Revista Direito e Justiça - Artigo 7

RESTITUIÇÃO DO PRODUTO DO ILÍCITO NO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL E DE FALÊNCIA

RETURN OF THE PRODUCT OF ILLICIT IN THE JUDICIAL RECOVERY AND BANKRUPTCY PROCEEDINGS

Débora Costa FerreiraI

Marlon TomazetteII

Nivaldo Dias FilhoIII

I Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), Brasília, DF, Brasil. (Mestre em Direito). E-mail: debora.costaferreira91@gmail.com

II Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), Brasília, DF, Brasil. (Doutor em Direito). E-mail: marlon@direitocomercial.com

III Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil. E-mail: nivaldodf@tcu.gov.br

 

Sumário: Considerações iniciais. 1 Aspectos do confisco ou perdimento do produto do ilícito. 1.1 Contornos jurídicos e efeitos do confisco do produto do ilícito. 1.2 Confisco do produto dos ilícitos relacionados à corrupção. 2 Consequências do confisco do produto do ilícito no processo de recuperação judicial ou de falência. 2.1 Confisco do produto do ilícito, direito de propriedade e função social da empresa. 2.2 Distinção entre direito de propriedade e direito de crédito. 2.3 Dinheiro não tem carimbo. 2.4 Efeitos sobre a recuperação judicial. 2.5 Efeitos sobre a falência. Considerações finais. Referências.

Resumo: No contexto em que empresas envolvidas em esquemas de corrupção estão tendo seus pedidos de recuperação judicial deferidos, com consideráveis chances de haver convolação em falência, o presente artigo se propõe a analisar como deve se dar a restituição do produto do ilícito no âmbito dos processos de recuperação judicial e de falência, a partir do esclarecimento dos principais aspectos e efeitos do confisco sobre o direito falimentar, adequando-se os institutos da Lei nº 11.101/2005, sem afetar a coerência interna de sua sistemática. A partir dessa análise, conclui-se que o perdimento do produto do ilícito, que decorra imediatamente de sentença ou de ato negocial que transacione essa sanção, por representar verdadeira transferência de propriedade em favor do Estado, repercute na exclusão desses valores do âmbito de gerenciamento do juízo universal, devendo ser prontamente restituídos, seja por meio do procedimento análogo àquele disposto nos artigos 85 a 93 da Lei nº 11.101/2005.

Palavras-chave: Direito Penal Econômico. Recuperação judicial. Falência. Produto do ilícito. Confisco. Direito de Propriedade.

Abstract: In the context in which companies involved in corruption schemes are having their requests for judicial recovery granted, with considerable chances of bankruptcy, this article proposes to analyze how restitution of the product of illicit should be recovered in the judicial recovery and bankruptcy proceedings, from the clarification of the main aspects and effects of confiscation on bankruptcy law, adjusting the institutes of Law n. 11.101/2005, without affecting the internal coherence of its system. Based on this analysis, it is concluded that the loss of product of illicit, resulting immediately from a judgment or negotiating act that transcends this sanction, because it represents a true transfer of ownership in favor of the State, has repercussions on the exclusion of these values from the scope of management of the universal judgment, and must be promptly returned, either by means of a procedure analogous to that established in articles 85 to 93 of Law 11.101/2005.

Keywords: Criminal Law. Judicial recovery. Bankruptcy. Product of illicit. Confiscation. Property right.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Voltada originalmente à tutela do crédito e à preservação da atividade da empresa (SALOMÃO FILHO, 2007, p. 43), a Lei nº 11.101/2005 não antecipou a hipótese de que parte dos bens e valores inicialmente detidos por empresas em processos de recuperação judicial ou de falência constituam produto de atos ilícitos praticados pelos seus agentes no exercício de suas atividades empresariais, razão porque o diploma legislativo não apresentou de forma clara o modo pelo qual devem ser restituídos esses valores no âmbito desses processos.

Tal lacuna legal se revela especialmente problemática no contexto em que empresas envolvidas em esquemas de corrupção estão tendo seus pedidos de recuperação judicial deferidos,1 com consideráveis chances de haver convolação em falência.2 O principal ponto é o de que a efetividade da restituição dos valores obtidos ilicitamente, voltada a desestimular essas práticas corruptivas, esbarraria, em uma leitura literal, nas regras e procedimentos do juízo universal.

Assim, questiona-se: nessas situações e em todas as demais hipóteses em que a empresa tiver exercido inequivocamente atividades ilícitas, os valores referentes ao produto do ilícito devem se submeter às regras gerais de gerenciamento patrimonial estabelecidas legalmente para a recuperação judicial e para a falência? Ou o ordenamento jurídico impõe tratamento diferenciado desse montante com relação aos créditos tratados pela Lei nº 11.101/2005? Qual construção jurídica, sob o ponto de vista sistêmico, proporciona melhor solução para colmatar a referida lacuna?

Diante de tais questões, o presente estudo se propõe a analisar detidamente os efeitos do confisco ou perdimento dos bens e valores que constituam produtos de ilícitos nos processos de recuperação judicial e de falência, buscando verificar e promover a sua adequação com os institutos da Lei nº 11.101/2005, sem afetar a coerência interna de sua sistemática. Para facilitar a compreensão do problema jurídico, adota-se como pano de fundo a hipótese específica de empresas em que (i) foi determinado o confisco das vantagens indevidas obtidas por meio de esquemas de corrupção e que (ii) se encontram no curso de processo de recuperação judicial ou de falência.

A partir de ampla investigação das categorias jurídicas envolvidas, conclui-se que o perdimento do produto do ilícito que decorra imediatamente de sentença ou de ato negocial que transacione essa sanção, por representar verdadeira transferência de propriedade em favor do Estado, repercute na exclusão desses valores do âmbito de gerenciamento do juízo universal, devendo ser prontamente restituídos, seja por meio do procedimento análogo àquele disposto nos artigos 85 a 93 da Lei nº 11.101/2005, seja pela via dos embargos de terceiros, previsto no Código de Processo Civil.

Com vistas a alcançar o objetivo proposto, o estudo analisa, no capítulo seguinte, a natureza e os contornos jurídicos do instituto do confisco ou perdimento, assim co-mo suas consequências jurídicas imediatas para as demais esferas do direito. Em se-guida, investigam-se as repercussões do confisco no âmbito do direito falimentar e do juízo universal.

1 ASPECTOS DO CONFISCO OU PERDIMENTO DO PRODUTO DO ILÍCI-TO

Apesar de constituir instituto jurídico amplamente utilizado para realizar as funções preventivas e punitivas do Estado, pouco se reflete acerca dos contornos jurídicos do instituto do confisco ou perdimento do produto do ilícito na sua interconexão com as outras esferas do direito, motivo pelo qual o presente capítulo se propõe a es-clarecer tais contornos, delineando ainda especificidades das hipóteses de confisco previstas para o combate à corrupção.

1.1 Contornos jurídicos e efeitos do confisco do produto do ilícito

Em uma sociedade de riscos (BECK, 1998), o vasto potencial lesivo dos delitos econômicos e patrimoniais3 imprime urgência no delineamento de política criminal eficaz no seu combate. Por essa razão, o Direito Penal viu-se forçado a reformular seu tradicional modelo de penas privativas de liberdade para atacar a verdadeira motivação desses crimes: o lucro ilícito. Nesse quadro, o confisco ou o perdimento4 do produto do ilícito5 se apresentou como o instrumento mais adequado e eficiente, no sentido do que prescreve a teoria econômica do crime (BECKER, 1992), para a dissuasão dessas práticas ilícitas, ao capturar justamente a vantagem indevida obtida por essa via.6,7

Isso vale especialmente no caso de organizações criminosas que se utilizam de pessoas jurídicas para desempenhar e organizar suas atividades,8 visto que a consolidação de situações patrimoniais ilícitas, a despeito da imposição de prisões às pessoas físicas envolvidas, mantém o estímulo à continuidade dessas práticas, assim como envia sinalização aos demais indivíduos da sociedade de que é vantajoso se engajar nesses tipos de delito, se comparado com a conduta lícita, considerando-se, ainda, a blindagem patrimonial proporcionada pela constituição da empresa.9 Além disso, tal situação permite que esse lucro ilícito circule, estimulando outros crimes e práticas desincentivadas pelo Estado.

É nesse contexto em que as hipóteses de confisco e perdimento do produto do ilícito multiplicaram-se no ordenamento jurídico brasileiro, tanto como efeito da condenação quanto como sanção, extravasando seu alcance para além do Direito Penal.10

Quanto à sua definição, o confisco constitui ato jurídico por meio do qual se procede à expropriação forçada, sem direito a qualquer indenização, de bens e valores incorporados ilicitamente ao patrimônio do infrator (NUCCI, 2017, p. 1027), consoante conceituações doutrinárias e legais, como as a seguir expostas:

A pena do confisco, portanto, possui natureza jurídica de sanção penal pecuniária na medida em que incide sobre o direito de propriedade do condenado, impondo-lhe uma diminuição patrimonial por meio da perda parcial ou total de seus bens, gerando obrigação de entregá-los ao Estado (CORRÊA JÚNIOR, 2006, p. 38).

Por “confisco” se entenderá a privação em caráter definitivo de bens por ordem de um tribunal ou outra autoridade competente (Artigo 2º, b), da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção).

Assim, a principal conclusão que se extrai desses delineamentos é a de que, no exato momento da condenação ou do ato ou acordo que antecipe seus efeitos, ocorre a transferência da propriedade dos bens e valores especificados para o Poder Público. Tanto é que a doutrina civilista prevê o confisco como caso especial de perda da propriedade, submetido ao regime jurídico de direito público (PEREIRA, 2017. p. 223). Em outros termos, os valores relativos ao produto do ilícito11 sobre os quais recaiu o confisco deixam de ser considerados patrimônio do infrator a partir dos momentos especificados, passando para o patrimônio do Estado.

Trata-se, pois, de direito de propriedade do Estado, que não se confunde com direito de crédito decorrente de atos negociais. Por isso, como prerrogativa do seu direito de propriedade constitucionalmente resguardado, ao Estado compete propor medidas assecuratórias cabíveis visando a garantir a indisponibilidade e a devida restituição desses valores,12 ainda que eles tenham sido convertidos em outros bens e valores lícitos13 ou afetem sucessores.14

Todas essas especificidades aplicam-se indistintamente às hipóteses de confisco do produto de ilícitos relativos à corrupção, sobre os quais, a título ilustrativo, o estudo passa a analisar mais detidamente a seguir.

1.2 Confisco do produto dos ilícitos relacionados à corrupção

No âmbito dos delitos relativos à corrupção, o confisco do produto do ilícito está previsto tanto no ordenamento jurídico internacional quanto no direito interno brasileiro.

Por considerar os atos de corrupção como práticas amplamente desincentivadas pela comunidade internacional, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção15 previu o confisco do produto do ilícito como pena imprescindível a ser adotada pela legislação interna dos países signatários, assim como exigiu a adoção de todas as medidas necessárias para viabilizar esse confisco, como o embargo preventivo, a apreensão dos respectivos bens e quaisquer outros meios que assegurem a sua livre disposição por parte dos legítimos proprietários:

Artigo 31 – Embargo preventivo, apreensão e confisco

1. Cada Estado Parte adotará, no maior grau permitido em seu ordenamento jurídico interno, as medidas que sejam necessárias para autorizar o confisco:

a) Do produto de delito qualificado de acordo com a presente Convenção ou de bens cujo valor corresponda ao de tal produto;

2. Cada Estado Parte adotará as medidas que sejam necessárias para permitir a identificação, localização, embargo preventivo ou a apreensão de qualquer bem a que se tenha referência no parágrafo 1 do presente Artigo com vistas ao seu eventual confisco.

3. Cada Estado Parte adotará, em conformidade com sua legislação interna, as medidas legislativas e de outras índoles que sejam necessárias para regular a administração, por parte das autoridades competentes, dos bens embargados, incautados ou confiscados compreendidos nos parágrafos 1 e 2 do presente Artigo. [...]

Artigo 53 – Medidas para a recuperação direta de bens

Cada Estado Parte, em conformidade com sua legislação interna:

c) Adotará as medidas que sejam necessárias a fim de permitir a seus tribunais ou suas autoridades competentes, quando devam adotar decisões no que diz respeito ao confisco, que reconheça o legítimo direito de propriedade de outro Estado Parte sobre os bens adquiridos mediante a prática de um dos delitos qualificados de acordo com a presente Convenção.

Artigo 57 – Restituição e disposição de ativos

1. Cada Estado Parte disporá dos bens que tenham sido confiscados conforme o disposto nos Artigos 31 ou 55 da presente convenção, incluída a restituição a seus legítimos proprietários anteriores, de acordo com o parágrafo 3 do presente Artigo, em conformidade com as disposições da presente Convenção e com sua legislação interna.

2. Cada Estado Parte adotará, em conformidade com os princípios fundamentais de seu direito interno, as medidas legislativas e de outras índoles que sejam necessárias para permitir que suas autoridades competentes procedam à restituição dos bens confiscados, ao dar curso a uma solicitação apresentada por outro Estado Parte, em conformidade com a presente Convenção, tendo em conta os direitos de terceiros de boa-fé.

Como a doutrina acerca do controle de convencionalidade das leis (MAZZUOLI; MARINONI, 2013; FERREIRA, 2015; CONCI, 2014) estabelece o entendimento, adotado pelo Supremo Tribunal Federal a partir do RE 466.343, de que a legislação interna do Estado signatário de tratados e convenções internacionais deve ser conformada às disposições e aos objetivos constantes desses tratados e convenções, o ordenamento jurídico brasileiro não pode prescindir de adotar suas determinações. Essa adequação envolve não somente as já previstas hipóteses de confisco do produto dos ilícitos relacionados à corrupção (na Lei Anticorrupção de 2013 e na Lei de Improbidade Administrativa) (DI PIETRO, 2017. p. 248), mas também a harmonização das leis anteriores à internalização com as diretrizes internacionais, como é o caso da Lei da Recuperação Judicial de 2005.

Com efeito, proferida sentença contra empresas envolvidas em esquemas de corrupção em que se reconheça a perda do produto do ilícito, ou consubstanciado ato ou acordo que antecipe seus efeitos, a elas não pertence mais o montante que auferiram em virtude das práticas corruptivas, tal como os valores referentes ao sobrepreço e ao lucro de contrato administrativo que não teria sido obtido sem conluio, no âmbito dos atos de corrupção que envolvam danos ao erário.

Além disso, a transferência de propriedade como efeito do confisco produz consequências jurídicas imediatas para todas as demais esferas jurídicas e instâncias judiciais, inclusive para o juízo universal no qual tramita o processo de recuperação judicial ou de falência da empresa condenada, sob pena de se desrespeitar o caráter sistêmico do ordenamento jurídico, além de produzir incoerências e até ineficácia das medidas voltadas ao desincentivo de atos considerados antijurídicos, tal como a corrupção. Nesse passo, analisam-se, no capítulo seguinte, as consequências sobre o juízo da recuperação judicial e de falência.

2 CONSEQUÊNCIAS DO CONFISCO DO PRODUTO DO ILÍCITO NO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL OU DE FALÊNCIA

Para investigar os efeitos do confisco sobre as disposições da Lei nº 11.101/2005, procede-se, em primeiro lugar, a uma breve reflexão acerca (i) da inter-relação entre os limites constitucionais de fruição do direito de propriedade e a função social da empresa, (ii) da distinção do direito de propriedade e do direito de crédito e (iii) da alegação de que “dinheiro não tem carimbo”. Em seguida, adentra-se nas repercussões do confisco nos processos de recuperação judicial e de falência.

2.1 Confisco do produto do ilícito, direito de propriedade e função social da empresa

A transferência da propriedade do produto do ilícito que se opera pelo confisco nas hipóteses ora apresentadas vai ao encontro do processo de publicização do direito de propriedade (PEREIRA, 2017. p. 90), no sentido de que a livre disposição da propriedade privada deve ceder a certos limites, a partir dos quais se impingem consideráveis danos à sociedade ou deixa-se de produzir benefícios sociais desejáveis, buscando convergir o seu uso à função social16 que da propriedade se espera.

Assim, não há fundamentos constitucionais para se salvaguardar o direito de propriedade quando esse é utilizado como subterfúgio para a prática de crimes ou atos ilícitos,17 uma vez que essas práticas não atendem à função social a que se destina a propriedade, motivo pelo qual contra tudo o que é adquirido por meios antijurídicos não são oponíveis exceções ao ato confiscatório estatal.18

Quando se trata de propriedade empresarial, a questão jurídica ganha novos e mais complexos contornos,19 uma vez que, ao se imputar responsabilidade penal ou cível a uma empresa pela prática de atos ilícitos, não são os patrimônios dos sócios e eventuais acionistas que respondem pelo confisco, mas sim o patrimônio da pessoa jurídica, a qual concentra, por ficção jurídica, a propriedade dos bens e direitos inscritos em seus registros contábeis, sendo que as prerrogativas dominiais desses sócios e acionistas são só indiretamente afetadas.20

Dessarte, o confisco sobre o patrimônio de empresas tem como fim limitar tanto o direito à propriedade empresarial quanto o exercício de atividades econômicas que não atendam sua função social relativas ao desempenho de atividades ilícitas. Por esse fundamento, sobre o produto do ilícito não existe direito ao uso, gozo, disposição e reivindicação pela empresa, a partir da condenação que reconhece a ilicitude de parcela ou da integralidade de suas atividades, ou do ato que antecipe seus efeitos.

Essas constatações possuem repercussão direta sobre o direito falimentar, porquanto implicam restrição clara ao poder da empresa, do juízo universal, do administrador judicial e da assembleia de credores para dispor sobre os bens e valores referentes ao produto do ilícito, ainda que a Lei nº 11.101/2005 tenha lhes conferido a competência para fazê-lo com o patrimônio da empresa. Com efeito, a partir do momento em que o produto do ilícito deixa de compor o patrimônio da empresa em crise, não há que se falar na sua submissão aos procedimentos próprios do processo de recuperação judicial e de falência.

Isso até porque a prerrogativa da empresa para pedir a recuperação judicial com vistas a superar crises e a dos credores de pedir a declaração de falência para recebimento de créditos somente se revela possível no âmbito das atividades lícitas da empresa, em consonância com a sua função social. No que concerne às atividades ilícitas, a empresa é socialmente inviável, razão porque o risco da atividade não pode ser transferido ao Ente Público diretamente lesado por essas atividades, a pretexto de se superar crises, assim como a inviabilidade econômica não permite a transferência do risco aos credores.

Analisar a importância social da empresa significa verificar a importância que aquela atividade possui na economia local, regional ou nacional. A ideia é que, quanto mais relevante for a empresa, mais importante será buscar a superação da crise e a manutenção da atividade. O maior número de interesses circundando a empresa justifica maiores esforços na busca da recuperação, pois o encerramento de uma empresa socialmente importante gera representativos prejuízos sociais. Se pratica atividades ilícitas, sua importância social é contrabalanceada pelos danos sociais que ela gera, razão porque essa parcela não deve ser alvo de recuperação judicial. Apenas as empresas viáveis são capazes de justificar os sacrifícios que terão que ser realizados pelos credores na recuperacão judicial, uma vez que os credores só realizarão tais sacrifícios para proteger interesses mais relevantes. Destarte, a recuperação judicial só deve ser usada para empresas viáveis.

Assim, do mesmo modo que um carro roubado deve ser devolvido com total preferência ao real proprietário após seu confisco, com relação a todos os demais credores do infrator que se encontre em processo de liquidação de bens por insolvência civil, o Estado não poderia ser preterido pelas demais classes de credores da empresa recuperanda ou falida. Em outros termos, não seria legítimo o pagamento de empregados e de fornecedores com “ativos” derivados de atividades ilícitas que não atendem à função social da empresa, bloqueando a pronta restituição desse montante, o que infringiria a prerrogativa do Ente Público lesado de reavê-la de quem quer que disponha dos valores de sua propriedade injustamente ou os detenha sem título.

2.2 Distinção entre direito de propriedade e direito de crédito

Sob outro aspecto, o direito de propriedade da União em nada se confunde com os direitos dos demais credores da empresa recuperanda ou da massa falida. Diferentemente do produto do ilícito, os referidos créditos decorrem geralmente de atividades negociais e se inserem normalmente no quadro de credores. Esses credores negociais tiveram a oportunidade não somente de avaliar o risco de crise financeira que leve a empresa, contra a qual se constituiu crédito, a se submeter a processo de recuperação judicial ou falência, mas também de precificar esse risco, por meio, por exemplo, de juros negociados e das garantias exigidas. Essa compreensão já foi esclarecida por Caio Mário ao dispor sobre o confisco:

[...] a cessacão da relacão jurídica dominial para o dominus, e integracão da res no acervo estatal. Não constitui, pois, negócio jurídico, nem é compra e venda (posto que forçada), mas um ato de direito público gerando o efeito da transferência do domínio (PEREIRA, 2017, p. 223).

A distinção fundamental é a de que trabalhadores, bancos, fornecedores e outros credores da empresa jamais descartaram a hipótese de má gestão ou crises financeiras que levem à submissão ao processo de recuperação judicial ou de falência. Já no caso do Poder Público, não poderia antecipar nem a prática dos ilícitos, como os de corrupção, nem a possibilidade de não obter restituição pelo produto desses ilícitos em razão do deferimento de pedido de recuperação judicial ou da decretação de falência de empresa cujos dirigentes foram condenados pelos referidos delitos.

Diante dessas especificidades, não ocorre de fato desrespeito ao princípio da universalidade do juízo falimentar, que significa que todos os credores do falido, fossem eles quais fossem, deveriam concorrer ao juízo falimentar, pois a restituição do produto dos ilícitos não seria um crédito propriamente dito. Também não há desvirtuamento da ordem legal de preferências entre os credores, ao privilegiar os mais ágeis, visto que o direito de restituição do Poder Público decorre do seu direito de propriedade e não de direito de crédito.

2.3 Dinheiro não tem carimbo

Qualquer proveito direta ou indiretamente obtido com as práticas corruptivas é passível de ser mensurado e restituído ao Poder Público. Na Ação Penal nº 5083351­89.2014.4.04.7000 reproduz-se trecho da sentença que desconstrói o argumento de que haveria empecilhos à restituição em dinheiro dos valores referentes ao produto do ilícito:

396. Não há falar que a lavagem não se configurou porque os recursos eram lícitos. Se a empresa obteve o contrato com a Petrobrás mediante crimes de cartel e de ajuste fraudulento de licitacões, os valores pagos em decorrência do contrato constituem produto desses mesmos crimes. Crimes não geram frutos lícitos. [...]

400. O que se tem presente, porém, é que a propina destinada à corrupcão da Diretoria de Abastecimento foi paga com dinheiro sujo, procedente de outros crimes antecedentes, aqui identificados como crimes de cartel (art. 4º, I, da Lei no 8.137/1990) e de frustracão, por ajuste, de licitacões (art. 90 da Lei no 8.666/1993).21

Acerca de asserções no sentido da impossibilidade de restituição do produto do ilícito em virtude de sua natureza pecuniária, sob o jargão de que “dinheiro não tem carimbo”, esclarece-se que a própria Lei 11.101/2005 prevê hipóteses em que essa restituição se dá pela via monetária e não pela devolução de um bem determinado, entre as quais se pode citar o direito à restituição de bens que não mais existam ao tempo do pedido (artigo 86, inciso I, da Lei 11.101/2005) e das quantias pagas para administradoras de consórcio e dos valores decorrentes de adiantamento de contrato de câmbio para exportação (artigo 86, inciso II, da Lei 11.101/2005).

Por derradeiro, deve-se mencionar o pedido de restituição nos casos de dinheiro em poder do falido sobre o qual ele não tenha disponibilidade. Em certos casos, por força da lei ou mesmo por força de um contrato, o falido tem em suas mãos dinheiro, mas não tem a disponibilidade sobre ele e, por isso, será cabível a restituição. Tal hipótese muito se assemelha ao pedido de restituição geral, mas envolve a propriedade do dinheiro depositado.

2.4 Efeitos sobre a recuperação judicial

No âmbito do processo de recuperação judicial, o principal efeito da alteração da titularidade dos valores relativos ao produto do ilícito é o reconhecimento de que eles não podem fazer parte do plano de recuperação judicial, porquanto não constituem patrimônio da empresa recuperanda.

Nesse sentido, tais valores sequer poderiam constar do pedido de recuperação judicial como crédito, nos termos do artigo 51, inciso III, da Lei 11.101/2005, visto que os incisos I e II desse mesmo artigo exigem que se exponha, por meio das demonstrações contábeis, a real situação patrimonial do devedor, não se incluindo aí bens e valores de propriedade da União:

Art. 51. A petição inicial de recuperação judicial será instruída com:

I – a exposição das causas concretas da situação patrimonial do devedor e das razões da crise econômico-financeira;

II – as demonstrações contábeis relativas aos 3 (três) últimos exercícios sociais e as levantadas especialmente para instruir o pedido, confeccionadas com estrita observância da legislação societária aplicável e compostas obrigatoriamente de:

a) balanço patrimonial;

b) demonstração de resultados acumulados;

c) demonstração do resultado desde o último exercício social;

d) relatório gerencial de fluxo de caixa e de sua projeção;

III – a relação nominal completa dos credores, inclusive aqueles por obrigação de fazer ou de dar, com a indicação do endereço de cada um, a natureza, a classificação e o valor atualizado do crédito, discriminando sua origem, o regime dos respectivos vencimentos e a indicação dos registros contábeis de cada transação pendente;

Art. 53. O plano de recuperação será apresentado pelo devedor em juízo no prazo improrrogável de 60 (sessenta) dias da publicação da decisão que deferir o processamento da recuperação judicial, sob pena de convolação em falência, e deverá conter: [...]

II – demonstração de sua viabilidade econômica; e

III – laudo econômico-financeiro e de avaliação dos bens e ativos do devedor, subscrito por profissional legalmente habilitado ou empresa especializada.

Nessa circunstância, não poderia o processo de recuperação judicial gerenciar bens e valores de titularidade da União, distribuindo-os com primazia a outros credores, para viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da sua fonte produtora, dos créditos trabalhistas e dos interesses dos credores, por meio do produto do ilícito.

Isso porque, consoante já delineado, a preservação da empresa, da sua função social e o estímulo à atividade econômica devem ser promovidos por meio das fontes financeiras e margens de lucro derivadas de atividades lícitas da empresa e não daqueles valores fruto de atividades ilícitas, amplamente desincentivadas e combatidas pela comunidade internacional e pelo ordenamento jurídico pátrio.

Sob a mesma lógica de respeitar o direito de propriedade de terceiros, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça também tem decidido que não cabe ao juízo da recuperação judicial decidir sobre a busca e apreensão de produtos agropecuários de terceiros, depositados em armazém de empresa submetida aos efeitos da recuperação, devendo-se, pois, haver restituição desses produtos nos termos determinados pela vara cível competente para processar e julgar a ação de depósito:

PROCESSUAL CIVIL. CONFLITO POSITIVO. AÇÃO DE DEPÓSITO. CABIMENTO. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. ARMAZÉM GERAL. DEPÓSITO CLÁSSICO DE BENS FUNGÍVEIS. CONTRATO TÍPICO. DIFERENCIAÇÃO DO DEPÓSITO ATÍPICO. GRÃOS DE SOJA. RESTITUIÇÃO. NÃO SUBMISSÃO AO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DO FORO DE ELEIÇÃO CONTRATUAL. DECRETO 1.102/1903. LEI 9.300/2000. DECRETO 3.855/2001. CÓDIGO CIVIL, ARTS. 627 E SEGUINTES. LEI 11.101/2005. SÚMULA 480/STJ. (...) 7. Constituindo, por conseguinte, bem de terceiro cuja propriedade não se transferiu para a empresa em recuperação judicial, não se submete ao regime previsto na Lei 11.101/2005. Incidência do enunciado 480 da Súmula do STJ. 8. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 5ª Vara Cível de São Paulo. O presente caso é análogo, devendo-se estabelecer a mesma solução jurídica acerca da fixação do juízo competente para o julgamento da presente demanda. Ante o exposto, conheço do presente conflito para declarar competente o JUÍZO DE DIREITO DA 8A VARA CÍVEL DE UBERLÂNDIA - MG para processar e julgar a ação de depósito n.º 0788488-56.2015.8.13.0702 movida por ABC INDÚSTRIA E COMÉRCIO S/A ABC INCO e, via de consequência, determinar quaisquer medidas relacionadas aos bens ali discutidos. Comuniquem-se as autoridades judiciárias em conflito. Intimem-se. Brasília (DF), 23 de maio de 2017. MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO Relator.22

A jurisprudência dos Tribunais de Justiça estaduais também tem respeitado o direito de terceiros na esfera da recuperação judicial e da falência, tais como no caso em que a 26ª Câmara Cível do TJ/RJ manteve decisão que determinou à empresa a devolução de quantia debitada indevidamente de cliente, cuja fundamentação é de oportuna descrição:

É cediço que estando a empresa em recuperação judicial, qualquer pagamento devido aos credores há de observar o que definido pela vontade do devedor e credores em um ambiente de amplo debate. Do contrário, estar-se-á conferindo tratamento diferenciado a um determinado credor em detrimento dos demais que a ele se equiparam, sendo certo que o meio legal para tanto gravita em torno da habilitação, seja tempestiva ou não, cuja previsão encontra amparo no art. 7º da Lei nº. 11.101/05.

Contudo, o caso em comento revela uma situação excepcional que, como tal, merece igualmente um tratamento diferenciado, porque está reconhecido e confessado pela recuperanda que o valor de R$ 16.721,85 (dezesseis mil e setecentos e vinte e um reais e oitenta e cinco centavos) foi indevidamente subtraído da esfera jurídica do agravado. O erro “sistêmico” confessado pela empresa submetida à reorganização empresarial, justifica a manutenção da decisão, sob pena de um mal maior que poderá comprometer a saúde financeira do credor que não contribuiu para a situação revelada pelos autos.23

Analogamente, o perfazimento dos efeitos do confisco decorre de subtração indevida de valores da esfera jurídica do Poder Público lesado, reconhecido pela sentença que determinou o confisco ou pelo ato negocial que antecipou tais efeitos.

Outra situação em que se determina a pronta restituição dos valores, sem que esses sejam integrados à massa falida, é o do patrimônio de afetação. Consoante o art. 31-F da Lei n.º 4.591/1964, com a nova redação do art. 53 da Lei n.º 10.931/2004, “os efeitos da decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador não atingem os patrimônios de afetação constituídos, não integrando a massa concursal o terreno, as acessões e demais bens, direitos creditórios, obrigações e encargos objeto da incorporação”. Essa consequência se deve à previsão de que os bens e direitos submetidos ao regime de afetação “manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes”.

Em situação análoga, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu o direito de restituição das parcelas pagas a promitentes compradores de unidade imobiliária cuja responsável pela construção foi declarada falida:

RECURSO ESPECIAL - ARTS. 1.062 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 E 1º DO DECRETO-LEI 86.649/81 - AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO E DE OPOSIÇÃO DE EMBARGOS DE DECLARAÇÃO PARA TAL DESIDERATO - INCIDÊNCIA, NO PONTO, DOS ENUNCIADOS NS. 282 E 356 DA SÚMULA/STF - AÇÃO ORDINÁRIA DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS - PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE UNIDADE IMOBILIÁRIA EM CONSTRUÇÃO FIRMADA COM A FALIDA ENCOL, COM PARTICIPAÇÃO DA SUCESSORA CARVALHO HOSKEN - RESILIÇÃO UNILATERAL DO CONTRATO POR INICIATIVA DA CARVALHO HOSKEN E ALIENAÇÃO DE IMÓVEL A TERCEIRO - DEVOLUÇÃO INTEGRAL DAS PARCELAS PAGAS PELO PROMITENTE COMPRADOR E RESTITUIÇÃO DO STATUS QUO ANTE - NECESSIDADE - PRECEDENTES DO STJ - RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. I - As matérias relativas aos arts. 1.062 do Código Civil de 1.916 e 1º do Decreto-lei n. 86.649/81 não foram objeto de debate pelo v. acórdão recorrido, e tampouco foram opostos embargos de declaração objetivando a manifestação da Corte estadual sobre tais temas, estando, assim, ausente o necessário prequestionamento, incidindo, no ponto, o teor dos Enunciados ns. 282 e 356 da Súmula/STF; II - A devolução integral dos valores pagos em decorrência de rescisão de contrato de promessa de compra e venda de unidade imobiliária em construção firmada com a falida ENCOL, com participação da ora recorrente CARVALHO HOSKEN, somente não é admitida na hipótese de desistência ou inadimplência do adquirente do imóvel restituído à construtora que, como ressarcimento das despesas administrativas efetuadas, faz jus à apropriação de determinado percentual do valor pago; III - Na espécie, entretanto, o autor/recorrente efetuou o pagamento integral do imóvel antes mesmo do prazo estabelecido para a sua entrega e a inadimplência foi da ora recorrente CARVALHO HOSKEN, que resiliu unilateralmente a promessa de compra e venda do imóvel e alienou o bem a terceiro, sem que nada tenha recebido o autor/recorrido; IV - Desse modo, é um contra-senso que a recorrente, que assumiu expressamente as obrigações da incorporadora ENCOL, passando a ser tanto incorporadora quanto construtora, retenha parte das parcelas pagas, porquanto foi ela quem deu causa à rescisão. Precedentes. V - Recurso especial improvido.24

À luz dos princípios e dos objetivos da recuperação judicial, a jurisprudência do STJ vem reconhecendo a competência do juízo da recuperação judicial apenas para qualquer medida que possa afetar o patrimônio das empresas recuperandas, dada sua universalidade e indivisibilidade. Registre-se, que tal força atrativa só se dá a partir da decisão de processamento da recuperação25 e perdura até o encerramento do processo. 

Sobre o tema, o Ministro Castro Meira assim se pronunciou: 

No caso, o destino do patrimônio da empresa-ré em processo de recuperação judicial não pode ser atingido por decisões prolatadas por juízo diverso daquele da Recuperação, sob pena de prejudicar o funcionamento do estabelecimento, comprometendo o sucesso de seu plano de recuperação, ainda que ultrapassado o prazo legal de suspensão constante do § 4º do art. 6º, da Lei n. 11.101/05, sob pena de violar o princípio da continuidade da empresa.26

No mesmo sentido, o Ministro Luis Felipe Salomão afirmou que:

[...] se encontra sedimentada no âmbito da Segunda Seção desta Corte, que reconhece ser o Juízo onde se processa a recuperação judicial o competente para julgar as causas em que estejam envolvidos interesses e bens da empresa recuperanda, inclusive para o prosseguimento dos atos de execução, ainda que o crédito seja anterior ao deferimento da recuperação judicial, devendo, portanto, se submeter ao plano, sob pena de inviabilizar a recuperação.27 

O próprio STF asseverou: 

Destarte, instala-se no processo de falência o denominado juízo universal, que atrai todas as ações que possam afetar o patrimônio da empresa em processo de quebra ou de recuperação judicial. Cuida-se, em suma, do juízo competente para conhecer e julgar todas as demandas que exijam uma decisão uniforme e vinculação erga omnes.28

Essa força atrativa, porém, não é a mesma da falência. Ela deve ser interpretada de forma mais restrita, isto é, o juízo recuperacional será competente para decidir sobre os temas que possam afetar o patrimônio do devedor em recuperação, vale dizer, apenas os bens que pertençam ao próprio devedor em recuperação. É também por esse fundamento que o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 480, cujo enunciado dispõe que “o juízo da recuperação judicial não é competente para decidir sobre a constrição de bens não abrangidos pelo plano de recuperação da empresa”, no sentido de que patrimônios distintos daqueles das sociedades recuperandas não devem ser geridos pelo juízo universal. Assim, produtos de atos ilícitos que não pertencem ao devedor em recuperação não se submeterão ao processo de recuperação, nem ao juízo da recuperação judicial.

Em casos de ações de despejo (bem pertencente ao locador e não ao devedor em recuperação judicial), o STJ vem reconhecendo reiteradas vezes a ausência de competência do juízo da recuperação, afirmando que “a ação de despejo movida pelo proprietário locador em face de sociedade empresária em recuperação judicial não se submete à competência do Juízo recuperacional”.29 A mesma lógica se aplica ao produto dos atos ilícitos praticados pelo devedor, pois tal produto não lhe pertence. Trata-se de bem de propriedade da União, em razão do confisco reconhecido por sentença ou pelo ato negocial que antecipou tais efeitos.

Não fazendo parte da recuperação judicial, a restituição dos valores que constituam produto do ilícito poderia se dar tanto pelo procedimento previsto nos artigos 85 a 93 da Lei 11.101/2005 quanto por meio do instituto processual dos embargos de terceiros, regulados pelo Código de Processo Civil de 2015, nos seus artigos 674 ou 681: “Art. 93. Nos casos em que não couber pedido de restituição, fica resguardado o direito dos credores de propor embargos de terceiros, observada a legislação processual civil”.

Tal como na recuperação judicial, a restituição do produto do ilícitocabível no processo de falência consoante se explicitará na seção seguinte.

2.5 Efeitos sobre a falência

O caráter coletivo da falência significa que ela abrange todos os credores do falido e também que ela deve abranger todos os seus bens. Para satisfazer coletivamente os credores, os bens do devedor devem ser reunidos e se submeter ao processo de falência. Todos os bens atuais do falido, ou que venham a ser adquiridos no curso da falência, ficam sujeitos ao procedimento falimentar.

Como o patrimônio do devedor responde por suas obrigações (CPC/2015 – art. 789) e na falência deverá se tentar pagar todas as obrigações do falido, a consequência natural é que todo o seu patrimônio deverá ser submetido ao processo de falência. Contudo, a referida regra admite que a lei estabeleça restrições, isto é, determinados bens podem ser excluídos do alcance dos credores. Nesse sentido, o art. 832 do CPC/2015 estabelece que “Não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis”.

Diante disso, o efeito da submissão de todos os bens do falido ao processo de falência também admitirá exceções, isto é, não se submetem ao processo os bens absolutamente impenhoráveis, nem os patrimônios de afetação. Logo, não sofrerão os efeitos da falência, os bens que não pertençam ao falido, mesmo que estejam no seu poder.

Em situação similar, no caso da decretação da falência, o legislador resguardou o direito do proprietário de bens e valores que tenham sido arrecadados no processo de falência ou que se encontre em poder do devedor na data da decretação da falência ao prever a hipótese do pedido de restituição, regulado nos artigos 85 a 93 da Lei 11.101/2005: “Art. 85. O proprietário de bem arrecadado no processo de falência ou que se encontre em poder do devedor na data da decretação da falência poderá pedir sua restituição”.

Extrai-se da sua leitura que o único requisito desse artigo é a existência de direito de propriedade dos valores arrecadados indevidamente ou que estejam em poder do falido no momento da decretação de falência. Trata-se de prerrogativa jurídica do titular do direito de propriedade para defendê-lo no âmbito do processo de falência, ao qual faz jus o ente público lesado pelos atos de corrupção, relativamente ao produto do ilícito, por meio de ajustes da massa falida.

O principal objetivo a ser buscado no processo falimentar é a satisfação do maior número possível de credores dentro de uma ordem legal de preferências. Nessa busca, estão inseridas as medidas de arrecadação, as ações de responsabilidade e mesmo as declarações de ineficácia, com os ajustes impostos pelos pedidos de restituição e pelos embargos de terceiros.

O pedido de restituição deve ser analisado não como um fato isolado, decorrente de uma situação eventual, mas como um fato que torna anômala a consistência patrimonial do ativo do devedor, podendo mesmo levá-lo à inconsistência. Vale dizer que a verdade jurídica sobre a titulação dos bens do ativo do devedor não pode ser decorrente, tão-somente, da sua mera presunção pela simples detenção, por parte do devedor, no instante da decretação da quebra. Por isso mesmo há que se depurar, ou permitir depurado o seja, o patrimônio do devedor, de valores que não lhe pertencem e que possam estar à mostra como se dele fossem, no ato arrecadatório ou em seu processamento, e que se alienados acarretarão valor à massa, falaciosamente realizado. (ALMEIDA, 2007, p. 379) (grifos acrescidos).

Concentra-se, em ambos os casos, a discussão relativa à retirada, da massa falida, de tudo aquilo que não é de titulação do devedor, de modo a evitar sua realizacão a non domino (ALMEIDA, 2007, p. 380) (grifos acrescidos).

Nesse sentido, foi editada a Súmula 417 do Supremo Tribunal Federal, que dispõe que “pode ser objeto de restituição, na falência, dinheiro em poder do falido, recebido em nome de outrem, ou do qual, por lei ou contrato, não tivesse ele a disponibilidade”. Se a partir da condenação, o condenado não tem a disponibilidade desses valores, conforme já esclarecido, eles não se submetem ao processo de falência.

Ademais, não se pode opor ao direito de restituição o fato de o produto do ilícito se constituir de valores e não de bens individualmente identificados, conforme ponderações já esclarecidas acima.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consoante exposto, o eficaz combate a delitos econômicos e patrimoniais, como a corrupção, exigiram do ordenamento jurídico a previsão de hipóteses de confisco do produto do ilícito, procedendo-se, a partir da condenação ou do ato que antecipe seus efeitos, à transferência de propriedade ao Poder Público lesado pelas condutas antijurídicas. A partir daí, cessam os poderes de disposição do infrator sobre os bens e valores confiscados, passando para o novo proprietário a prerrogativa de reavê-los de quem o detenha indevidamente.

Conclui-se, portanto, que empresas cuja parcela do patrimônio tenha sido confiscada pela prática de atos ilícitos não podem incluir esses valores no plano de recuperação judicial ou na massa falida, visto que não são mais de sua propriedade. Caso isso ocorra por equívoco, o Poder Público possui a prerrogativa de ser restituído, com total primazia com relação aos demais credores da empresa infratora, porquanto tal prerrogativa decorre do seu direito de propriedade e não de direito de crédito.

O pressuposto central da Lei nº 11.101/2005 é o de que as entidades empresariais que se submetem a esses processos atendem à sua função social no desempenho de atividades econômicas lícitas, razão porque seria desejável para a sociedade a sua preservação. Nesse sentido, não parecem ser os institutos da Lei nº 11.101/2005 subterfúgios para elidir ou dilargar no tempo ou impedir a restituição do produto de atividades ilícitas desenvolvidas pelas empresas.

Sob o ponto de vista prático, caso a recuperação judicial e a falência passem a ser meios pelos quais são descumpridas as medidas voltadas ao combate de ilícitos relacionados à corrupção, produzir-se-á incoerências no sistema jurídico assim como incentivos distorcidos à continuidade das práticas corruptivas. Nessa situação, vislumbra-se como um dos benefícios indiretos da posição ora alcançada o incentivo para que os agentes que se relacionem ou transacionem com empresas exijam a adoção de regras e mecanismos de compliance suficientes para mitigar o risco de que as empresas estejam envolvidas em esquemas de corrupção.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Thiago Bottino do. Direito Penal Econômico, 2015. Disponível em: <https://direitorio.fgv.br/sites/direitorio.fgv.br/files/u100/direito_penal_economico_2015-1.pdf>. Acesso em: 9 out. 2018.

BECK, Ulrich. Sociedade global, sociedade de riscos. Tradução Peter Naumann. Caderno da Escola Legislativa, n. 4. p. 51-81, jan./jun. 1998.

BECKER, Gary Stanley. Crime and punishment: an economic approach. Journal of Political Econo-my, 1992.

COELHO, Fábio Ulhoa. Acordo de leniência e a recuperação judicial da corruptora. In: MAFFOI-LETTI, Emanuelle Urbano; CEREZETTI, Sheila C. Neder. Dez anos da Lei nº 11.101/2005: Estudos sobre a Lei de Recuperação e Falência. São Paulo: Almedina, 2015.

CONCI, Luiz Guilherme Arcaro. O controle de convencionalidade como parte do constitucionalismo transnacional fundado na pessoa humana. Revista de Processo, v. 29, n. 232, p. 363-390, 2014.

CORRÊA JÚNIOR, Alceu. Confisco penal: alternativa à prisão e aplicação aos delitos econômicos. São Paulo: IBCCRIM, 2006.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago. Lei Anticorrupção comentada. Belo Hori-zonte: Fórum, 2017.

FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino. O controle de convencionalidade da Lei da Ficha Limpa. Di-reitos Políticos e Inelegibilidades. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

MAZZUOLI, Valério; MARINONI, Luiz Guilherme. Controle de convencionalidade. Brasília: Ga-zeta Jurídica, 2013.

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito penal: parte geral: arts. 1º a 120 do Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. Vol. IV.

SALOMÃO FILHO, Calixto Recuperação de empresas e interesse social. In: SOUZA JÚNIOR, Francisco Sátiro de; PITOMBO, Antônio Sérgio de A. de Moraes (Coords.). Comentários à lei de re-cuperação de empresas e falência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro de; PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência Lei 11.101/2005. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

Recebido em: 05.09.2018

Aceito em: 09.11.2018

 

1 É o caso da UTC <https://www.conjur.com.br/2017-ago-18/justica-sao-paulo-def>. ZUOLI; MARINONI, 2013; FERREIRA, 2015; CONCI, 2014) estabelece o en-tendimento, adotado pelo Supremo Tribunal Federal a partir do RE 466.343, de que a legis-lação interna do Estado signatário de tratados e convenções internacionais deve ser confor-mada às disposições e aos objetivos constantes desses tratados e convenções, o ordenamen-to jurídico brasileiro não pode prescindir de adotar suas determinações. Essa adequação envolve não somente as já previstas hipóteses de confisco do produto dos ilícitos relaciona-dos à corrupção (na Lei Anticorrupção de 2013 e na Lei de Improbidade Administrativa ) (DI PIETRO, 2017. p. 248), mas também a harmonização das leis anteriores à internaliza-ção com as diretrizes internacionais, como é o caso da Lei da Recuperação Judicial de 2005.

2 Nesse sentido, confira-se a notícia disponível em: <https://jota.info/justica/lava-jato-causa-efeito-domino-em-recuperacao-judicial-03112016>. Acesso em: 10 nov. 2018.

3 Conceituam-se delitos econômicos como aqueles que visam ao lucro ilícito – seja lucro em termos econômicos, sejam vantagens em termos comerciais e de competitividade em um mercado. Thiago Bottino do Amaral sintetiza que “O crime econômico provoca danos não individualizáveis, irreparáveis, incontroláveis e cuja percepção social é diferenciada. O objetivo é o lucro econômico, uma vantagem comercial ou a dominação de um mercado. As possibilidades e facilidades oferecidas pelo avanço tecnológico ensejam o aparecimento de condutas praticadas em grande escala por organizações complexas e de grande potencialidade lesiva. As condutas praticadas são de difícil identificação. Em alguns casos, o lucro ilícitodisfarçado e regularizado (“lavado”) no sistema financeiro e demais instâncias formais, adquirindo aparência de legalidade, o que dificulta a apuração e punição dos delitos” (AMARAL, 2015, p. 8).

4 “O que a metáfora permite ao legislador em optar pelos termos “perda ou perdimento de bens” nada mais é do que o antigo “confisco” que remonta a Roma Antiga e foi mantido em algumas constituições brasileiras e proibido em outras” (PEREIRA, 2017, p. 227).

5 “Quanto ao produto do delito, trata-se daquilo que foi diretamente conquistado com a prática delituosa, tal como o dinheiro subtraído do banco ou a coleção de armas retirada de um colecionador. Além do produto, é possível que o delinquente converta em outros bens ou valores o que auferiu por conta do crime, dando margem ao confisco. Nesse caso, fala-se no proveito do crime. Ex.: o apartamento adquirido com o dinheiro roubado do estabelecimento bancário. Em ambas as situações, a perda é automática, decorrente de mera sentença condenatória em face de quem possuía o produto ou proveito, independentemente de ter o julgador se manifestado a respeito (art. 91, II, b, CP)(NUCCI, 2017, p. 1028).

6 “O combate eficaz a essa criminalidade organizada e globalizada exige a inutilização do lucro ilícito, mormente quando este lucro se apresenta com aparência de legalidade, pois este lucro alimenta e estimula as organizações criminosas, possibilita o surgimento de novos delinquentes atraídos pelo enriquecimento fácil e também pode gerar corrupção na estrutura do Estado. Entretanto, conforme ressaltado anteriormente, o direito penal clássico revelasse insuficiente para responder de forma eficaz a este tipo de criminalidade, mormente no que diz respeito ao sistema de penas tradicionalmente utilizado, ou seja, fundamentado exclusivamente na privação da liberdade na imposição de multa. Nesta sociedade de risco, a pena de confisco de bens apresenta-se como medida penal adequada e útil, além de muito eficaz no combate ao lucro ilícito derivado de atividades criminosas” (CORRÊA JÚNIOR, 2006, p. 24).

7 Tal percepção resta clara no trecho do voto de relatoria do Ministro Luiz Fux, no Recurso Extraordinário nº 638491, em que dispôs sobre o confisco no âmbito de crimes relacionados ao tráfico de drogas: “O confisco no direito comparado é instituto de grande aplicabilidade nos delitos de repercussão econômica, sob o viés de que “o crime não deve compensar”, perspectiva adotada não só pelo constituinte brasileiro, mas também pela República Federativa do Brasil que internalizou diversos diplomas internacionais que visam reprimir severamente o tráfico de drogas (RE 638491, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 17/05/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-186 DIVULG 22-08-2017 PUBLIC 23-08-2017).

8 Sobre o tema, especificamente no caso da corrupção, Fábio Ulhoa ressalta que “quem fornece os recursos para a corrupção e que mais se beneficia com os resultados dela é a pessoa jurídica, em geral uma sociedade empresária” (COELHO, 2015, p. 292).

9 A pena de perda de bens e valores, prevista na Constituição Federal (CF/1988) e regulamentada pela Lei 9.714/1998, surge nesse cenário como alternativa penal adequada a algumas hipóteses de crimes econômicos e patrimoniais, além daqueles praticados por pessoas jurídicas, entre outros, tendo em vista que impõe uma consequência jurídica que pode ser individualizada, proporcional e de natureza semelhante à do bem jurídico lesado. Além disso, a aplicação da pena mencionada também incentiva o cumprimento das regras sociais na medida em que anula o benefício auferido com a conduta ilícita e, ainda, impõe uma perda patrimonial correspondente à vantagem pretendida(CORRÊA JÚNIOR, 2006, p. 33).

10 O artigo 91 do Código Penal previu o perdimento do produto do crime como efeitos genéricos extrapenais da condenação: “Art. 91 - São efeitos da condenação: II – a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé: [...] b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso”. Com base nesse dispositivo, o confisco produz efeitos imediata e automaticamente após a prolação da sentença condenatória que reconheça a autoria e materialidade de todo e qualquer crime previsto no ordenamento jurídico brasileiro, ou a partir do perfazimento de qualquer ato negocial do Estado que antecipe legalmente os efeitos da sentença, independentemente de serem declarados explicitamente. Tais efeitos se mantêm mesmo com a extinção da punibilidade pela abolitio criminis, incidindo inclusive sobre os valores equivalentes ao que inicialmente constituía o produto do ilícito. Ressalta-se que a discussão acerca da possibilidade da ou não da execução da pena em segunda instância limita-se às penas privativas de liberdade, não se aplicando aos efeitos da condenação.

11 O Código Penal prevê a possibilidade de que o confisco recaia não somente sobre bens, mas também sobre valores pecuniários, até porque o Código passou a permitir, a partir da Lei nº 12.694, de 2012, a decretação da perda dos “valores equivalentes ao produto ou proveito do crime quando estes não forem encontrados ou quando se localizarem no exterior”, nos termos do seu artigo 91, § 1o.

12 O Código Penal: “Art. 91 [...] § 2º Na hipótese do § 1º, as medidas assecuratórias previstas na legislação processual poderão abranger bens ou valores equivalentes do investigado ou acusado para posterior decretação de perda” (Incluído pela Lei nº 12.694, de 2012).

13 Importa a fonte ilícita dos recursos a serem confiscados. A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção prevê: “Artigo 31 [...] 4. Quando esse produto de delito se tiver transformado ou convertido parcialmente ou totalmente em outros bens, estes serão objeto das medidas aplicáveis a tal produto de acordo com o presente Artigo. 5. Quando esse produto de delito se houver mesclado com bens adquiridos de fontes lícitas, esses bens serão objeto de confisco até o valor estimado do produto mesclado, sem menosprezo de qualquer outra faculdade de embargo preventivo ou apreensão”.

14 Constituição Federal: “Art. 5º [...] XLV – nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”.

15 Também conhecida como Convenção de Mérida, essa Convenção foi internalizada no Brasil por intermédio do Decreto 5.687, de 31 de janeiro de 2006. Nesse sentido, confiram-se os considerandos da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/d5687.htm>.

16 Desde a Constituição de 1946 até a atual ordem constitucional há previsão dessa relativização do direito de propriedade (art. 5º, XXIII, 170, 182, § 2º e art. 186).

17 “Não se pode olvidar, ainda, que a liberdade é direito fundamental do ser humano e, no entanto, sempre foi alvo de intervenção penal, inexistindo motivos para justificar a inviolabilidade do direito à propriedade em caso de infração penal. Parece razoável afirmar que a propriedade, não obstante deva ser objeto de proteção e garantia jurídica, não pode ter garantia maior ou mais rigorosa que a liberdade ou a vida. Entretanto, conforme já mencionado, a liberdade continua sendo alvo de intervenção penal do Estado por meio da pena privativa de liberdade [...]” (CORRÊA JÚNIOR, 2006. p. 195).

18 “Obviamente o direito de propriedade, especialmente quando reveste a forma empresária, deve suportar restrições peculiares com que se conformará, de acordo com as exigências do bem comum, e sujeitar­se­á a obrigações que a limitem, de molde a reprimir a sua utilização abusiva (Código Civil, art. 1.228, § 1º)” (PEREIRA, 2017. p. 108).

19 Sobre o tema, Caio Mário descreve tendência à fragmentação do direito real de propriedade: “Confrontando o direito de propriedade na sua feição romana com as concepções dia a dia ocorrentes, verifica­se que se esboça com toda nitidez uma tendência que se concretiza em doutrina atual, distanciando as noções hodiernas dos conceitos clássicos e salientando notória linha de evolução para um regime dominial invencivelmente diverso do que foi no passado. Em meio a tais tendências, o direito moderno conhece um novo tipo dominial, o da propriedade empresarial. Com a concentração do poder econômico, tornou­se necessário imprimir ao domínio maior flexibilidade, que lhe permita adaptar­se a condições de mais fácil mobilização dos capitais, diminuição de encargos tributários etc. Por outro lado, certos empreendimentos requerem disponibilidades enormes. Em consequência de tudo isto, institui­se a empresa como organização econômica, dentro da qual se fragmentam os direitos de cada um, e, em vez de o investidor apresentar­se como titular do domínio sobre bens de valor imenso, desloca­se para a empresa o ius dominii, dispersando­se por um sem­número de sócios, ou mais comumente acionistas, os direitos expressos em títulos representativos de uma espécie de propriedade usufrutuária. Desta sorte, a propriedade não deixa de ser um direito subjetivo e, sem perder as suas características individuais, fragmenta­se a seu turno. A empresa, administrada por um grupo controlador, é proprietária do acervo de bens, às vezes de valor imensurável, enquanto os indivíduos que concorreram para a formação dos recursos financeiros têm os seus direitos restritos ao gozo de vantagens, ou reduzidos à percepção de certa rentabilidade (espécie de usufruto). A propriedade se multiplica valorativamente, enquanto se concentra na empresa; e ao mesmo tempo se difunde na aptidão de fruição” (PEREIRA, 2017, p. 91-92).

20 A hipótese de acesso direto ao patrimônio dos sócios depende de haver desconsideração da personalidade jurídica.

21 Tribunal Regional Federal da 4ª Região – 13ª Vara Federal da Seção Judiciário de Curitiba. Ação Penal Nº 5000553-66.2017.4.04.7000, Sentença, p. 113.

22 STJ - CC: 147377 RS 2016/0172052-0, Relator: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data de Publicação: DJ 25/05/2017.

23 Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro - Processo: 0046584-33.2017.8.19.0000. Disponível em: <http://www4.tjrj.jus.br/ejud/ConsultaProcesso.aspx?N=201700257237##LS>.

24 STJ - REsp: 1087447 RJ 2008/0191494-0, Relator: Ministro MASSAMI UYEDA, Data de Julgamento: 18/03/2010, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/04/2010.

25 STJ – AgRg no CC 117.216/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 12-6-2013, DJe 17-6-2013.

26 STJ – CC 79.170/SP, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 10-9-2008, DJe 19-9-2008.

27 STJ – CC 106.768/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 23-9-2009, DJe 2-10-2009. No mesmo sentido, STJ – AgRg nos EDcl no CC 99.548/SP, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 23-2-2011, DJe 10-3-2011.

28 STF – RE 583.955, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 28-5-2009, REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-162 DIVULG. 27-8-2009 PUBLIC. 28-8-2009 EMENT. VOL-02371-09 PP-01.716 RTJ VOL-00212- PP-00570.

29 STJ - CC 148.803/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 26/04/2017, DJe 02/05/2017.



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ISSN: 2178-2466