A ADOÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES POR CASAIS DO MESMO SEXO NO BRASIL: PERSPECTIVAS JURÍDICAS E PSICOLÓGICAS
THE ADOPTION OF CHILDREN AND ADOLESCENTS BY SAME-SEX COUPLES IN BRAZIL: JURIDICAL AND PSYCHOLOGICAL PERSPECTIVES
Miucha Lins CabralI
Ana Luísa Celino CoutinhoII
I Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB, João Pessoa, PB, Brasil. E-mail: miuchalins@yahoo.com.br
II Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB, João Pessoa, PB, Brasil. (Doutora em Direito). E-mail: aluisacc@gmail.com
Sumário: Considerações iniciais. 1 O instituto da adoção. 1.1 O que é adoção? 1.2 O percurso jurídico da adoção no Brasil. 1.3 Alguns aspectos psicológicos da adoção no Brasil. 1.3.1 Os adotados. 1.3.2 Os adotantes. 2 A trajetória da adoção por casais do mesmo sexo no Brasil. 2.1 Considerações sobre a sexualidade. 2.2 Aspectos jurídicos da adoção por casais do mesmo sexo no Brasil. 2.2.1 O princípio da dignidade da pessoa humana. 2.2.2 O princípio da igualdade e o respeito à diferença. 2.2.3 O princípio do melhor interesse da criança. 2.3 Aspectos psicológicos da adoção por casais do mesmo sexo no Brasil. Considerações finais. Referências.
Resumo: Este artigo tem o objetivo de refletir sobre a adoção por casais do mesmo sexo no Brasil sob as perspectivas jurídicas e psicológicas. Através das concepções desses lugares do saber, busca-se promover um diálogo interdisciplinar, enriquecendo a discussão sobre a temática. Para tanto, utiliza-se o método dedutivo de abordagem e o método histórico de procedimento. No que se refere às técnicas de pesquisa, fez-se uso da pesquisa bibliográfica e documental. Conclui-se que a orientação sexual dos adotantes não interfere na qualidade do vínculo parental nem no desenvolvimento do adotado e que negar esse tipo de adoção, baseando-se apenas na orientação sexual dos adotantes, é um desrespeito explícito aos princípios da igualdade, dignidade humana e melhor interesse da criança.
Palavras-chave: Adoção. Crianças e adolescentes. Casais do mesmo sexo. Perspectivas jurídicas e psicológicas.
Abstract: This article aims to reflect on the adoption of same-sex couples in Brazil under the juridical and psychological perspectives. Through the conceptions of these places of knowledge, it’s sought to promote an interdisciplinary dialogue, enriching the discussion on the theme. For that, the deductive method of approach and the historical procedure method are used. With regard to research techniques, bibliographical and documentary research was used. It’s concluded that the sexual orientation of the adopters doesn’t interfere in the quality of the parental bond nor in the development of the adopted one and that to deny this type of adoption based solely on the sexual orientation of the adopters is an explicit disrespect to the principles of equality, human dignity and best interest of the child.
Keywords: Adoption. Children and adolescents. Same-sex couples. Juridical and psychological perspectives.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A adoção é um tema complexo que tem sido abordado, de forma recorrente, na mídia brasileira nos últimos anos, o que tem propiciado uma maior visibilidade ao instituto, além da sensibilização da sociedade e dos legisladores brasileiros para a temática devido ao conteúdo afetivo que enseja e à sua relevância social.
Existem, atualmente, diversos projetos de lei que versam sobre a matéria tramitando no Congresso Nacional1. Toda essa atenção dispensada à adoção tem contribuído para uma maior discussão sobre a temática e acarretado algumas mudanças jurídicas, sendo a mais recente a aprovação da Lei nº 13.509, de 22 de novembro de 2017.
Além desse texto legal, a adoção encontra previsão na Constituição Federal de 1988 (CF/1988), na Lei nº 8.069/1990, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na Lei nº 12.010/2009, Lei Nacional de Adoção, e no Código Civil de 2002, possibilitando a filiação civil entre pessoas que não são ligadas por laços consanguíneos, através do reconhecimento jurídico da relação parental, sem reservas ou distinções em relação à filiação biológica.
Trata-se de um instituto muito antigo, presente em quase todas as culturas, que foi sofrendo alterações em sua significação de acordo com o tempo e a sociedade. Hodiernamente, a adoção pode ser vista como um instituto multifacetado por envolver diversas questões sociais, históricas, religiosas, políticas, jurídicas e psicológicas.
A adoção por casais do mesmo sexo, por sua vez, além de envolver tais questões, é considerada um tema bastante polêmico devido, principalmente, aos preconceitos e à resistência da sociedade em relação às uniões de pessoas do mesmo sexo e à possibilidade de esses casais adotarem uma criança ou adolescente e propiciarem um ambiente adequado ao desenvolvimento biopsicossocial saudável destes. Tais concepções denotam o caráter heteronormativo2 e excludente da sociedade brasileira em relação às sexualidades divergentes3.
Esses preconceitos encontram-se atrelados às crenças sociais no ideal de família pautado na heterossexualidade e monogamia com fins de procriação, incutidas no imaginário social no decurso do tempo, em meio à dinamicidade das transformações sociais, e ao lugar marginalizado atribuído historicamente aos homossexuais como uma forma de controle, ajustamento social e poder, consoante defendido por Foucault (2005).
Não obstante as lutas das minorias sexuais por visibilidade, igualdade e respeito à pluralidade ao longo das últimas décadas tenha alcançado conquistas importantes no Brasil, como o reconhecimento da união estável por casais do mesmo sexo pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em maio de 2011, que trouxe a possibilidade de adoção conjunta de crianças e adolescentes por esses casais, tais avanços dividem opiniões e condutas. De um lado, têm-se setores sociais que demonstram uma aceitação maior da diversidade sexual. De outro, encontram-se grupos mais conservadores e tradicionais que apresentam maior resistência aos avanços dos direitos dos homossexuais, valendo-se, por vezes, do uso da violência contra essas minorias.
Cabe observar que, malgrado existam diversos projetos de lei4 sobre a adoção em tramitação, os legisladores brasileiros não têm dado a atenção devida à adoção por casais do mesmo sexo, deixando uma lacuna que tem sido preenchida pelo Poder Judiciário através da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Em vista disso, o presente trabalho tem o objetivo de refletir sobre a trajetória da adoção de crianças e adolescentes por casais do mesmo sexo no Brasil, com ênfase nos aspectos jurídicos e psicológicos. Para se alcançar o objetivo pretendido, propõe-se o seguinte problema: Como tem ocorrido a adoção de crianças e adolescentes por casais do mesmo sexo no Brasil sob as perspectivas jurídicas e psicológicas?
Tem-se como hipótese inicial a concepção de que a adoção de crianças e adolescentes por casais do mesmo sexo no Brasil depende de critérios discricionários dos Juízos das Varas da Infância e da Juventude, dos pareceres de psicólogos e demais profissionais que auxiliam os juízes nessas Varas e da jurisprudência do STF e do STJ devido à falta de legislação específica que verse sobre a matéria, o que tem acarretado insegurança a esses casais.
Diante dessa omissão do Poder Legislativo e da realidade social vigente, este trabalho se justifica pela necessidade de compreender como o Poder Judiciário tem-se posicionado diante da polêmica questão da adoção por casais do mesmo sexo, frente a um contexto de transformação cultural e legislativa ocorrida ao longo das últimas décadas em nosso país.
Somado a isso, tem-se o fato de que uma das autoras também é psicóloga do Tribunal de Justiça da Paraíba, com atuação no Setor de Adoção da 1ª Vara da Infância e Juventude da Comarca de João Pessoa, e que sua práxis despertou o interesse de realizar um diálogo entre a Psicologia e o Direito através de uma investigação que considere os direitos fundamentais e a subjetividade humana em relação à adoção por casais do mesmo sexo no Brasil.
No que se refere à metodologia empregada, optou-se por um estudo descritivo, a partir de uma pesquisa bibliográfica e documental, com método de procedimento histórico e de abordagem dedutivo, partindo das perspectivas teóricas sobre a adoção, da legislação brasileira, da jurisprudência do STF e do STJ, até chegar às decisões de tribunais inferiores para compreender como tem ocorrido esse tipo de adoção em nosso país.
Com vistas a dar conta do objeto proposto, o trabalho em questão aborda, inicialmente, alguns conceitos da adoção e retrata os aspectos jurídicos e psicológicos do referido instituto no Brasil, a fim de abarcar o seu caráter multifacetado e promover um diálogo interdisciplinar, enriquecendo a discussão e a análise sobre a temática.
Em seguida, relata a trajetória da adoção por pares do mesmo sexo no Brasil, fazendo uma breve incursão nas questões da sexualidade e levantando os aspectos jurídicos e psicológicos da adoção por esses casais na sociedade brasileira, com ênfase maior nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade e do melhor interesse da criança. Por fim, apontam-se algumas ponderações sobre o que foi abordado.
Tendo em vista a complexidade do tema em questão, este trabalho não tem a pretensão de abarcar todas as discussões relacionadas à adoção nem de obter respostas definitivas sobre o problema proposto, mas de promover uma reflexão sobre a adoção de crianças e adolescentes por casais do mesmo sexo no Brasil, buscando contribuir para o debate sobre esse tema polêmico e para o conhecimento científico nessa área.
1 O INSTITUTO DA ADOÇÃO
A adoção é um tema complexo que envolve desejos, sonhos e necessidades. Remete, mormente, ao desejo daqueles que não podem gerar filhos pela via biológica; às crianças e adolescentes que aguardam ansiosos pela possibilidade de crescerem em um lar amoroso; e à necessidade de solucionar o problema social grave das crianças e adolescentes desamparados e da marginalidade a eles associada diante da falta de perspectiva de futuro e de cuidados.
Para realizar uma discussão que envolva essas dimensões da adoção, serão abordados nesta seção algumas conceituações e significados do referido instituto, o seu percurso jurídico no Brasil e alguns aspectos psicológicos que envolvem a temática a fim de que possamos depreender algumas nuances que permeiam e subjazem a adoção.
1.1 O que é adoção?
Hodiernamente, a adoção pode ser vista como: “[...] vínculo legal que cria, à semelhança de filiação consanguínea, um parentesco, pelo valor do afeto (SILVA JÚNIOR, 2011, p. 110). Na perspectiva de Gonçalves: “Adoção é o ato jurídico solene pelo qual alguém recebe em sua família, na qualidade de filho, pessoa a ela estranha. Malgrado a diversidade de conceitos do aludido instituto, todos os autores lhe reconhecem o caráter de uma fictio iuris.” (2012, p. 329).
Para Moschetta, a adoção é uma das formas de realizar o projeto de parentalidade, configurando-se, sobretudo, como uma “[...] demonstração de afeto que, mesmo com a desbiologização da filiação, estabelece vínculos afetivos paterno-filiais entre os envolvidos.” (2011, p. 149-150). Nessa mesma acepção, Levinzon (2006, p. 25) assevera:
A adoção pode ser definida como o estabelecimento de relações parentais entre pessoas que não estão ligadas por vínculos biológicos diretos. É uma forma de proporcionar uma família às crianças que não puderam ser criadas pelos pais que a geraram. Constitui-se também na possibilidade de ter e criar filhos para pais que não puderam tê-los biologicamente, ou que optaram por cuidar de uma criança com quem não possuíam ligação genética. Deste modo, as relações parentais que se formam na família adotiva baseiam-se mais especificamente nas intersecções afetivas que caracterizam os seus membros do que na continuidade biológica, que não existe nestes casos.
De acordo com Farias e Rosenvald, a adoção encontra-se alicerçada, contemporaneamente, na ideia de proporcionar a uma pessoa humana a sua inserção plena e efetiva em uma família, de forma que sejam garantidas a sua dignidade e as suas necessidades de desenvolvimento da personalidade, que incluem os aspectos afetivo, educacional e psíquico (2015, p. 908). Nesse mesmo sentido, Pereira (2015, p. 375) afirma:
A adoção é um ato de amor e cuidado, que consagra a garantia da convivência familiar a crianças e adolescentes, possibilitando o seu desenvolvimento pleno e sadio, e a concretização da dignidade humana e do cuidado como valores-base do ordenamento no que se refere ao direito à família.
Granato chama a atenção para o fato de que a adoção não consiste em caridade, resolução de situações que envolvem conflitos entre casais, nem remédio para esterilidade ou solidão. Para a autora: “O que se pretende com a adoção é atender às reais necessidades da criança, dando-lhe uma família, onde ela se sinta acolhida, protegida segura e amada” (GRANATO, 2014, p. 29-30).
Dessa forma, a adoção pode ser concebida como um instituto que ultrapassa os limites do biológico, perpassa o jurídico e chega ao nível do simbólico, com reconhecimento e repercussão social. Parte de uma vontade manifesta do sujeito, por meio de uma relação afetiva que é construída entre adotantes e adotados.
1.2 O percurso jurídico da adoção no Brasil
A adoção começou a ser regulamentada no sistema jurídico brasileiro com o advento do Código Civil de 1916 (Lei nº 3.071/16). Nele, a adoção era permitida aos maiores de 50 anos que não tivessem filhos biológicos, exigindo-se uma diferença etária de 18 anos entre adotantes e adotandos, tendo em vista que era concebida “[...] como instituição destinada a proporcionar a continuidade da família, dando aos casais estéreis os filhos que a natureza lhes negara” (GONÇALVES, 2012, p. 141).
A adoção ocorria através de escritura pública e o parentesco era restrito aos adotantes e adotados, salvo impedimentos matrimonias (art. 376). O poder familiar do genitor do adotando era extinto com a adoção, sendo transferido para o pai adotante, embora os direitos e deveres oriundos do parentesco natural não se extinguissem com a adoção (art. 378).
A Lei nº 3.133/57 promoveu alterações no Código Civil de 1916 quanto ao referido instituto, dentre elas: a redução da idade para adotar (30 anos); o mínimo de 5 anos de casamento para adoção conjunta; e a redução da diferença etária entre adotandos e adotantes, que passou a ser de 16 anos.
A Lei nº 4.655/65 inseriu a chamada Legitimação Adotiva no Brasil sem, no entanto, extinguir a adoção do Código Civil de 1916, conhecida como adoção simples. Naquela, houve uma ampliação da proteção da criança ao estabelecer o vínculo de parentesco em primeiro grau entre adotantes e adotados, através de sentença concessiva da legitimação, desligando os vínculos que ligavam o adotante à sua família biológica (GONÇALVES, 2012, p. 141).
Em outubro de 1979, a Lei nº 6.697 – Código de Menores – revogou a Lei nº 4.655/65, instituindo dois tipos de adoção: a adoção plena, fundamentada na Legitimação Adotiva; e a adoção simples, regida pelo Código Civil de 1916 e pelos arts. 27 e 28 do Código de Menores. Dentre as diferenças entre esses tipos de adoção, destaca-se o fato de que a adoção plena extinguia todos os vínculos do adotado com a família biológica, ao passo que a adoção simples não promovia essa desvinculação. Além disso, adoção plena passou a equiparar os filhos adotivos aos biológicos quanto aos direitos e deveres, inclusive os sucessórios (art. 37).
Com a Lei nº 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente, os princípios do Código Civil de 1916 foram revogados para os menores de 18 anos, passando todas as crianças e adolescentes a serem regidos pelo novo Estatuto, mantendo-se os preceitos do referido Código apenas para os maiores de 18 anos (PEREIRA, 2015, p. 374).
A Constituição Federal de 1988 é considerada um marco significativo para adoção por trazer em seu art. 227, caput, o princípio da proteção integral da criança e por anunciar direitos e deveres iguais aos filhos adotivos e naturais, pautando-se pelo princípio da igualdade jurídica entre os filhos (art. 227, § 6º).
O Estatuto da Criança e do Adolescente, inspirado no art. 227 da Carta Magna, assegura que toda criança e adolescente tem direito à convivência familiar e comunitária, seja em sua família biológica ou em substituta, e institui o caráter pleno, excepcional e irrevogável da adoção. Outro aspecto fundamental é abordado em seu art. 43, ao ressaltar que a adoção só deverá ser deferida se apresentar reais vantagens para o adotando e basear-se em motivos legítimos.
Os artigos 42, § 1º, 2º e 3º e 45, § 2º, do ECA apontam alguns requisitos para se adotar no Brasil, dentre eles: idade mínima de 18 anos para os adotantes, independentemente de estado civil, com a diferença etária entre estes e o adotando de 16 anos; para adoção conjunta, é imprescindível que os adotantes sejam casados civilmente ou tenham união estável; o adotando, para se beneficiar do instituto da adoção, deve ter até 18 anos, salvo se já estiver sob a guarda ou tutela dos adotantes; em se tratando de maior de 12 anos, é necessário o seu consentimento. Ressalta-se que não podem adotar os irmãos e ascendentes do adotando.
O Código Civil de 2002 traz, em seu art. 1.618, que a adoção de crianças e adolescentes deve ser deferida na forma prevista pelo ECA; ao passo que o seu art. 1.619 ressalta que a adoção de maiores de 18 anos é uma medida que depende de assistência do poder público e de sentença constitutiva, devendo as regras gerais do ECA serem aplicadas no que couber.
A Lei nº 12.010/09 (Lei Nacional de Adoção) promoveu algumas alterações no ECA, dentre elas, a inserção de prazos com vistas a dar mais celeridade aos processos de adoção. Vejamos: reavaliação periódica de crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional ou familiar no prazo de seis meses mediante relatório elaborado por equipe interprofissional, devendo a autoridade judiciária decidir sobre a possibilidade de reintegração familiar ou colocação em família substituta (art. 19, § 19, ECA); determinação do período máximo de dois anos para a permanência de crianças e adolescentes em programas de acolhimento institucional, salvo necessidade que atenda ao melhor interesse destes mediante decisão fundamentada da autoridade judiciária competente (art. 19, § 2º, ECA).
A aludida lei também instituiu a criação de cadastro de adotantes e adotandos para facilitar o encontro entre essas partes, e trouxe, em sua seção sobre a habilitação dos pretendentes à adoção, condições a serem aferidas por equipe interprofissional a serviço da Justiça da Infância e Juventude, tal como a capacidade para o exercício da paternidade/maternidade responsável, além da necessidade de participação dos postulantes em programa oferecido pela Justiça que vise a preparação destes para a adoção.
É válido ressaltar que a aprovação da Lei Nacional da Adoção pelo Poder Legislativo ficou condicionada à retirada do texto legal da previsão explícita da adoção por casais do mesmo sexo (LIMA, 2014, p. 76), o que denota o caráter sexista e homofóbico dos parlamentares, colocando o Brasil numa posição equivalente a dos países fundamentalistas no que concerne à garantia de direitos familiares para homossexuais e transgêneros (UZIEL; MELLO; GROSSI, 2006, p. 482).
Em relação às recentes alterações do ECA, decorrentes da aprovação da Lei nº 13.509, em 22 de novembro de 2017, destacam-se as determinações de prazos processuais com o intuito de dar mais celeridade à adoção, sendo, atualmente, o prazo máximo para a conclusão das ações de adoção, habilitação para adoção e destituição do poder familiar de 120 dias, podendo as duas primeiras serem prorrogadas uma única vez pelo mesmo período mediante decisão fundamentada da autoridade judiciária (arts. 47, § 10, art. 197-F e art. 163, ECA). Além disso, houve a redução do prazo de reavaliação das crianças e adolescentes, que passou de seis para três meses (art. 19, § 1º, ECA), e da permanência nos programas de acolhimento familiar ou institucional, que passou de dois anos para dezoito meses (art. 19, § 2º, ECA).
Ressalta-se, ainda, que se encontra em tramitação no Senado Federal o denominado “Estatuto da Adoção” (PLS nº 394/2017), que apresenta em sua justificação a finalidade de eliminar entraves burocráticos, promover a celeridade dos processos de destituição do poder familiar e reformular a ótica de todo o sistema.
Diante do que foi abordado nesta seção, pode-se depreender que houve uma mudança significativa no objetivo da adoção no transcorrer do tempo, que passou da busca de uma criança para uma família (foco nos interesses dos adotantes) para a procura de uma família para uma criança, embora se tenha muito ainda por fazer para que o melhor interesse da criança e do adolescente seja assegurado.
1.3 Alguns aspectos psicológicos da adoção no Brasil
Adentrar no tema das relações parentais e, mais especificamente, da construção destas, tanto as de natureza biológica quanto adotiva, remete-nos à necessidade de explicitar que filhos não precisam nem devem ser enquadrados em uma ou outra categoria, biológicos ou adotivos, todos são filhos. Faremos essa distinção apenas por uma questão didática.
Essa observação faz-se relevante porque, de uma forma geral, as famílias estão atreladas à “biologia da procriação”, a ideia de que gerar filhos é natural e necessário para deixar a marca genética da sua passagem histórica pelo mundo, perpetuando-se através dos seus descendentes, como fizeram os seus ancestrais (SCHETTINI FILHO, 2017, p. 66).
Em vista disso, a impossibilidade de gerar filhos pela via biológica acaba sendo vista, por muitas pessoas, como uma irregularidade da natureza, o que tende a gerar um sentimento de inadequação, incapacidade e inferioridade naquelas que se veem numa condição de impotência frente às demais.
É preciso atentar-se, contudo, ao fato de que o vínculo afetivo que se constrói através da convivência na adoção e que é constitutivo da biografia pessoal, sobrepõe-se ao genético, conforme evidenciado por Schettini Filho (2006, p. 99-100): “O filho não resulta exclusivamente de um contexto biológico. Mais que isso, ele é uma consequência ética, porque a filiação não se esgota na geração biológica, mas se completa na aceitação afetiva, o que configura a adoção”.
Nesse sentido, Laia (2008, p. 31), partindo de uma leitura psicanalítica, afirma que todos nós somos adotados, tendo em vista que é a partir de um processo de adoção simbólica que os seres humanos se reconhecerem e se tornam efetivamente pai, mãe e filhos.
Como a adoção é considerada uma “via de mão dupla”, necessitando da disponibilidade afetiva e do desejo dos envolvidos para que seja exitosa, passaremos a abordar as perspectivas de alguns atores desse processo (adotados e adotantes).
1.3.1 Os adotados
Deve-se levar em consideração, ao se pensar na criança adotada, a dinâmica psicológica que a subjaz e as experiências de vida que carrega consigo, especialmente, quanto às relações parentais. Os rompimentos afetivos vivenciados em relação à família de origem, principalmente os dos pais biológicos, tendem a deixar marcas históricas e psicológicas próprias. Quanto a isso, Schettini Filho ressalta: “Não temos que entender tais marcas como patologias ou deformações. São experiências como tantas outras que identificamos nas crianças que não têm uma história pessoal de adoção” (2006, p. 104).
De acordo com Levinzon, os efeitos da separação entre a mãe e a criança são sentidos por esta de acordo com o momento, as circunstâncias e as suas próprias características. Dessa forma, essa situação pode ser experienciada como uma branda cicatriz ou como uma ferida aberta, constando, de uma ou de outra forma, no psiquismo da criança. Vejamos:
Se a descontinuidade do contato com a mãe biológica ocorreu logo no início da vida do filho, quando bebê, ele não terá lembrança consciente dela ou do que ocorreu. Por outro lado, a experiência clínica nos mostra que nestes casos há algum tipo de registro afetivo do que é vivido, sem palavras, e que corresponde ao que a psicanalista Melanie Klein (1957/1991) denominou de “lembranças em sentimentos”. Por meio de testes psicológicos projetivos ou pela transferência na situação analítica, surpreendemo-nos com a presença dessas memórias inconscientes (LEVINZON, 2015, p. 10).
O processo de transposição do primeiro objeto de afeto vivenciado pela criança (mãe biológica) para a mãe adotiva (que não fez parte do processo biopsicológico de formação e nascimento da criança) deixa um vazio a ser preenchido. Vazio esse que pode trazer consequências lascivas à personalidade da criança se não for devidamente provido (SCHETTINI FILHO, 2006, p. 104). Dessa forma, o afeto dispensado ao filho adotivo pelos adotantes é fundamental para preencher o vazio e curar as “feridas” deixadas pelas vivências de separação e abandono.
Cabe observar a importância de o filho adotivo conhecer a sua história de vida, tendo em vista que é um fator constitutivo da identidade do sujeito e que contribui para construção dos vínculos parentais. Esses devem fundar-se na verdade e no respeito à história pessoal da criança. Dessa forma, negar ou silenciar essa história pode ser, em determinados momentos, ações destruidoras e perversas, visto que podem diminuir as possibilidades da criança de se organizar frente às mudanças existenciais que lhes foram impostas pela vida, deixando-a sem sustentação psicológica (SCHETTINI FILHO, 2006, p. 109).
Para Levinzon, explorar o universo da sua origem leva a criança, por vezes, a situações de dor, mágoa e de lacunas que não lhes são compreensíveis, ao mesmo tempo em que possibilita ao adotando a construção de um sentimento de identidade sólido, baseado na realidade. Com isso, ressalta: “De modo geral, quando tudo corre bem, a dor é contrabalançada pela estabilidade e harmonia do lar adotivo. Ao explorar sua história e seus sentimentos, a criança fica livre para explorar o mundo” (LEVINZON, 2015, p. 12).
1.3.2 Os adotantes
O acolhimento da criança ou adolescente pelos adotantes é uma condição essencial para se estabelecer a relação paterno/materno-filial, posto que faz com que as dores provenientes da transição das figuras de apego se processem e diluam (SCHETTINI FILHO, 2006, p. 112). Para que se possa estabelecer uma relação real com o filho adotado, os pais adotivos que não podem gerar filhos biológicos precisam primeiro aceitar a infertilidade sem vislumbrá-la como uma deficiência. Essa aceitação perpassa a vivência do luto da infertilidade e possibilita a construção da relação afetiva com a criança sem culpas ou sentimentos de inferioridade.
Sobre a questão da infertilidade, Souza (2006, p. 71) ressalta: “Estes casais sabem que possuem a infertilidade biológica e esquecem que são férteis emocional e afetivamente. A preparação é importante para entenderem esta possibilidade bem como para trabalharem a decisão de terem um filho por um novo caminho”.
Quanto à preparação para o exercício da parentalidade, Weber (2014, p. 33) aponta:
Uma preparação para ter um filho, seja ele biológico ou adotivo, refere-se a uma reflexão sobre as próprias motivações, riscos, expectativas, desejos, medos, entre outros. Preparar-se para ter um filho significa, de maneira muito resumida, tomar consciência dos limites e possibilidades de si mesmo, dos outros e do mundo. Preparar-se não quer dizer somente o momento que antecede o “ter um filho”; é a consciência de que esta preparação deve ser contínua, que as coisas e as pessoas estão interagindo dinamicamente e, portanto, sempre estão sujeitas a mudanças; é a compreensão de que todos nós estamos sempre em um processo dinâmico de construção e reconstrução, desde os sentimentos e desejos até os códigos sociais de ética e de moral.
Cabe ressaltar que as pessoas não buscam a adoção apenas pela impossibilidade de gerar filhos biológicos, embora essa seja preponderante, existem outras razões, tais como: o parentesco com os pais biológicos que não dispõem de condições de cuidar da criança (adoção em família); o desejo de regularizar a paternidade/maternidade assumida em relação ao filho do cônjuge ou companheiro (adoção unilateral); homens e mulheres que desejam ter filhos, mas não possuem um parceiro; por razões filantrópicas; pelo medo da velhice; por razões estéticas; dentre outras.
No entanto, algumas dessas motivações podem, inicialmente, dificultar o estabelecimento das relações parentais ao colocar a criança ou adolescente num lugar diverso do qual deveria ocupar: o de filho. Verifica-se, diante disso, a necessidade de se trabalhar algumas dessas motivações com o intuito de favorecer a construção das relações de filiação nos processos adotivos. Sobre isso, Ladvocat (2018, p. 101) ressalta:
O trabalho preventivo sobre as motivações para a adoção é extremamente válido para tratar das razões manifestas, que podem ser equivocamente humanitárias, na busca de uma criança para que ela não sofra as consequências do abandono. E, principalmente, sobre as razões latentes, inconscientes e patológicas avaliadas na subjetividade do casal.
De uma forma geral, pode-se dizer que a motivação para adoção deve estar atrelada ao desejo, à vontade de exercer a parentalidade responsável pela via adotiva, devendo ser essa uma decisão refletida e amadurecida pelos adotantes. Nesse sentido, Ladvocat (2018, p. 103) acrescenta: “A motivação valorizada e legítima para a parentalidade adotiva refere-se, principalmente, à capacidade e flexibilidade da função parental no desejo genuíno de ser pai ou ser mãe”.
Com isso, considera-se que a construção de uma nova parentalidade é possível e está intimamente ligada ao desejo de ter filhos dos pais. Independentemente da forma como chegam ao seio familiar, se biológicos ou adotivos, os filhos acolhidos pelo desejo dos pais são introduzidos na família pela função simbólica. Para tanto, faz-se necessário que os pais possuam disponibilidade interior para a filiação, que haja em seu funcionamento intrapsíquico um espaço para o desenvolvimento dessa relação. Salienta-se, contudo, que essas manifestações não ocorrem de forma consciente, mas sob a perspectiva do desejo (SCHETTINI FILHO, 2006, p. 118).
Para Souza, a família que adota precisa se adequar à criança ou ao adolescente, já que o adotando pode testar o amor dos pais adotivos através de comportamentos agressivos, regressivos e de enfrentamento para ter a certeza de que não será abandonado novamente (2006, p. 13). Cabe aos adultos se prepararem para a chegada do novo membro, tendo paciência para educar e respeitar o tempo do adotando, disponibilizando o afeto que ele precisa para se sentir seguro, acolhido e amado.
A prática com a adoção nos leva a afirmar que os vínculos da parentalidade se alicerçam na convivência e na afetividade, embora os laços biológicos não devam ser desconsiderados. Dessa forma, pode-se dizer que a construção da relação filial na adoção depende mais da qualidade dos vínculos construídos, da preparação psicológica dos envolvidos (adotantes e adotandos), da disponibilidade afetiva e da forma como os adotantes enxergam a adoção, devendo, pois, despir-se de preconceitos, trabalhando os seus medos, angústias, fantasias e ansiedades em relação ao processo adotivo.
2 A TRAJETÓRIA DA ADOÇÃO POR CASAIS DO MESMO SEXO NO BRASIL
As mudanças ocorridas na nossa sociedade ao longo do tempo têm trazido à tona novas configurações familiares. Com a CF/1988, houve a ampliação da concepção de família, que passou a englobar novos arranjos e formas de se relacionar ao reconhecer a união estável entre homem e mulher e a família monoparental, o que representa as transformações que são geradas nas relações humanas, produzindo novas formas de conjugalidade (ARAÚJO et al., 2007, p. 95).
A despeito dessas novas configurações, tem-se a família formada pela união de pessoas do mesmo sexo biológico, através de uma comunhão de afeto e do desejo de constituição de uma vida comum. Essa forma de se relacionar se contrapõe à visão clássica e heteronormativa de família, na qual a sexualidade é posta como um paradigma de aceitação ou exclusão social, conforme veremos a seguir.
2.1 Considerações sobre a sexualidade
A sexualidade tem assumido papéis diferentes na história da humanidade. Em vista disso, as explicações ocidentais sobre a homossexualidade foram-se modificando através dos séculos, passando da aceitação à estigmatização e marginalização. Na cultura greco-romana, a homossexualidade era aceita socialmente e vista como padrão de erotismo, desde que respeitasse a hierarquia social. Na cultura cristã, em contrapartida, houve o controle da sexualidade através de preceitos e dogmas cristãos que passaram a considerar a prática sexual entre pares do mesmo sexo como sodomia5 (LIMA, 2014, p. 30-34).
No que concerne à perspectiva da sexualidade como parâmetro para distinguir entre as pessoas ou relações aceitas ou marginalizadas na nossa sociedade, Foucault (2005, p. 100) apresenta a sexualidade como um dispositivo histórico, em oposição à concepção natural, pulsional, em constante repressão pela sociedade moderna. Com isso, levanta um questionamento sobre a repressão como elemento central da discussão social sobre a história moderna da sexualidade.
Essa compreensão da sexualidade, retratada pelo aludido autor, coaduna-se à sua visão de sujeito e à crítica que direciona à concepção de sujeito constituinte, livre, conduzido por uma subjetividade a-histórica e posto como a fonte de todo conhecimento, da política e da ação moral. Foucault, com base na crítica da filosofia liberal de Nietzsche, descreve o sujeito sob a perspectiva da sua complexidade histórica e cultural. Um sujeito “descentrado”6, construído discursivamente a partir de um sistema linguístico, finito e situado na intersecção das práticas culturais e forças libidinais (NIETZSCHE, 2000, p. 430-439).
Quanto à busca por uma origem ou essência primeira do sujeito e das coisas dispostas no mundo, em sua obra “Microfísica do Poder” (mais especificamente no texto “Nietzsche, a Genealogia e a História”), Foucault, ao analisar a obra nietzschiana “Genealogia da Moral”, questiona-se sobre o porquê do Nietzsche genealogista se recusar, em algumas ocasiões, à pesquisa da origem, que denomina, no caso específico, de Ursprung. Ao que responde:
Porque, primeiramente, a pesquisa, nesse sentido se esforça para recolher nela a essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo. Procurar uma tal origem é tentar reencontrar “o que era imediatamente”, o “aquilo mesmo” de uma imagem exatamente adequada a si; é tomar por acidental todas as peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces; é querer tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira (FOUCAULT, 1999, p. 17).
Com isso, assevera que não existe uma essência originária a ser desvelada, mas que a essência das coisas pressupõe uma construção. Quanto à liberdade (que ligaria o homem ao ser e à verdade), afirma: “De fato, ela é apenas uma ‘invenção das classes dominantes’. O que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate” (FOUCAULT, 1999, p. 17).
Partindo da concepção de Nietzsche (1998, p. 109) sobre a origem e da contraposição ao que o mesmo denomina de “farsas conceituais”, tais como “puro sujeito do conhecimento, isento de vontade, alheio à dor e ao tempo”, “razão pura”, “espiritualidade absoluta” e “conhecimento em si”, Foucault rejeita o ideal de um homem transcendental e universal, posto como elemento fundador da história pela filosofia do sujeito, e volta-se à concepção de sujeito forjado pelo seu tempo histórico, situado e dependente.
Dessa forma, posiciona-se contra uma história positivista e linear, concebendo a história com base em suas descontinuidades e rupturas, rechaçando a crença de uma origem inegável e de um final anunciado, conforme a visão teleológica. O que o autor aponta são as sucessões e dispersões desordenadas de sujeitos concretos em disputas contínuas, independentes de sua origem primitiva e impelidos a se constituírem segundo profusões de saber e poder vigentes em seu tempo histórico. Vejamos a reflexão de Foucault (1999, p. 21):
Seguir o filão complexo da proveniência é, ao contrário, manter o que se passou na dispersão que lhe é própria: é demarcar os acidentes, os ínfimos desvios – ou ao contrário as inversões completas – os erros, as falhas na apreciação, os maus cálculos que deram nascimento ao que existe e tem valor para nós; é descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos – não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente. Eis porque, sem dúvida, toda origem da moral, a partir do momento em que ela não é venerável – e a Herkunft nunca é – é crítica.
Em consonância com a perspectiva nietzschiana, Foucault, ao depor o mito da origem, demonstra que é fundamental dispensar um olhar capaz de se opor a qualquer essência atemporal, questionando, ao invés disso, a historicidade contingencial dos sujeitos. Dessa forma, evidencia a necessidade de se compreender que “[...] o verdadeiro sentido histórico reconhece que nós vivemos sem referências ou sem coordenadas originárias, em miríades de acontecimentos perdidos” (FOUCAULT, 1999, p. 29).
Em substituição à história linear, Foucault (1999, p. 29) propõe uma concepção genealógica que possa dar conta de se conectar com uma história “efetiva”, assim descrita por ele:
A história “efetiva” se distingue daquela dos historiadores pelo fato de que ela não se apoia em nenhuma constância: nada no homem – nem mesmo seu corpo – é bastante fixo para compreender outros homens e se reconhecer neles. Tudo em que o homem se apoia para se voltar em direção à história e apreendê-la em sua totalidade, tudo o que permite retraçá-la como um paciente movimento contínuo: trata-se de destruir sistematicamente tudo isto. E preciso despedaçar o que permitia o jogo consolante dos reconhecimentos. Saber, mesmo na ordem histórica, não significa “reencontrar” e, sobretudo não significa “reencontrar-nos”. A história será “efetiva” na medida em que ela reintroduzir o descontínuo em nosso próprio ser. Ela dividirá nossos sentimentos; dramatizará nossos instintos; multiplicará nosso corpo e o oporá a si mesmo.
A partir dessas perspectivas foucaultianas vislumbra-se a impossibilidade de aceitar um suposto modelo universal e atemporal para representar ou definir o sujeito. Isso porque, de acordo com Nietzsche, através de cada ideal pretensamente universal encontram-se várias distorções e convenções socioculturais. Vejamos os questionamentos do referido autor:
“O que ocorre exatamente, você está erguendo ou demolindo um ideal?”, talvez me perguntem... Mas nunca se perguntaram realmente a si mesmos quanto custou nesse mundo a construção de cada ideal? Quanta realidade teve de ser denegrida e negada, quanta mentira teve de ser santificada, quanta consciência transtornada, quanto “Deus” sacrificado? Para se erigir um santuário, é preciso antes destruir um santuário: esta é a lei – mostrem-me um caso em que ela não foi cumprida! (NIETZSCHE, 1998, p. 83).
Foucault, com base nas suas concepções de sujeito, sexualidade e relações de poder construídas historicamente, propõe a existência de uma relação produtiva entre sociedade burguesa e sexualidade, através da qual esta é produzida por aquela. O que aponta uma estratégia de poder social, caracterizada pelo autor como “poder disciplinar”, que inclui a gestão e o controle sobre a vida dos sujeitos, com fins de tornar os corpos “dóceis” aos investimentos do Estado. Além disso, havia o intuito de manter o poder hegemônico da classe burguesa através da conservação dos seus corpos. Isso foi possível, a partir do séc. XIX, sobretudo através de saberes considerados científicos que passaram a legitimar, investigar, analisar e julgar certas práticas, consciências e indivíduos, classificando-os enquanto “normais” ou “patológicos” (FOUCAULT, 2005, p. 111-112).
Esse autor traz, ainda, que a partir dessa atribuição da sexualidade foram traçados princípios de “normalidade” que incluíam o sexo biológico, dividido ente “macho” e fêmea”; a identidade de gênero: masculina ou feminina; além de posicionamentos como “passivo” e “ativo” (FOUCAULT, 2005, p. 43-46). Ou seja, características do arranjo heterossexual. O que desvirtuava desse padrão era considerado patológico, como no caso, os homossexuais.
Em meio a esse histórico de patologização e de marginalização dos homossexuais, em decorrência da concepção de sexualidade adotada pela sociedade burguesa ocidental, muitas lutas vêm sendo traçadas pelas sexualidades divergentes para que os seus direitos fundamentais sejam respeitados. O que inclui a possibilidade de constituir uma família e de exercer a parentalidade pela via da adoção. Dessa forma, considera-se, assim, como Lima (2014, p. 73-74):
Tal como a cor da pele, a homossexualidade não deveria ser considerada como um dado importante para a qualificação dos cidadãos como sujeitos de direito. No entanto, contata-se que a homossexualidade continua sendo um obstáculo para a plena realização de direitos, ferindo os princípios fundamentais dos direitos humanos.
Destarte, não se pode negar que foram alcançados avanços significativos na luta dos direitos dos homossexuais diante das reivindicações traçadas pelas minorias sexuais ao redor do mundo. Todavia, é importante atentar para o fato de que os preconceitos e as violações de direitos ainda persistem e que a aprovação de leis que assegurem os direitos à cidadania plena dos homossexuais faz-se cada dia mais imperiosa para que a dignidade humana desses sujeitos seja respeitada.
2.2 Aspectos jurídicos da adoção por casais do mesmo sexo no Brasil
De acordo com Lima (2014, p. 69), a luta das minorias sexuais por igualdade de direitos e reconhecimento de sua dignidade humana passou a ser uma questão política a ser tratada nas sociedades. Dentre as reivindicações dos homossexuais em relação à isonomia dos direitos civis, destaca-se a do reconhecimento das uniões civis e do casamento entre casais do mesmo sexo (MISKOLCI, 2007, p. 108).
Considerando as conquistas mais significativas das sexualidades divergentes no Brasil, tem-se que, em março de 2001, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) foi pioneiro ao reconhecer o vínculo entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Em razão da lacuna deixada pela omissão legal, foi empregada a legislação concernente às uniões extrapatrimoniais (MENDES, 2015, p. 175). O mesmo TJ-RS confirmou, em abril de 2006, na Comarca de Bagé, a decisão de primeiro grau decorrente da Apelação Cível nº 70013801592, que possibilitou a adoção por um casal formado por duas mulheres. Tal decisão foi fundamentada na importância do vínculo do afeto que permeia as relações familiares, ressaltando a relevância de se combater o preconceito e de garantir o melhor interesse das crianças e adolescentes.
Em outubro de 2011, o STJ, em harmonia com o que havia decidido o Pleno do STF, em maio daquele ano, ao reconhecer e afirmar a validade e a proteção jurídico-estatal à união estável entre pessoas do mesmo sexo, reconheceu, por votação majoritária, a habilitação do casamento entre homossexuais7. “A decisão com efeito vinculante e eficácia contra todos assegurou aos casais homoafetivos a segurança jurídica” (MENDES, 2015, p. 177).
Outro avanço significativo ocorreu em maio de 2013, pois o CNJ aprovou, por maioria dos votos, a Resolução nº 175, que obriga os cartórios brasileiros a promover a celebração do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e a converter a união estável entre essas pessoas em casamento. O que antes ficava a critério, passou a ser obrigatório (MENDES, 2015, p. 179).
Em março de 2015, o STF reconheceu a adoção por casais do mesmo sexo, alegando que o conceito de família, nas suas premissas de visibilidade, continuidade e durabilidade também pode ser aplicado a esses casais. A Ministra Carmen Lúcia fundamentou a decisão, no RE 846.102, com base na isonomia entre casais heterossexuais e do mesmo sexo. Ainda em maio de 2017, a 4ª Turma do STJ entendeu que homossexuais podem adotar crianças de qualquer idade8. Por unanimidade de votos, o Tribunal de Justiça do Paraná manteve o entendimento do juízo do primeiro grau, sustentando que não há previsão legal limitando a faixa etária do adotando em função da orientação sexual do adotante, devendo, este, preencher os requisitos legais do ECA e oferecer ambiente familiar favorável.
No âmbito do Direito Penal, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) trouxe um avanço no tratamento das sexualidades divergentes ao proteger os diferentes tipos de união, definindo a família, no art. 5º, II, como: “comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa”, ressaltando no parágrafo único desse mesmo artigo: “As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual” (BRASIL, 2006).
Como se pôde ver, mesmo sem uma lei que regulamente o assunto, existe um número crescente de decisões judiciais favorecendo a adoção conjunta de crianças e adolescentes por casais do mesmo sexo. De uma forma geral, verifica-se que os juízes que decidiram os casos se pautaram nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade e do melhor interesse da criança para justificar o direito das sexualidades divergentes de adotar e o direito das crianças e adolescentes de serem adotadas.
2.2.1 Princípio da dignidade da pessoa humana
A discussão sobre a dignidade humana é bastante antiga no Ocidente, remontando ao pensamento clássico e aos ideais cristãos (SARLET, 2009). No entanto, foi com a perspectiva de Kant (2007) que ela entrou em evidência, afastando-se dos aspectos sacrais. Na leitura kantiana, a dignidade não apresenta equivalente em razão do seu valor moral, não podendo, portanto, ser negociada nem substituída como mercadoria. Esse autor vislumbra a moralidade como única condição capaz de fazer de um ser racional um fim em si mesmo, posto que só através dela é possível ser “membro legislador nos reinos dos fins” (KANT, 2007, p. 77).
Para Sarlet (2009) a dignidade humana é intrínseca e distintiva, inerente a cada pessoa, e perpassa o merecimento que cada indivíduo tem de ser respeitado e considerado pelo Estado e pela comunidade. Com isso, ressalta que a dignidade abarca direitos e deveres fundamentais que devem garantir ao ser humano tanto as condições mínimas para uma existência saudável quanto a proteção contra atos desumanos e degradantes.
A Constituição Federal de 1988, no art. 1º, III, proclama a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito e da ordem jurídica, trazendo-o, ainda, no capítulo reservado à família como princípio que fundamenta as normas que solidificam a emancipação dos seus membros (art. 226, § 7º; art. 227, caput; art. 230). De acordo com a Constituição, todas as pessoas, pela própria condição humana, possuem dignidade, devendo ser respeitadas pelo que são. Dessa forma, assevera-se que é inconstitucional discriminar qualquer pessoa com base em sua orientação sexual.
2.2.2 O princípio da igualdade e o respeito à diferença
No que concerne ao princípio da igualdade, em particular, da igualdade formal, Rios e Piovesan (2003, p. 60) a consideram como um “mandamento de igual aplicação do mesmo direito a todos, rompendo com a sociedade estamental e com os particularismos jurídicos que caracterizavam o antigo regime”. Em relação à adoção de crianças e adolescentes por pessoas do mesmo sexo, Rios (2001, p. 70) enfatiza, com base no princípio da igualdade:
A igualdade formal reconhece a todos, independentemente da orientação homo ou heterossexual a qualidade de sujeito de direito, não identificando na prática como pessoa heterossexual. Diante do caso concreto, independentemente da orientação sexual da pessoa, a mesma isonomia formal deve ser aplicada no caso. Assim, não há a possibilidade de impedir o deferimento da adoção de uma criança por casais homoafetivos pelo simples fato de sua orientação sexual, por não ser os mesmos heterossexuais.
De acordo com Lôbo (2015, p. 113-114), a CF/88 promoveu a igualdade entre os cônjuges, entre os companheiros, dos cônjuges em relação aos companheiros, bem como entre os filhos de qualquer origem familiar, extinguindo a legitimidade familiar como categoria jurídica, tendo em vista que servia apenas como critério de discriminação.
Em vista disso, ressalta-se que impedir um casal do mesmo sexo de adotar uma criança ou adolescente, exclusivamente em razão da orientação sexual, é um desrespeito explícito aos princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana.
No entanto, a inserção definitiva de uma criança ou adolescente numa família composta por pessoas do mesmo sexo também não pode ser reivindicada sem a avaliação de critérios relevantes, da mesma forma que não deve ocorrer esse tipo de inserção, sem critérios, em famílias heterossexuais. Ou seja, os requisitos para a adoção devem ser os mesmos, independentemente da orientação sexual dos postulantes.
Ademais, é preciso estar atento ao fato de que, em toda e qualquer circunstância, deve prevalecer o princípio do melhor interesse da criança, que precisa ser priorizada e respeitada enquanto sujeito de direitos em desenvolvimento, que necessita da proteção do Estado e da sociedade para o desenvolvimento pleno da sua personalidade.
2.2.3 Princípio do melhor interesse da criança
O princípio do melhor interesse da criança (e do adolescente) é um reflexo da doutrina da proteção integral da criança e dos direitos humanos de uma forma geral. Para Lôbo (2015, p. 123), esse princípio segue a Convenção Internacional dos Direitos da Criança e significa dizer que a criança e o adolescente devem ter os seus interesses tratados de forma prioritária pela família, pela sociedade e pelo Estado, tanto na elaboração quanto na aplicação dos direitos, tendo em vista a condição peculiar de desenvolvimento e a dignidade desses sujeitos. Essa primazia está prevista no art. 227 da CF/88 e no art. 4º do ECA.
Ainda sobre esse princípio, Lôbo (2015, p. 124) aponta: “O princípio não é uma recomendação ética, mas diretriz determinante nas relações da criança com seus pais, com sua família, com a sociedade e com o Estado”. Dessa forma, considera que o maior desafio é tirar a criança e o adolescente do lugar de objeto (passivo) para colocá-los no lugar que lhes cabe: de sujeitos de direitos em uma condição peculiar de desenvolvimento.
Isso posto, verifica-se que o melhor interesse da criança e do adolescente deve ser colocado como prioridade em todas as situações que os envolva, o que inclui a possibilidade de adoção por pessoas do mesmo sexo.
2.3 Aspectos psicológicos da adoção por casais do mesmo sexo no Brasil
A Resolução nº 001/99 do Conselho Federal de Psicologia (CFP) estabelece normas para atuação do psicólogo quanto à questão da orientação sexual, enfatizando que a homossexualidade não se trata de doença ou desvio. Já em seu art. 2°, aponta: “Os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas”.
Em vista disso, a Psicologia tem muito a contribuir com as discussões sobre as diversas formas de se exercer a parentalidade por parte das novas configurações familiares, que vêm ganhando visibilidade ao lutar contra os padrões heteronormativos que ditam as regras sociais na sociedade brasileira.
Quanto ao exercício da parentalidade por casais do mesmo sexo através da adoção, deve-se atentar, a priori, à necessidade de se voltar o olhar às 8.424 crianças e adolescentes que se encontram em instituições de acolhimento no Brasil9, aguardando para serem adotadas, tendo em vista que esse tipo de adoção se mostra como mais uma possibilidade para essas crianças e adolescentes terem um lar para crescerem e se desenvolverem.
Além disso, faz-se necessário considerar o comprometimento psicológico dessas crianças institucionalizadas, posto que a dificuldade de se estabelecer e manter vínculos nessas instituições pode interferir na formação da autoimagem, no estabelecimento de relações interpessoais e no desenvolvimento como um todo, podendo acarretar consequências lascivas para as suas vidas (ARAÚJO et al., 2007, p. 96).
Sobre isso, Weber (2005, p. 57) assevera: “Crianças que moram em regime de internato em instituições que não privilegiam relações individuais essenciais ao desenvolvimento do apego, aprendem a conviver com a solidão espiritual, com a dor do abandono e constituem-se em filhos de ninguém”. Acerca dos prejuízos da institucionalização para as crianças e adolescentes, a referida autora aponta a grande dificuldade na formação de vínculos afetivos consistentes e estáveis e ressalta:
Para a Ciência Psicológica atual, existe uma tendência no ser humano a estabelecer ligações afetivas fortes e consistentes já nos primeiros meses de vida da criança, e isso é uma necessidade básica tão fundamental quanto a alimentação. E é justamente a partir desse apego consistente com adultos estáveis que tiramos elementos que nos tornam pessoas que passam a amar a vida e os outros. O apego íntimo a outros seres humanos é o núcleo em torno do qual gira a vida de uma pessoa; é desse apego íntimo que reiteramos a força e o prazer a outros (WEBER, 2005, p. 59-60).
Quanto aos preconceitos e mitos que permeiam o exercício da parentalidade pelos casais do mesmo sexo, encontram-se: o medo de a orientação social dos adotantes interferir na dos adotados e de que estes sofram abusos sexuais, o que, por si só, já denota o caráter heteronormativo da sociedade brasileira; o receio de que a criança possa sofrer discriminações por ter dois pais ou duas mães; dentre outros (SILVA, 2008; UZIEL, 2008).
No que diz respeito à influência da orientação sexual dos adotantes em relação aos adotados, Silva ressalta que não se pode afirmar que todas as pessoas que são filhas de homossexuais terão a mesma orientação sexual que os seus pais, uma vez que nem todos os filhos de pais heterossexuais possuem esta orientação sexual. Acrescenta, ainda: “A relação entre filhos e pais homossexuais precisa ser olhada com mais naturalidade, uma vez que estas crianças conseguem estabelecer o vínculo parental com uma ou duas pessoas, prontas para a vivência da parentalidade” (SILVA, 2008, p. 18-19).
Sobre isso, ressalta-se, primeiramente, que homossexualidade não é doença nem desvio, não devendo, portanto, ser objeto de preocupação social a orientação sexual das pessoas. O fato de a sociedade expressar seu medo quanto aos possíveis abusos sexuais de crianças e adolescentes por casais do mesmo sexo só denota uma visão preconceituosa e estereotipada das minorias sexuais, ligada à noção de perversão, doença e desvio.
Parece haver, ainda, um equívoco quanto à necessidade de a criança ter um pai e uma mãe heterossexual para o seu desenvolvimento saudável, posto que as funções parentais não estão atreladas ao sexo, mas a forma como os cuidadores conduzirão as questões de poder e hierarquia, relativas à tomada de decisões e a problemas disciplinares na relação com os filhos (CASTRO, 2008, p. 24).
Em pesquisa realizada com mulheres que vivenciam a homoparentalidade,10 Silva (2008) verificou a realização pessoal que a experiência proporcionou para cada uma dela, bem como o lugar especial que os filhos passaram a ocupar na vida dessas mulheres, impulsionando uma busca por alternativas diversas para uma vivência parental mais autêntica.
Através de um estudo de caso realizado com um casal gay que adotou dois irmãos na cidade de São Paulo, Almeida (2012, p. 205) afirma que as crianças que foram acolhidas pelo casal estão crescendo e se socializando com o apoio da família na qual foram inseridas, ao passo que os adotantes têm alcançado, paulatinamente, o reconhecimento social da família, além do reconhecimento legal. Em vista disso, pondera que na busca por legitimidade e visibilidade adotantes e adotados acabam valendo-se de atributos presentes na cultura para estabelecerem as identidades parentais, baseando-se em modelos e estruturas familiares disponíveis na atualidade.
Quanto aos estudos psicológicos realizados no Reino Unido com casais gays que adotaram crianças, Golombok e outros (2014, p. 466) ressaltam que os resultados foram positivos, sugerindo que existe um potencial pouco explorado desse grupo adotivo. Isso porque os casais que concluíram o processo de adoção com êxito se tornaram pais particularmente participativos. Vejamos:
Num momento em que há muitas crianças à espera de serem adotadas, mas há escassez de adotantes adequados, os resultados positivos em relação às famílias adotivas gays neste estudo sugerem que existe um grupo amplamente inexplorado de potenciais pais adotivos. Os desafios enfrentados pelos casais gays que desejam adotar são ainda maiores do que aqueles vivenciados por casais de lésbicas e heterossexuais. Parece que aqueles que concluíram com sucesso o processo de adoção se tornaram pais particularmente comprometidos (GOLOMBOK et al., 2014, p. 466, tradução nossa)11.
Isso posto, verifica-se que a orientação sexual dos pais não é um fator determinante para o desenvolvimento biopsicossocial saudável de uma criança ou adolescente, mas a disponibilidade afetiva, a qualidade do vínculo construído na relação parental e o exercício das funções parentais de poder, hierarquia, cuidado, amor e proteção.
Salienta-se, por fim, que a adoção por pares do mesmo sexo não deve ser vista como uma segunda opção para essas crianças e adolescentes, mas como uma possibilidade legítima de constituição familiar, assim como ocorre com as famílias heterossexuais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O instituto da adoção pode ser visto como uma das formas mais seguras de garantir a convivência familiar e os demais direitos da criança e do adolescente previstos na Carta Magna e no ECA em casos de perda ou extinção do poder familiar dos genitores. A adoção por casais do mesmo sexo, por sua vez, mostra-se como mais uma possibilidade de inserção dessas crianças e adolescentes em famílias substitutas. Colocar empecilhos a esta ou a qualquer outra modalidade de adoção é um desrespeito ao superior interesse desses seres em situação peculiar de desenvolvimento que se encontram em instituições de acolhimento, privados de referências e vinculações parentais e do afeto e estímulo que necessitam para crescerem de forma saudável.
Como visto, não existe proibição legal para esse tipo de adoção, ao passo que também não há uma autorização explícita. O Poder Legislativo tem deixado uma lacuna sobre essa questão, esquivando-se de legislar sobre um assunto de extrema relevância social. Diante disso, o Poder Judiciário tem buscado preencher essa lacuna através da jurisprudência do STF e do STJ, ficando, portanto, a encargo dos Juízos das Varas da Infância e Juventude e das equipes interdisciplinares a incumbência de decidir e de tratar sobre essas questões.
Vale ressaltar a discricionariedade presente nesse tipo de adoção, visto que ela pode ser percebida e interpretada de formas diferentes pelos Juízos das referidas Varas, sendo, portanto, uma ação que gera insegurança para os casais do mesmo sexo que buscam o direito de exercer a parentalidade através da adoção. A falta de uma legislação específica sobre a matéria coloca esses casais em um lugar diferente ao dos heterossexuais, tendo em vista que estes, em relação às questões jurídicas, preocupam-se apenas em cumprir os requisitos legais para a adoção e não com a impossibilidade de adotar em razão da sua orientação sexual.
Ademais, a Psicologia vem asseverando que a orientação sexual dos adotantes não interfere na qualidade do vínculo parental estabelecido com o adotando e que esse não deve ser um critério relevante a ser observado durante o processo de adoção.
Ressalta-se, por fim, que esse tipo de adoção é prejudicado pelo preconceito ligado às questões de gênero, que precisa ser combatido na sociedade brasileira. Afirmar que um casal do mesmo sexo não tem condições de propiciar um ambiente familiar saudável para uma criança ou adolescente crescer e se desenvolver apenas em razão da orientação sexual é um desrespeito explícito aos princípios da igualdade, da dignidade e do melhor interesse da criança. Esse tipo de postura só traz prejuízo a todos os envolvidos e à sociedade como um todo, que precisa se adequar à realidade vigente, às novas configurações familiares e aos desdobramentos decorrentes destas, respeitando e acolhendo as diferenças para que se torne mais inclusiva, igualitária e justa.
REFERÊNCIAS
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ARAÚJO, L. et al. Adoção de crianças por casais homoafetivos: um estudo comparativo entre universitários de Direito e de Psicologia. Psicol. Soc., Porto Alegre, v. 19, n. 2, p. 95-102, ago. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822007000200013&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 20 fev. 2018.
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Recebido em 07.06.2018
Aceito em 15.10.2018
1 Através de consulta realizada no site oficial da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em janeiro de 2018, foram encontrados 48 projetos de lei que abarcam o tema da adoção.
2 Consideramos a heteronormatividade em consonância com Butler (2003), que a emprega como um constructo social binário de gênero, uma regra universal excludente (em relação aos homossexuais), posta como efeito do natural e inevitável, e que apresenta a heterossexualidade como poder regulatório da sexualidade.
3 Adotamos a expressão sexualidades divergentes por entendermos que essas sexualidades divergem dos padrões socialmente impostos: divergem da heteronormatividade.
4 Dentre esses projetos, foram encontrados apenas quatro que versam sobre a adoção por casais do mesmo sexo, sendo três com posicionamentos contrários a esse tipo de adoção (PL 7018/2010, PL 4508/2008 e PL 6583/2013). O único a favor encontra-se arquivado desde janeiro de 2015 (PL 2153/2011), conforme consulta realizada no site oficial da Câmara dos Deputados em janeiro de 2018. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/. Acesso em: 22 jan. 2018.
5 Sobre isso, Lima (2014, p. 36) ressalta: “A sodomia abrangia todos os atos considerados desviantes dos princípios morais vigentes, incluídos os atos anais e orais, o adultério, o incesto, as relações entre pessoas do mesmo sexo e as relações com animais”.
6 Que não é posto como elemento central (ou numa posição privilegiada) na gênese de uma história linear, como ocorre na concepção de sujeito transcendental.
7 Através da decisão conjunta da ADI 4277 e ADPF 132.
8 Julgamento referente ao RE nº 1.525.714 – PR (2012/0019893-3), cujo relator foi o ministro Raul Araújo.
9 Contida no Cadastro Nacional de Adoção (CNA). Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/cnanovo/pages/publico/index.jsf>. Acesso em: 27 jan. 2018.
10 Termo utilizado para as relações de parentalidade vivenciadas por mulheres e homens homossexuais.
11 Termo utilizado para as relações de parentalidade vivenciadas por mulheres e homens homossexuais.
Este obra está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
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ISSN: 2178-2466