Revista Direito e Justiça - Artigo 8

A PESSOA COM DEFICIÊNCIA E O LEGISLADOR CONSTITUINTE: ANÁLISE CRÍTICA DOS POSTULADOS EUGÊNICOS PRESENTES NA HISTÓRIA REPUBLICANA DAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

THE DISABLED PERSON AND THE CONSTITUENT LEGISLATOR: A CRITICAL ANALYSIS OF THE EUGENIC POSTULATES PRESENT IN THE REPUBLICAN HISTORY OF THE BRAZILIAN CONSTITUTIONS

Sérgio Coutinho dos SantosI

Francisco de Assis de França JúniorII

José Barros Correia JúniorIII

I Centro Universitário Cesmac (CESMAC), Maceió, AL, Brasil. (Mestre em Direito). E-mail: sergio@mundoemmovimentos.com

II Centro Universitário Cesmac (CESMAC), Maceió, AL, Brasil. (Mestre em Direito). E-mail: francajuniordireito@gmail.com

III Centro Universitário CESMAC e da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió, Al, Brasil. (Doutor em Direito). E-mail: jbarroscjr@jbarros.com.br

 

Sumário: Considerações iniciais. 1 Notas sobre um pressuposto epistemológico. 2 As constituições re-publicanas e seus postulados eugênicos. 2.1 A Constituição de 1891. 2.2 A Constituição de 1934. 2.3 A Constituição de 1937. 2.4 A Constituição de 1946. 2.5 A Constituição de 1967. Considerações fi-nais. Referências.

Resumo: O presente artigo tem como objetivo principal a análise crítica dos postulados eugênicos implícita ou explicitamente presentes nos dispositivos normativos constitucionais do período republicano da história do Brasil. Nossa opção metodológica para a análise foi por recortar como objeto de interesse as cinco constituições republicanas que antecederam aquela atualmente vigente. Articulando-se os textos produzidos pelo legislador constituinte com as reflexões produzidas na literatura sociojurídico-constitucional a respeito procuramos expor as contradições, as discriminações e os preconceitos que permeavam as relações sociais junto às pessoas com deficiência naquele período. No curso da investigação, qualquer olhar mais atento ao problema haverá de constatar um processo de produção legislativa que segue seu curso oscilando entre a indiferença, a marginalização, a necessidade de controle ou a ideia de mera compensação financeira pelos serviços prestados ao Estado. Concluindo-se com isso que, apesar dos recentes avanços, um ambiente social inclusivo e de empoderamento das pessoas com deficiência, ainda há de demandar algum tempo.

Palavras-chave: Pessoa com deficiência. Legislador constituinte. Eugenia.

Abstract: The main objective of this article is to make a critical analysis of the eugenic postulates implicitly or explicitly present in the constitutional normative devices of the republican period of Brazilian history. Our methodological option for the analysis was to cut as an object of interest the five republican constitutions that preceded the one currently in effect. By articulating the texts produced by the constituent legislator with the reflections produced in the socio-juridical-constitutional literature, we seek to expose the contradictions, discriminations and prejudices that permeated social relations involving people with disabilities in that period. In the course of the investigation, any closer look at the problem will have to verify a process of legislative production that follows its course oscillating between indifference, marginalization, the need for control or the idea of mere financial compensation for the services rendered to the State. In conclusion, despite the recent advances, an inclusive social environment and the empowerment of people with disabilities will still require some time.

Keywords: People with disabilities. Constituent legislator. Eugenic.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Na história da estruturação da sociedade brasileira, sobretudo com o advento dos ideais republicanos – formalmente instituídos a partir de 1889 –, as discussões sobre igualdade quase sempre se estabeleceram dentro de um espectro de contradição. É forçoso reconhecermos que, no início, dificilmente esses debates ocorriam sem a utilização de fórmulas discriminatórias e, o que é pior, marcadamente preconceituosas. Aliás, as tentativas de se estabelecerem tais parâmetros, prestavam-se a evidenciar que, apesar de sermos teoricamente todos iguais, deveriam existir, na esteira da célebre sátira orwelliana (ORWELL, 2007), uns são mais iguais que outros.

Dadas as circunstâncias históricas – em que, por um lado, tínhamos a entusiasmada recepção dos ideais liberais provenientes do velho continente e, por outro, o receio da classe dominante de que os espaços de privilégios viessem a diminuir –, numa análise ainda que superficial desse passado não tão distante da formação sociopolítica brasileira, é de se perceber um ambiente fértil à recepção de teses do tipo eugênicas, inclusive no âmbito das ciências jurídicas. O fato de terem sido gestadas em áreas do conhecimento marcadas pela cientificidade dava aos seus defensores a aparente convicção de que detinham a verdade, o que, além de dificultar a contraposi-ção, acabava facilitando sua absorção pelo sistema jurídico-constitucional.

É certo que não abarcaremos todas as questões relacionadas aos postulados eugênicos, que, dentre outras questões, tanto poderiam se referir à possibilidade de seleção genética, biológica, racial, física ou estética das pessoas. Aqui, como logo se perceberá, vai nos interessar, sobretudo o critério físico, ou seja, o uso disso numa tentativa do legislador constituinte de promover, implícita ou explicitamente, uma espécie de melhoramento do povo brasileiro. Desse modo, o objetivo principal da presente investigação é o de avaliar criticamente, a partir do advento da República, as constituições brasileiras no que tange às pessoas com deficiência.

A perspectiva que escolhemos se sustenta por duas razões: primeiro porque são as constituições os instrumentos normativos mais significativos, aqueles que figuram como marcos referenciais irradiadores da mentalidade do povo (especialmente de sua classe dominante) que lhes serve para legitimação; segundo porque mesmo nas constituições (ditas) republicanas, lastreadas, portanto, num discurso de alegada igualdade, é possível identificarmos rastros de discriminação e até de preconceito ainda hoje em voga no imaginário da população.

Nesse sentido, nossa análise seguirá uma ordem cronológica, sem, no entanto, considerarmos a Constituição (dita cidadã) ora vigente, de 1988, vez que, o que nos interessa é a compreensão do cenário jurídico-constitucional que se instalara num período que nos antecedia, ou seja, interessava-nos explorar melhor a mentalidade dos legisladores constitucionais vigente num período que não vivenciamos tão diretamente como o que acontece com o atual, que nos é contemporâneo. Ademais, além da necessária e pontual revisão bibliográfica que empreendemos, esse processo crítico-analítico se deu norteado pela consulta a textos integrais de cada uma das constituições, tais como se encontram disponíveis no sítio eletrônico da Presidência da República1.

1 NOTAS SOBRE UM PRESSUPOSTO EPISTEMOLÓGICO

Na perspectiva de Rabinovich-Berkman (2007, p. 19), a escassez de referências documentais pode ser vista como um dado com significado próprio. O vazio de informações é uma informação que deve ser estudada. Desde logo, “podrá plantear las diferentes hipótesis que se le ocurren a partir del material que sí posee, las comparaciones analógicas”, mas com o cuidado de que há mudanças na linguagem empregada em distintos períodos. Por isso, passam a haver elucubrações, hipóteses de investigação, mas não mais uma análise segundo a própria época investigada. Por isso, de acordo com o mesmo autor, não se torna possível que resultem em conclusões, mas apenas que tragam novas questões a partir do passado, pois “si planteasen como conclusión, el carácter científico de la obra se vería seriamente comprometido”.

Como se pôde constatar, a expressão “pessoa com deficiência” foi empregada por nós, exigindo-se, portanto, que se defina explicitamente seu conteúdo. A expressão tornou-se constante na esfera jurídica internacional com a aprovação, em 2006, da resolução que estabeleceu a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência2, cujo conceito presente em seu artigo inaugural assevera: “Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”.

No Brasil, por intermédio do Decreto Legislativo n. 186, de 2008, e do Decreto n. 6.949, de 2009, as disposições convencionadas pela comunidade internacional sobre as pessoas com deficiência em 2006 acabaram ingressando no ordenamento jurídico já com status constitucional. Como se sabe, uma vez atendidas as exigências do art. 5º, § 3º, da atual Constituição da República, tratados e convenções devem ser aceitos como instrumentos equivalentes às emendas constitucionais. Nesse passo, essa emenda supriu uma lacuna importante nos debates sobre o tema. Antes disso, a imprecisão terminológica incomodava, disseminando-se, mesmo nos textos legais, expressões como “inválidos”, “incapazes fisicamente”, “portadores de deficiência”, dentre outras.

Aqui não serão especificadas essas variadas expressões outrora utilizadas pelos legisladores constituintes, vez que, em outros tempos, por regra, não havia qualquer preocupação conceitual para com a utilização das palavras que hoje seriam encaradas como essencialmente preconceituosas. Não havia um cuidado em sistematizar essas normas em particular, definindo-as melhor para que seu campo de abrangência fosse suficientemente claro e respeitoso da dignidade humana. Assim, a análise crítica que nos preocupamos em desenvolver adiante acaba tendo que considerar dispositivos constitucionais que, como antevisto, utilizavam-se de expressões que nos remetem ao que contemporaneamente se convencionou denominar de pessoa com deficiência.

Não é, portanto, um processo crítico-reflexivo dos mais fáceis o que nos propusemos a desenvolver. Muito pelo contrário. Revisitar o passado em busca de circunstâncias que poderiam se prestar a explicar problemas atuais será sempre uma providência com um grau lato de complexidade (OLIVEIRA, 2004). Avalie-se então quando se articulam História e Direito. Daí porque, reconheça-se desde já, nossas sucintas incursões não pretendem esgotar o assunto, nem tampouco oferecer verdades, mas despertar o leitor para uma temática ainda pouco explorada nos domínios da academia.

2 AS CONSTITUIÇÕES REPUBLICANAS E SEUS POSTULADOS EUGÊNICOS

2.1 A Constituição de 1891

A primeira Constituição Republicana do Brasil foi promulgada em 1891. Com o anúncio da abolição da escravatura (1888) e, logo na sequência, com a deposição de D. Pedro II, levando-nos à adoção de um sistema republicano de governo (1889), a sociedade brasileira passava a conviver mais intensamente com os ideais liberais vigentes à época. Nesse passo, sobre pessoas com deficiência, uma das referências mais antigas com a qual nos deparamos está justamente nesse diploma normativo: “Art. 71 Os direitos de cidadão brasileiro só se suspendem ou perdem nos casos aqui particularizados. § 1º Suspendem-se: a) por incapacidade física ou moral; b) por condenação criminal, enquanto durarem os seus efeitos”.

Apesar de uma apregoada igualdade, em seu art. 72, § 2º, a incapacidade física ou moral continuava gozando de um status constitucional com viés negativo, vez que era utilizada como critério para a suspensão de direitos básicos. O mesmo já havia sido estabelecido na Constituição de 1824 (Art. 8, inciso 1). A propósito, a tal incapacidade física ou moral, pelo teor da alínea b, era comparável a uma condenação criminal, como se uma deficiência se constituísse numa espécie de infração. A onda liberal que acabou banhando o território brasileiro estimulava limitações severas ao exercício da cidadania por aqueles que não fossem considerados aptos ao trabalho.

O individualismo liberal, pautado na livre iniciativa econômica, não cedia espaço para a inserção daqueles que não conseguiam trabalhar nos termos impostos pelo mercado. Não era uma questão puramente estética, de pessoas fora da padronização social ou estatisticamente convencionada, mas de utilidade ao processo lucrativo almejado. O Estado de Direito, por sua vez, acoplado às necessidades econômicas, estaria ideologicamente moldado segundo o valor de mercado das pessoas, e não de acordo com uma busca por direitos de cidadania iguais para todos e todas. A participação do Estado na vida das pessoas era, assim, defendida como residual. Não à toa, com 91 artigos, foi uma das constituições brasileiras mais concisas da história (BALEEIRO, 2012, p. 28).

O fato é que, tomadas especialmente por uma suposta falta de capacidade de produção mercadológica, as pessoas com deficiência, por não serem encaradas como bem nascidas, viram-se prejudicadas no texto constitucional que inaugurava a República. O critério de matiz eugênico infiltrava-se quase que desapercebidamente no ordenamento jurídico brasileiro a partir de seu diploma mais significativo. Além disso, recém-liberto do regime escravocrata, esse foi um período em que discursos de segregação se disseminavam com alguma facilidade, sobretudo pelo fato de serem impulsionados pelas ideias de autores como Francis Galton (1822-1911) e Cesare Lombroso (1835-1909).

Sob a vigência da Constituição de 1891 pode-se observar o posicionamento de um dos mais destacados juristas brasileiros. Ainda naquele período, a perspectiva de Pontes de Miranda (1924, p. 266), por exemplo, é reveladora do que estava prestes a ser agasalhado pela Constituição seguinte. O autor alagoano defendia que “a consciente hygiene da raça, o zeloso programma da comunidade geral, são medidas efficazes, que elevam o nível de todos; de modo que a seleção se faz entre melhores do que seriam todos, se não nas houvesse”. As normas constitucionais que vieram na sequência trouxeram novos problemas, mantendo-se os fundamentos discriminatórios e marcadamente preconceituosos no cenário jurídico-constitucional.

2.2 A Constituição de 1934

Na Constituição de 1934, apesar dos avanços que promoveu rumo à proteção das pessoas, sobretudo no ambiente de trabalho (art. 121), agravara-se essencialmente o trato junto às pessoas com deficiência. Em seu art. 110, mantinha-se a suspensão de direitos políticos por conta da incapacidade, mas, naquela oportunidade, deixa o legislador de se referir ao critério físico, o que poderia ser encarado como um sinal de distanciamento dos postulados eugênicos, senão vejamos: “Art 110 Suspendem-se os direitos políticos: a) por incapacidade civil absoluta; b) pela condenação criminal, enquanto durarem os seus efeitos”. Ocorre que, em seu art. 145, volta a se amparar no critério físico como condição para se acessar determinados direitos. O dispositivo estabeleceu, portanto, que a “lei regulará a apresentação pelos nubentes de prova de sanidade física e mental, tendo em atenção as condições regionais do País”, o que demonstrava, segundo Poletti (2012, p. 35), uma espécie de preocupação higiênica e étnica.

No entanto, quando nos deparamos com o título denominado de “Da Ordem Econômica e Social”, inaugurado a partir do art. 115, a pessoa com deficiência parece-nos lembrada, ainda que implicitamente, como destinatária merecedora da tutela estatal. No art. 138, alínea a, elas se podiam ver abarcadas no âmbito do termo “desvalidos”. Esse, aliás, era mais um daqueles termos genéricos que poderiam corresponder a deficiências, mas também a idosos ou a pessoas com doenças graves, entre outras circunstâncias para exclusão social por características físicas. Desse modo, o dispositivo incumbia os entes da federação, com a criação de serviços especializados e animando os serviços sociais, ao amparo de tais pessoas.

Se ainda pudessem restar dúvidas de que a situação se agravara, é justamente nessa Constituição que, de maneira única na história das constituições brasileiras, faz-se referência explícita a uma “educação eugênica”, buscando-se a sistematização de uma consciência eugênica no país: “Art. 138 Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas: [...] b) estimular a educação eugênica;”. Tal previsão nada mais era do que uma consequência clara da mentalidade de seu tempo, da disseminação de teses (ditas) científicas defendidas nos mais diversos círculos sociais do Brasil. A intenção do legislador era a de procurar evitar a reprodução entre pessoas que estivessem fora do padrão estético convencionado socialmente (ROCHA, 2014, p. 6).

2.3 A Constituição de 1937

Tendo-se por superada aquela espécie de comparação entre incapazes fisicamente e infratores, a Constituição de 1937, felizmente, acabou não repetindo a mesma defesa explícita da eugenia, tal como presente em sua antecessora. Ocorre que, uma vez mais, se observavam problemas de conteúdo essencialmente discriminatório e preconceituoso.

No capítulo da “organização nacional” estabelecia-se a competência privativa das União para “fixar as bases e determinar os quadros da educação nacional, traçando as diretrizes a que deve obedecer a formação física, intelectual e moral da infância e da juventude” (art. 15, inciso IX). Já no capítulo atinente à educação e à cultura, reforçando-se o ideal de utilidade, colocava-se como requisito indispensável para autorização ou reconhecimento da escola a previsão de “educação física” e de “trabalhos manuais” (art. 131). E mais: intencionando-se preparar as pessoas ao cumprimento dos seus deveres para com a economia e a defesa da Nação, incentivava-se o “adestramento físico” (art. 132). Essas, aliás, eram algumas das consequências da rápida transformação econômica do país. Em poucas décadas, a nação brasileira já não era mais de maioria rural, mas urbana, devido a um acelerado processo de industrialização (BONAVIDES; ANDRADE, 1988, p. 346).

Interessante perceber que, segundo Hughes (2005, p. 80-83), as pessoas com deficiência têm sido vistas juridicamente como dóceis ou adestráveis. Pautando-se em Michel Foucault, Hughes afirma que historicamente a Medicina e a Educação construíram as identidades dessas pessoas não efetivamente como cidadãs, mas controlando seus corpos e seus comportamentos para que fossem obedientes àqueles coletivamente vistos como “normais”. O adestramento físico, assim, foi parte de um sistema mais amplo de controle social para que se vissem como pessoas sem autonomia nem capacidade de decisão sobre suas próprias vidas.

A educação do Estado Novo voltava-se dedicadamente ao trabalho, à preocupação com o corpo útil, com as demandas do mercado, além do que, a “invalidez”, parcial ou permanente, não resultava, como se debateria hoje em dia, em ações afirmativas. Por outro lado, pensava-se em vantagens financeiras, tais como a aposentadoria ou a reforma (art. 156, alíneas e e f), que poderiam compensar a incapacidade para o trabalho. Pela primeira vez, surgiu uma previsão constitucional da assistência social por meio de associações de trabalhadores e sindicatos (especialmente nos arts. 57 e 61). Com as novas regras há um aumento da participação do sindicalismo na vida social nacional.

Nesse contexto, as pessoas com deficiência acabavam vistas não como força de trabalho, mas como seres sem utilidade, improdutivas, ou fardos que apareciam no cotidiano nacional, segundo se abstrai da própria normatividade, apenas como destinatárias de ajuda ou de assistência social. E não era assim por algum tipo de maldade, mas pela visão social de mundo que pautava as políticas públicas e a formação cultural do povo brasileiro naquele dado momento histórico.

Entre os anos de 1930-50, de acordo com Lorentz (2006, p. 89), houve uma busca pela homogeneização da ideia de “povo”, geralmente confundida com a de “nação”. Aqueles que não correspondessem à visão hegemônica, como as pessoas com deficiência, seriam isoladas do convívio social. Essa tese, ainda segundo a autora, pode ainda ser ressaltada pela presença, em diversos códigos civis promulgados durante a primeira metade do século XX, tanto em países americanos quanto nos europeus, da exigência da “forma humana”, do ingrediente estético, como condição para que o nascituro fosse encarado como detentor de personalidade jurídica.

2.4 A Constituição de 1946

Nessa sucessão de normas jurídicas praticamente indiferentes ao estabelecimento de mecanismos efetivos de proteção dos direitos das pessoas com deficiência, o surgimento da Constituição de 1946 – que nos seja permitida certa dose de ironia – não decepciona. Apesar de surgir imediatamente após a Segunda Grande Guerra, tendo conhecimento dos traumas provocados pela instrumentalização das teses de matiz eugênicas, ela dá continuidade à dificuldade do país em enxergar e dar guarida a grupos historicamente vulnerabilizados.

Em seu art. 129, inciso IV, por exemplo, para que portugueses pudessem ser naturalizados, uma das condições impostas era a prova da “sanidade física”. No mesmo ano, havia se estabelecido ainda a Lei Orgânica do Ensino Normal (Decreto-Lei n. 8.530 de 1946), que em seu art. 18, alínea b, previa que para a admissão ao curso de quaisquer dos ciclos de ensino normal, seriam exigidas do candidato, dentre outros requisitos, a “sanidade física e mental”. Em 1949 a Lei n. 818, em seu art. 8º, alínea VII, reforçou a exigência da “sanidade física” como condição para naturalização, exceto se o estrangeiro residisse no país há mais de um ano. Esses últimos diplomas normativos, importa-nos frisar, ainda em vigência.

Ademais, a Constituição previa que não seria apenas em caso de aposentadoria que haveria assistência social, mas a saúde também seria objeto de tutela estatal quando diante de vítimas de doenças e para quem sofresse por invalidez (art. 157, inciso VXI), desde que, é claro, essas pessoas já tivessem se mostrado úteis ao mercado, ou seja, tivessem estado na condição de trabalhador. As construções dos dispositivos manifestam o paternalismo que predominou durante décadas diante das pessoas com deficiência. As categorias jurídicas pertinentes a deficiências, apenas nos últimos dez anos, deixaram de vir sob a categoria “invalidez”, que simboliza o indivíduo como um inútil, e não apenas alguém com limitações para atividades do cotidiano.

Valendo-se dessa Constituição, o Estado brasileiro deveria realizar todos os esforços possíveis no sentido de “elevar material, física, moral e intelectualmente o homem” (BALEEIRO; LIMA SOBRINHO, 2012, p. 13). A ideia de hierarquização, de escalonamento, de superioridade por critérios físicos, sobretudo, continuava implicitamente presente na normatização constitucional e, de certa forma, explicitamente prescrita na legislação infraconstitucional. Convivia-se flagrantemente com a disseminação da perspectiva eugênica nos programas de diversas escolas do país (ROCHA, 2010). Embora o legislador constitucional não tenha previsto a questão eugênica tão explicitamente como em 1934, não seria nenhum absurdo dizermos que o ápice desse movimento sociopolítico-jurídico tenha se dado, sem alardes, justamente no período de vigência da Constituição de 1946.

2.5 A Constituição de 1967

Sua entrada em vigência se deu justamente durante o curso de um dos mais acentuados governos autoritários da história do país, o que, obviamente, não nos animou na tentativa de encontrar grandes mudanças na perspectiva eugênica até então adotada. No ano seguinte era editado, pelo então presidente, general Artur da Costa e Silva, o Ato Institucional n. 5, sustando uma série de direitos e garantias fundamentais. Como sabemos, a defesa da força física é característica típica desse tipo de regime, que não aceitaria de bom grado ideais de igualdade plena para todos.

Nesse passo, a Constituição de 1967, emendada severamente em 1969, manteve de sua antecessora, por exemplo, o critério eugênico da “sanidade física” para a naturalização de estrangeiros (art. 140, inciso II, alínea b, item 3). Manteve-se ainda a preocupação com a aposentadoria por invalidez (especialmente no art. 101, inciso I, alínea b), o que não seria de todo ruim, não fosse seu único interesse o de compensar aos que já haviam se mostrado úteis aos propósitos mercadológicos estatais.

Esse, aliás, é um período sui generis de nossa história constitucional. É, de certo modo, até compreensível que os governos militares que se revezavam no poder, mesmo no trato com as questões sociais, primassem pelo empoderamento do indivíduo perfeito, daquele com condições de combate, de servir à causa militarista, de produzir dois ingredientes considerados indispensáveis à respeitabilidade do país: segurança e crescimento econômico. Ou seja, as pessoas com deficiência, pela mentalidade então em voga, de que não poderiam oferecer nem uma coisa nem outra, seriam naturalmente relegadas à própria sorte. E, no geral, foi o que, ao longo da história constitucional republicana que nos antecede, acabou acontecendo.

É possível, portanto, no âmbito do que nos propusemos investigar, encontrar uma linha histórica comum entre as constituições brasileiras republicanas e o histórico isolamento social das pessoas com deficiência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como afirmamos no início, nossa sucinta investigação não esteve comprometida com o esgotamento do assunto, tampouco com o oferecimento de verdades ou fórmulas irrefutáveis. É sempre conveniente destacar que transitamos pelo arenoso terreno das interpretações, um ambiente passível, portanto, de significativas variações a depender das perspectivas adotadas. Também não nos interessou, importa-nos frisar, apontar responsáveis ou culpados pela adoção dos postulados eugênicos em nossa legislação. A produção dos legisladores constituintes é fruto da mentalidade com a qual eles dialogam no período em que vivem. Portanto, não são fruto do mero acaso ou de uma vontade isolada.

A construção histórica dos direitos das pessoas com deficiência no Brasil é um processo que, para ser bem conhecido e compreendido, precisa passar por múltiplas perspectivas sociais e jurídicas. Escavando as reminiscências de nosso país, apesar de constatarmos que o governo se contrapôs ao regime nazista na Segunda Grande Guerra, havia interessantes convergências na tentativa de implementação de determinadas políticas públicas. Como vimos, parte considerável dos postulados eugênicos defendidos com furor por Adolf Hitler chegaram, depois de adaptados a nossa realidade, a ecoar com algum entusiasmo em terrae brasilis.

O fato é que, no início, quando não era a completa indiferença o que prevalecia, não se produziam mais do que normas de controle ou de certa compensação para as pessoas com deficiência que já haviam sido úteis aos interesses estatais. Isso mudou paulatinamente para políticas de integração, mas não propriamente com participação social. Tais pessoas eram cidadãos e cidadãs sem direitos plenamente reconhecidos e, portanto, conviviam com uma espécie de aparente cidadania. Embora reconhecidos jurídico-constitucionalmente, ainda hoje esbarram em dificuldades de acesso à educação formal e ao mercado de trabalho.

Pessoas com deficiências, sejam físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais, enfrentam até hoje as consequências de um histórico processo constitucional de discriminação e de preconceito, que praticamente as invisibilizou diante dos mecanismos estatais de acesso pleno a direitos e garantias fundamentais, que eram disponibilizados sem pudor aos bem nascidos. É disso, portanto, que nos propusemos a discorrer, uma vez que, ao menos no ambiente jurídico-acadêmico, a produção a respeito é ainda muito tímida. É como se a defesa da eugenia, por conta dos nomes proeminentes que a envolveu, fosse uma daquelas feridas destinadas à cura sem que delas precisássemos nos ocupar.

REFERÊNCIAS

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BALEEIRO, Aliomar; LIMA SOBRINHO, Barbosa. Constituições brasileiras – Vol. V – 1946. 3. ed. Brasília: Senado Federal, 2012.

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ROCHA, Simone. Educação eugênica na constituição brasileira de 1934. Revista ANPED SUL, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, out. 2014.

 

Recebido em: 24.07.2017

Aceito em: 10.11.2018

 

1 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Casa Civil – subchefia para Assuntos Jurídicos. Constituições. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ principal.htm>. Acesso em: 20 jul. 2017.

2 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Defici-ência. Disponível em: <http://www.un.org/esa/socdev/enable/documents/tccconvs.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2017. Para uma análise detalhada da Convenção, é possível estudar seus artigos por uma edição comentada, disponível em edição eletrônica: <http://www.inclusive.org.br/?p=12209>. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Defici-ência. Disponível em: <http://www.un.org/esa/socdev/enable/documents/tccconvs.pdf>. Acesso em: 20 jul. 2017. Para uma análise detalhada da Convenção, é possível estudar seus artigos por uma edição comentada, disponível em edição eletrônica: <http://www.inclusive.org.br/?p=12209>.



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ISSN: 2178-2466