis que apoiavam o período ditatorial. A fase do processo de realização da Constituinte de 1988 apresenta um caso sui generis ao tentar agregar interesses e posturas jurídico-partidárias com interesses diversos, como bem destaca Soares Júnior (2017):

“A transição também não se reduz ao processo constituinte e a seus resultados. No caso brasileiro, a complexidade e a singularidade do fenômeno transicional consagrariam as peculiaridades características de um processo construído a partir de suas próprias deficiências, onde, ao mesmo tempo em que se proclamava a constituição de um Estado de Direito tendo como fundamentos a dignidade da pessoa humana, rechaçava-se qualquer discussão sobre o reconhecimento das atrocidades e barbáries praticadas por agentes estatais durante o período ditatorial” (SOARES JÚNIOR, 2017, p. 105).

Deixar as estruturas de Estado do modo como estão, sem reformulação, é impedir uma formação de senso do dever legal de seguir os princípios democráticos. Dessa forma torna-se urgente que a vontade política do governo seja pela reestruturação das instituições que tiveram participação em atos criminosos, ou que se omitiram diante de tais atos.

Com a reestruturação do Estado brasileiro pode-se aplicar e desenvolver os ditames democráticos, os direitos e garantias individuais, e criar assim uma cultura pela legalidade e aplicação de princípios que preservem os direitos humanos de cada membro da sociedade. E caso os traços de ingerência de poder das classes dominantes ainda existam dentro dessas instituições devem ser retiradas. A Justiça Transicional é uma constante aplicação de medidas para buscar a formação de uma sociedade no sentido de uma nação mais consciente de seus direitos e deveres, contribuindo para evitar a recorrência de outras situações de exceção como as que ocorreram no passado.

CONCLUSÃO

A democracia que foi interrompida pelo regime militar voltou a ser reestabelecida mediante acordos entre as forças da ditadura de 1964 e a oposição política. Na essência, os acordos procuraram estabelecer a política do esquecimento dos crimes perpetrados durante o regime militar.

Os acordos para anistiar os crimes perpetrados durante a ditadura foram efetivados em 1979, consubstanciando-se na Lei da Anistia. Defendia-se que esta seria a condição necessária para se conseguir a redemocratização na época.

Entretanto, o advento da Constituição de 1988 criou condições para uma anistia política nos moldes de reparação das vítimas, e não mais para proteger os que perpetraram crimes contra os direitos humanos, o que possibilitou o surgimento da Justiça de Transição, e assim o Estado foi pressionado a se responsabilizar pelo seu passado, buscando a verdade e o resgate da memória, a fim de garantir justiça às vítimas e os familiares por meio da reparação processual e econômica.

A Justiça Transicional no Brasil tem auferido mais ênfase e além da reparação econômica está agora adentrando no caminho da busca da verdade e na construção da memória dos fatos que aconteceram durante a Ditadura Militar. Portanto, em sintonia com os anseios dos tratados de Direitos Humanos Internacionais, que não aceitam perdão para as pessoas que praticaram crimes contra os direitos humanos.

O presente estudo abordou o tema da Justiça Transicional, após um período de exceção e perseguição, onde, em decorrência das peculiaridades do Brasil, foi construído inicialmente um processo de redemocratização que desconsiderou os crimes contra a humanidade praticados pelos agentes da ditadura militar.

Essa realidade começou a mudar com a Constituição de 1988 que ensejou a emergência da Justiça Transicional como reparadora econômica e jurídica das vítimas e dos familiares. Trata-se, em última instância, de efetivar a justiça, resgatar a verdade e criar uma memória do passado para que não voltem a acontecer fatos semelhantes em nosso país.

Fica claro que a (re)estruturação do Estado de Direito perpassa por uma atitude de enfrentamento das práticas nocivas de tortura, de perseguições e desaparecimentos, de homicídios, ocorridos no Regime Ditatorial. Assim, a Justiça Transicional deve ser capaz de gerar a devida compensação das vítimas mediante a garantia da preservação da memória, da verdade e do perdão, visando restaurar a confiança mútua entre Estado e vítimas da repressão.

Dessa forma, pode-se concluir que a Justiça Transicional é um caminho para que o Estado promova um acerto de contas com o passado, sem revanchismos, possibilitando afastar a “cultura do medo”, firmando assim os ditames de uma ordem democrática, onde se manterá a constante vigilância para que atos criminosos contra os direitos humanos não venham a ocorrer e nem fiquem impunes.

Enfim, a Justiça Transicional permite que a sociedade brasileira amadureça politicamente e firme, no seu inconsciente coletivo, o dever legal que as instituições democráticas têm em preservar os direitos humanos, evitar o cometimento de crimes contra a humanidade e a ocorrência dos estados de Exceção.

REFERÊNCIAS

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ISSN: 2178-2466