A ZONA DO NÃO-SER DO DIREITO INTERNACIONAL: OS POVOS NEGROS E A REVOLUÇÃO HAITIANA*1
THE ZONE OF NON-BEING OF INTERNATIONAL LAW: BLACK PEOPLES AND THE HAITIAN REVOLUTION
Karine de Souza SilvaI
Luiza Lazzaron Noronha PerottoII
I Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Programas de Pós-Graduação em Relações Intenacionais e em Direito da UFSC, Florianópolis, SC, Brasil. (Doutora em Direito). E-mail: karine.silva@ufsc.br
II Pierre Mendes France Université Grenoble-Alpes (UGA), França. (Mestre em Direito). E-mail: luizalnoronha@gmail.com
Sumário: Considerações iniciais. 1 Ressignificando e visibilizando a Revolução Haitiana. 2 O Haiti entre a guerra e o ocaso. 3 O Haiti, as historiografias não contadas e as subjetividades omitidas pelo Direito Internacional Público. Considerações finais. Referências.
Resumo: O objetivo deste artigo é defender a necessidade de incluir o estudo da Revolução Haitiana na esfera do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Esta pesquisa é original porque demonstra, por meio do método do estudo de caso e da utilização das epistemologias pós-coloniais e decoloniais, que os povos negros têm sido vítimas de um embargo político, historiográfico e epistêmico por parte do Direito Internacional Público (DIP), fato que favorece a continuidade do racismo epistemológico e praxeológico que exclui esses coletivos dos mecanismos de produção de conhecimento e os destitui de capacidade de agência nas estruturas de saber e poder. Em última instância, afirma-se que as subjetividades negras têm sido condenadas à zona do “não-ser” pelo mainstream do DIP, que se encontra totalmente acomodado aos arranjos imperialistas que invisibilizam e desqualificam as narrativas e subjetividades dos povos não-brancos e não-ocidentais.
Palavras-chave: Revolução haitiana. Povos negros. Racismo epistemológico. Direito Internacional Público.
Abstract: This article aims to defend the need of inclusion of the study of the Haitian Revolution in the sphere of International Human Rights Law. The originality of this research relies on its study case methodology, by using Post-colonial and Decolonial approaches to show the historical marginalization of black peoples as victims of a political, historical and epistemological denial played by the Public International Law. This favours the continuity of an epistemic and praxeological violence, excluding this group from knowledge production and undermining their agency on the world-system power structure. Lastly, it is argued that black subjectivity has been condemned to live in the zone of non-being by the Public International Law mainstream. The Public International Law will be shown as rearranged under imperialistic desires and aspirations, promoting an epistemic violence by disqualifying and making invisible the narratives and the subjectivity coming from non-Western and non-white peoples.
Keywords: Haitian Revolution. Black peoples. Epistemological racism. Public International Law.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O Haiti, país que no presente lidera o ranking dos mais pobres do Ocidente, já foi a colônia mais próspera do mundo durante o período colonial. Até o início do século XIX, a denominada ilha de Saint Domingue era conhecida como “Pérola das Antilhas”, já que sozinha era responsável pelo fornecimento de cerca de 75% do açúcar e 60% do café consumidos na Europa.
Entretanto, a gloriosa reputação e o colossal nível de produtividade da colônia francesa foram estabelecidos à custa do sistema de escravidão mais perverso já visto. Mesmo para os padrões dos colonialismos sangrentos da época, as brutalidades cometidas pelos franceses contra os negros escravizados em Saint Domingue eram aterrorizantes.
Diante da barbárie generalizada produzida pelos paladinos do Iluminismo, a partir da década de 1790 os movimentos de resistência das populações subjugadas se intensificaram e expandiram as reivindicações por direitos de igualdade e liberdade. Assim, deu-se início à Revolução Haitiana, considerada a revolta de escravizados mais bem-sucedida do mundo, que derrotou o exército napoleônico – o maior e mais temido exército da época – conquistou a independência, instituiu a primeira república negra e o primeiro Estado moderno fundado e governado por negros.
Como resposta, a França, amparada pelas demais potências colonizadoras, iniciou um processo de asfixiamento da sua ex-colônia e impôs ao Haiti o pagamento de uma indenização leonina pelas “perdas” que os colonizadores tiveram com a Revolução e a independência, como condição sine qua non para o reconhecimento diplomático do novo Estado e para o restabelecimento das relações políticas e econômicas. O chamado “Débito da Independência” foi pago pelo Haiti durante mais de cem anos, quitado somente em 1947 – momento em que já se discutiam as reparações devidas às vítimas do Holocausto da Alemanha nazista. Diante dos fatos que comprovaram o enriquecimento ilícito da França, em 2003, o então presidente do Haiti, Jean Bertrand Aristide, reivindicou abertamente a restituição dos valores pagos a título de indenização aos franceses, estimando a quantia atualizada em mais de US$ 21 bilhões.
Entretanto, tal episódio, embora revestido de notada importância para as populações da vasta maioria do globo, tem sido sistematicamente ocultado dos domínios de interesses e pesquisa das abordagens mainstream do Direito Internacional, que não só despreza a existência da Revolução, como também têm, assiduamente ao longo dos últimos cinco séculos, negado a historicidade, a subjetividade, a memória e a agência das populações não-brancas e não-ocidentais.
Este artigo objetiva ressaltar a necessidade de se incorporar a Revolução Haitiana como marco fundamental na trajetória de consolidação e evolução do campo de estudos do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Esta pesquisa é original porque demonstra, por meio do método do estudo de caso e da utilização das epistemias pós-colonais e decoloniais, que os povos negros têm sido continuadamente vítimas de um embargo político, historiográfico e epistêmico por parte do Direito Internacional Público, fato que favorece a continuidade do racismo epistemológico e praxeológico que exclui esses coletivos dos mecanismos de produção de conhecimento e os destitui de capacidade de agência nas estruturas de saber e poder do sistema-mundo. Em última instância, afirma-se que as subjetividades negras têm sido condenadas à zona do “não-ser”2 pelo mainstream do DIP.
Para a realização do objetivo, a argumentação do artigo se desenvolve da seguinte forma: primeiramente, são expostos o contexto e os fatos que propiciaram a eclosão da Revolução Haitiana; o tópico seguinte apresenta o significado da Revolução e as estratégias utilizadas pelas potências colonizadoras para silenciar o episódio e para isolar o Haiti das relações internacionais; por fim, é evidenciado como o Direito Internacional Público se acomoda aos arranjos imperialistas de modo extremamente historicida, uma vez que invisibiliza e desqualifica as narrativas e as subjetividades dos povos não-brancos e não-ocidentais.
1 RESSIGNIFICANDO E VISIBILIZANDO A REVOLUÇÃO HAITIANA
O Haiti, atualmente considerado o país mais pobre do hemisfério ocidental e um dos mais pobres do mundo,3 até o início do século XIX era conhecido como a “Pérola das Antilhas” já que se constituía a colônia mais rica e lucrativa do mundo.
Em 1697, após o extermínio da população nativa pelo império espanhol, a França adquiriu parte da chamada ilha de Hispaniola, nomeando-a Saint-Domingue (atual Haiti) e construiu ali uma poderosa economia baseada na agricultura de latifúndio voltada à exportação. Sua reputação como a Pérola das Antilhas era merecida: à época, Saint-Domingue ocupava um posto elevado entre as lideranças mundiais de culturas comerciais como açúcar, café e algodão, sendo a principal fornecedora dos franceses, chegando a ultrapassar as exportações feitas pelas Treze Colônias americanas para a Grã-Bretanha (FARMER, 2006; PHILLIPS, 2008). Em menos de cem anos de colonização francesa, em 1789, cerca de 75% (setenta e cinco por cento) do açúcar disponível no mercado mundial e 60% (sessenta por cento) do café importado pelas grandes potências da época, França e Grã-Bretanha, eram fornecidos unicamente por Saint-Domingue. Entretanto, a glória e a prosperidade foram inteiramente construídas à custa da exploração brutal dos povos negros submetidos ao regime da escravidão (PHILLIPS, 2008).
Entre 1697 e 1804, durante o período do domínio francês, mais de 800.000 (oitocentos mil) indivíduos provenientes da África Ocidental foram escravizados para servir nas plantações de Saint-Domingue, cifra que representava mais de um terço do tráfico transatlântico de africanos.4 Por volta de 1790, a população total da colônia era estimada em 520.000 (quinhentos e vinte mil) habitantes, sendo composta de pelo menos 420.000 (quatrocentos e vinte mil) escravizados africanos (LIBRARY OF CONGRESS, 2006; MOCOMBE, 2010; PHILLIPS 2008). Entretanto, Mark Danner (2010, p. 1, tradução nossa) ressalta que “[a]té mesmo para os padrões da época, as condições nos campos de cana de Saint-Domingue eram aterrorizantes e brutais; os negros morriam jovens e aos montes; tinham poucos filhos”. Para compensar tamanha perda de mão de obra, a introdução de novos indivíduos trazidos da África crescia à medida que as exportações de açúcar e café ascendiam. As doenças, o excesso de trabalho, a quantidade inópia de alimentos providos aos trabalhadores e o sadismo dos superintendentes respondia pela maioria das mortes (KEE, 2015; PHILLIPS, 2008). Como resultado da carnificina perpetrada, a população de escravizados se renovava quase que completamente a cada vinte anos (LIBRARY OF CONGRESS, 2006).5
Vale ressaltar que os diversos povos trazidos forçadamente da África (dentre eles achantes, iorubas, zulus, congos, bacongos, etc.), “não eram outra coisa além de negros” para os colonizadores europeus. Significa dizer que esses seres humanos “foram despojados de suas próprias e singulares identidades históricas” e, nas Américas, foram inseridos em uma “nova identidade racial, colonial e negativa, [que] implicava a espoliação de seu lugar na história da produção cultural da humanidade. Daí em diante, não seriam nada mais que raças inferiores, capazes somente de produzir culturas inferiores”. Não bastasse, quando chegaram à América, foi-lhes apagado o passado, já não eram povos africanos, ao contrário, não passavam de “escravos”, ou seja, eram coisificados, inferiorizados sob a égide da matrix colonial de poder que introduziu diversas formas de violências baseadas na concepção de raça e que alcançavam os planos materiais e não materiais, os aspectos físicos e intelectuais. Assim, “o padrão de poder baseado na colonialidade implicava também um padrão cognitivo, uma nova perspectiva de conhecimento dentro da qual o não europeu era o passado e desse modo inferior, sempre primitivo” (QUIJANO, 2000, p. 127).
Sobre essa divisão ou estratificação social baseada na noção de raça, Aníbal Quijano (2000, p. 117), explica que
os colonizadores codificaram como cor os traços fenotípicos dos colonizados e a assumiram como a característica emblemática da categoria racial. Essa codificação foi inicialmente estabelecida, provavelmente, na área britânico-americana. Os negros eram ali não apenas os explorados mais importantes, já que a parte principal da economia dependia de seu trabalho. Eram, sobretudo, a raça colonizada mais importante [...]. Em consequência, os dominantes chamaram a si mesmos de brancos. Na América, a ideia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista. A posterior constituição da Europa como nova identidade depois da América e a expansão do colonialismo europeu ao resto do mundo conduziram à elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com ela à elaboração teórica da ideia de raça como naturalização dessas relações coloniais de dominação entre europeus e não-europeus.
Para Fanon, o colonialismo criou uma zona do não-ser, “uma região extraordinariamente estéril e árida”, habitada pelos povos negros. Essa hierarquização imperial nega a humanidade do sujeito e o condena à invisibilidade. Assim, para o pensamento colonizador, “o negro não é um homem” (FANON, 2008, p. 26); portanto, não é um ser humano. Nessa zona, é permitida toda e qualquer brutalidade contra esse ser.
Conforme descrito na literatura, os negros eram castigados com requintes de barbárie na ilha de Saint-Domingue. Paul Farmer et al (2004, p . 311, tradução nossa) dão exemplos que ilustram os níveis de crueldade: eles eram afogados em sacos, crucificados em tábuas, enterrados vivos, esmagados em morteiros; eram forçados a comer excrementos humanos; eram jogados em caldeiras ferventes de açúcar; homens e mulheres eram colocados dentro de barris tachonados de espigas e derrubados pelas montanhas para dentro dos abismos; eram entregues a cães treinados a comerem carne humana.
Nora Wittmann (2012) assevera as diferenças gritantes entre as relações de servidão conhecidas pelas etnias africanas antes da chegada dos europeus e o regime de escravidão baseado na ideia de raça. No primeiro caso, os mestres não tinham direito sobre a vida dos servos ou escravizados, e respondiam por homicídio caso um de seus escravos morresse. Além disso, era garantido aos cativos o direito de propriedade, sob certas condições, além do casamento e outras liberdades individuais. Tais comportamentos contrastam fortemente com o regime racista de escravidão inventado pelos europeus:
por olhar um homem branco aos olhos, a pessoa escravizada poderia ter seus olhos cegados com ferros quentes. Por falar em defesa de uma esposa ou mulher, um homem poderia ter a mão direita cortada. A pessoa escravizada podia ser assada sobre fogo lentamente, deixada para morrer depois de ter as pernas e os braços quebrados, podia ser oleada e engraxada e depois incendiada pendurada numa árvore ou assassinada lentamente enquanto o ‘dono’ do escravo dilacerava o peito ou os órgãos genitais da pessoa escravizada (ASANTE, 2003, p. 7, tradução nossa).
Ou seja, os europeus racializaram a escravidão, já que historicamente nunca houve vinculação entre a cor da pele e escravização. Além disso, transformaram seres humanos em meros objetos comercializáveis para aferição de lucros em escalas magnânimas que alimentaram o mercantilismo (FRAGA, 2016). O processo de coisificação era acompanhado por práticas cruéis de submissão.
As reações às barbáries cometidas não tardaram a ocorrer. No último quarto do século XVIII, houve uma escalada de tensões na colônia de Saint-Domingue, que reivindicavam direitos e poder para as classes subalternizados, que impulsionaram movimentos de resistência negra que se inspiraram nos ideais de igualdade, liberdade e fraternidade propalados pela Revolução Francesa (GEGGUS, 2002).
Na década de 1790, a Revolução Francesa e a consequente dissolução da dinastia dos Bourbon abriram espaço para o ethos igualitário que se espalhou no além-mar. Em razão da recusa da elite branca de Saint-Domingue em cumprir as normas que surgiam da Assembleia Nacional de Paris (como o sufrágio aos negros livres e a todos que pagavam impostos), a ordem civil foi extremamente abalada pelas numerosas revoltas de negros e mulatos e a ilha passou a sofrer também novas intervenções militares, inclusive espanhola e britânica, nas tentativas de sufocar as rebeliões e tomar o poder da colônia (LIBRARY OF CONGRESS, 2006).
Assim, no quadro das rebeliões que tomavam a colônia de Saint-Domingue, instaurou-se um movimento de negros e mulatos que se uniram para lutar pela independência. A chamada Revolução Haitiana iniciou-se nos primórdios da década de 1790 e em 1794 o movimento já havia conquistado a emancipação da colônia por meio de uma aliança com os colonos franceses republicanos. A derrota final do exército imperial francês se deu em 1804 – após quase uma década de massacres e conflitos sangrentos –, sendo considerada a data da conquista da independência (DUBOIS, 2004).
Durante o período de 1791 a 1800, sob a liderança de Toussaint L’Ouverture,6 o movimento pela independência haitiana conseguiu vencer os franceses, os espanhóis e os ingleses. Em meados da década de 1790, Toussaint se tornou comandante-chefe de todas as forças rebeldes em Saint-Domingue e, a partir desta posição, desafiou a França ao tentar criar um Estado autônomo, livre da influência europeia – apesar de dizer-se um aliado francês desde 1794, quando foi anunciada a abolição da escravatura em todas as colônias francesas pelo Decreto de 4 de fevereiro. Em 1801, Toussaint comandava a ilha de Hispaniola, após ter conquistado o porto espanhol de Santo Domingo e proclamou-se governador de Saint-Domingue7 (GEGGUS, 2002; MOCOMBE, 2010).
É necessário lembrar que durante esse e todo o período de batalhas travadas pela independência,
[o]s franceses arquitetaram uma estratégia tão simples quanto fria: o extermínio de toda a população masculina adulta do Haiti. Raciocinando que um escravo rebelde nunca poderia ser efetivamente re-tornado à escravidão, o plano exigia o repovoamento da ilha com novos escravos africanos e reto-mando a produção e exportação agrícola. O resultado foi uma campanha genocida que viu os dois la-dos buscando a aniquilação total do outro através de massacres, táticas de terra queimada e atos de escalada de terror (PHILLIPS, 2008, p. 3, tradução nossa).
Anthony Phillips (2008, p. 3, tradução nossa) ilustra o triunfo das forças rebeldes:
a vitória decisiva do Haiti aconteceu em novembro de 1803. Uma força expedicionária francesa, lide-rada pelo cunhado de Napoleão, o general LeClerc, na maior frota naval que já partiu para as Améri-cas, foi derrotada na batalha de Vertieres. Dos 33.000 soldados franceses sob o comando de LeClerc, 30.000 morreram de doença tropical ou ação inimiga. Perdas francesas no Haiti no período 1801-1803 ultrapassaram os 52.000. Durante o mesmo período, as forças haitianas também resistiram com suces-so às invasões de forças britânicas e espanholas que tentavam capitalizar a revolução.
Assim, após longos treze anos de luta contra o colonialismo e a escravidão, os rebeldes vitoriosos de-clararam a República do Haiti em 1o de janeiro de 1804. No mesmo dia, Jean-Jaques Dessalines re-nomeou a ilha com seu nome original taino – Haiti ou Ayiti (terra montanhosa) – em memória aos Tainos, povo nativo massacrado pelos espanhóis no início da colonização. Para Geggus (2002, p. 27, tradução nossa), “o novo nome do país significava, acima de tudo, uma ruptura simbólica com a Eu-ropa” e a partir dali, “todos os brancos foram doravante proibidos de possuir terras no Haiti”. Em números, “o custo humano da independência do Haiti chegou a 150.000 mortos, 40% da população. Somente 170.000 dos 425.000 [ex-]escravos permaneceram saudáveis o suficiente para trabalhar e contribuir para a reconstrução da economia do novo Estado” (PHILLIPS, 2008, p. 3, tradução nossa).
O Haiti entrou para a história ao se tornar a primeira república negra independente no mundo – o pri-meiro Estado moderno fundado e governado por negros –, o único Estado fundado e sustentado to-talmente por indivíduos antes escravizados, que conquistaram sua liberdade pela luta armada, o pri-meiro país do mundo moderno a abolir a escravidão e a segunda república independente das Améri-cas (BUCK-MORSS, 2009; DANNER, 2010; MOCOMBE 2010). Outro reconhecimento importan-te, considerado por Marc Ferro (2005, p. 253, tradução nossa) é de que desde a independência do Haiti, conduzida por Toussaint L’Ouverture, “as ilhas do Caribe forneceram os principais líderes afro-americanos do movimento pan-africano, como Marcus Garvey, George Padmore, o Padre Dubois; e do lado francês, Aimé Césaire, Frantz Fanon, e ainda outros engrandecedores da negritude”.
Os eventos até então relatados demonstram o protagonismo dos/as negros/as na trajetória de desenvolvimento e evolução do Direito Internacional dos Direitos Humanos, especialmente por meio da Revolução Haitiana, episódio que tem sido silenciado na historiografia do Direito Internacional Público.
É digno de nota que não somente a Revolução se revestiu de relevância histórica, – por ter demonstrado capacidade de agência e de vitória de indivíduos ex-escravizados –, mas a Constituição aprovada em 1805, na sequência da independência, foi um instrumento de notado valor jurídico internacional uma vez que consagrou o princípio da autodeterminação dos povos, da soberania e independência nacional (art. 1o), sancionou a abolição da escravatura de forma pioneira (art. 2o), aclamou os direitos de igualdade perante a lei entre os haitianos (arts. 3o e 4o), de propriedade (art. 6o), liberdade religiosa (art. 50) e de culto (art. 51). Entretanto, a Carta Magna não tem sido objeto de estudo e de consideração pela academia.
A Revolução Haitiana precisa ser consagrada como um marco significativo com relação às exigências de igualdade e liberdade que ganharam força na última década do século XVIII. Neste contexto, Siba N. Grovogui (2006, p. 186, tradução nossa, grifo nosso) argumenta que:
os não-europeus também têm um papel histórico contingente na apelação por maiores ordens morais além dos imaginários sociopolíticos disponíveis como padrões para medir os atos sociais e as relações políticas. Esses apelos foram baseados em classes mais amplas de códigos morais e em formulações múltiplas de ética que procuravam enobrecer a existência humana através de padrões executórios semelhantes aos direitos humanos. Esses códigos morais e suas expressões éticas constituem enunciações alternativas dos que podem ser chamados de preceitos ou institutos de direitos humanos. Eles podem ser a base de uma teoria ou perspectiva pós-colonial sobre direitos humanos.
Grovogui advoga que “a Revolução no Haiti não só expandiu “o domínio reivindicado dos direitos humanos” para os escravizados, como também introduziu noções igualmente exigentes de direitos humanos”. Ainda segundo o autor, “esses domínios de direitos podem estar fora das preocupações e agendas políticas de muitos teóricos e ativistas de direitos humanos; mas são contemporâneos para as práticas e instituições ocidentais”.
Além disso, em sua obra clássica The Black Jacobins, o historiador e ativista caribenho C. L. R. James (1963), identifica a “potente fertilização cruzada” das Revoluções Haitiana e Francesa. Igualmente, Michel-Rolph Trouillot (1995) argumenta a impossibilidade de se tratar as duas revoluções em separado. Seguindo o raciocínio de C.L.R James, Laurent Dubois (2004) explica que as Revoluções se iniciaram concomitantemente, a partir de uma elite colonial que passou a desafiar a autoridade imperial francesa em Saint-Domingue, mas com a proeminente resistência negra que se levantava, logo se tornou uma batalha contra a desigualdade racial e, em seguida, sobre a própria existência da escravidão.
Os negros que se rebelaram em Saint-Domingue, já em 1791 organizaram uma força militar e política assustadora. Dois anos depois, os republicanos franceses se aliaram aos insurgentes negros na luta pela independência da colônia. Esse movimento pré-Revolução permitiu que muitos escravizados fossem libertos e treinados pelos oficiais republicanos franceses que buscavam mais autonomia em relação à metrópole, já que os republicanos ofereciam aos escravizados
liberdade em troca de apoio militar, o que rapidamente levou à abolição da escravidão na colônia. A decisão feita em Saint Domingues foi ratificada em Paris em 1794: os escravos de todas as colônias francesas tornaram-se cidadãos da República Francesa.8 Esses eventos representaram a transformação política mais radical da ‘Era das Revoluções’, que se estendeu entre os anos 1770 e 1830. Eles também foram a expressão mais concreta da ideia de que os direitos proclamados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 na França eram realmente universais (DUBOIS, 2004, p. 33, tradução nossa).
Siba Grovogui (2006) afirma que, com a Revolução Haitiana foi possível desracializar a agência política e desconsiderar a ontologia pós-Iluminista, a fim de reescrever sua própria história fora da opressão racial, substituindo uma das violências da Modernidade que é a supressão dos fatos históricos. Além disso, a Constituição Haitiana pós-revolução garantia igualdade social entre os indivíduos e igualdade no acesso à propriedade (DUBOIS; GAFFIELD; ACACIA, 2013). “Nestes e outros aspectos, a Revolução Haitiana era parte integrante dos debates políticos modernos sobre a qualidade moral da existência moderna e a necessidade de separar as esferas pública e privada de vida” e, além disso, os haitianos convencionaram “normas obrigatórias que protegessem as faculdades e as capacidades dos seres humanos. Ao assumirem-se serem humanos, (...) desafiaram as noções reinantes de humanidade, de Homem e Razão, ou seu acesso a faculdades e capacidades humanas” (GROVOGUI, 2006, p. 187, tradução nossa).
As obras dos intelectuais africanos e caribenhos, como Siba N. Grovogui, C. L. R James e Michel-Rophin Trouillot, produzidas no século XX, trouxeram esta nova percepção da era das Revoluções, que coloca a resistência negra no cerne das transformações que marcaram a virada do século XIX. Ainda assim, a historiografia oficial do Direito Internacional Público tem suprimido ou subestimado as contribuições cruciais dos/as negros/as na luta por igualdade e liberdade.
Nesse sentido, o próximo tópico expõe a trajetória das ações das potências europeias de asfixiar o Haiti política e economicamente no seu pós-independência e, por conseguinte, de apagar a memória e as narrativas revolucionárias como forma de penalizar o país por ter se insurgido contra os imperialismos.
2 O HAITI ENTRE A GLÓRIA E O OCASO
O triunfo do povo haitiano não foi aceito pelas elites dominadoras da época e os efeitos da Revolução no mundo foram imediatos e drásticos uma vez que as estruturas de poder existentes foram fortemente desafiadas. A notícia da vitória dos ex-escravizados se espalhou rapidamente pelo Caribe e posteriormente pelas Américas, deixando os colonizadores alarmados e temerosos de que revoluções do mesmo cunho se repetissem nas demais colônias – “a perspectiva de rebelião de escravos aterrorizava cada elite escravocrata e agora seus próprios escravos inquietos tinham um exemplo sangrento para imitar” (PHILLIPS, 2008, p. 4, tradução nossa).
A preocupação das metrópoles decorria do fato de que o Haiti passara a ser reconhecido como um grande precursor e fomentador de ideais e rebeliões antiescravistas e anticoloniais.9 Inspiradas pelos acontecimentos de Saint-Domingue, muitas insurreições foram iniciadas, sendo notáveis “as conspirações organizadas por negros livres na Venezuela (1795), Havana (1812) e Charleston (1822)”10 (GUGGES, 2002, p. 28, tradução nossa). De acordo com Marc Ferro (2005, p. 111, tradução nossa), “[n]as Antilhas francesas, no norte do Brasil e em Porto Rico, o número de revoltas aumentou após a independência do Haiti”.
Desse modo, os franceses e britânicos começaram a planejar uma resposta à altura como meio de retaliar o novo país. Afinal, a economia escravista encontrava-se em pleno apogeu e a república recém-fundada era um símbolo da liberdade negra, uma ameaça que necessitava ser controlada pelos colonizadores.
Logo na sequência da independência, o Haiti começou a amargurar um isolamento político severo e o boicote econômico orquestrado pelas potências da época. Entre as principais estratégias utilizadas para degolar a economia e a diplomacia de Porto Príncipe estavam a interdição de abertura de portos estrangeiros aos navios haitianos e as ameaças constantes na costa haitiana por marinhas hostis, principalmente francesas e britânicas; e por fim, atesta-se que nenhuma nação estrangeira concedeu reconhecimento à independência do Haiti por mais de duas décadas após a Revolução (HEIN et al, 2005).
A França somente reconheceu a independência do Haiti no ano de 1825, após a negociação que conduziu ao pagamento de indenização pela ex-colônia em decorrência das “perdas sofridas” com a independência.11 (DANNER, 2010; PHILLIPS, 2008). Não bastasse a hostilidade das nações vizinhas – ou melhor, dos colonizadores que as governavam –, internamente, o Haiti se encontrava arrasado social e economicamente. Os longos anos de revolta renderam enormes perdas populacionais, especialmente de homens,12 bem como a devastação da economia, visto que as cidades estavam em ruínas e as plantações foram queimadas e destruídas. Ademais, a nação estava sob constante ameaça francesa de novas invasões para recuperar a colônia perdida (GEGGUS, 2002).
Até a década de 1820 o projeto pareceu se sustentar e a população – majoritariamente jovem e feminina – cresceu rapidamente. Por outro lado, é importante lembrar que no plano político, a luta pelo poder se acirrava entre as diferentes frentes que tentavam ascender ao governo, e dificilmente seria diferente, uma vez que a formação do Estado do Haiti foi marcada pela herança de violência infligida pelos colonizadores por séculos e, assim, as barbáries da colonização deixaram feridas graves que se reproduziram nessas lutas pelo poder político nos séculos XIX e XX (GROVOGUI, 2006; TROUILLOT, 1982; MOCOMBE, 2010).
O presidente Jean-Pierre Boyer defendeu vigorosamente a soberania haitiana durante as décadas que governou o país, combinando reforço militar e negociação com as potências europeias na tentativa de obter reconhecimento e reavivar a economia, prejudicada pelos embargos impostos pelos demais Estados e a queda do preço do açúcar (FARMER 2006; DANNER, 2010; GEGGUS, 2002). Entretanto, a situação do país se agravava e a economia nacional não podia mais sustentar tamanha austeridade política, econômica e diplomática das nações vizinhas e grandes potências. Nesse contexto, em 17 de abril de 1825, Boyer, apoiado pela elite, buscou a reaproximação com o rei Charles X da França na esperança de tirar o país da crise (VIEIRA; ASSUNÇÃO, 2007).
A França, que por sua vez não abandonou suas reivindicações à sua antiga colônia até 1825, somente passou a dialogar com o Haiti quando o governo local concordou em discutir os termos de um acordo para indenizar os colonos expulsos de seu território. Esse acordo impôs ao país caribenho uma dívida absurda e indevida, tornando-se um dos principais fatores que retardaram seu crescimento nas décadas (e séculos) seguintes – juntamente com as concessões então conferidas aos comerciantes franceses, que acabaram por transferir ainda mais poder econômico para mãos estrangeiras. Nesse cenário, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos iniciaram relações comerciais com o novo Estado, mas somente reconheceram a república independente após abolirem a escravidão, pois então o Haiti deixara de ser uma ameaça (GEGGUS, 2002).
O chamado “Débito da Independência” causou ao Haiti sérios danos econômicos e também foi fundamental para que a França mantivesse uma relação de poder de cunho neocolonial com sua ex-colônia. A França exigiu uma indenização monetária aos colonos expulsos em troca de reconhecimento diplomático e restabelecimento das relações econômicas. A subscrição do acordo é vista como uma tentativa desesperada do governo haitiano de sair do isolamento e reaquecer a economia e, mais do que isso, alega-se que o Tratado é legalmente viciado em decorrência da coação. Isso porque a pressão pela assinatura do pacto ia além da necessidade de sair do isolamento diplomático: uma flotilha de navios de guerra francesa foi enviada à costa haitiana, com ordens para invadir e bloquear o país caso as negociações fracassassem (PHILLIPS, 2008).
Assim que foi noticiada a imposição do Débito, uma equipe de contadores e atuários franceses desembarcou no Haiti a fim de calcular o valor dos bens a serem indenizados, a saber: (i) todas as terras cultiváveis ou não; (ii) todos os bens físicos (ferramentas para plantação e colheita, materiais domésticos, armas, charretes, sacos, etc.); (iii) os mais de 400.000 (quatrocentos mil) indivíduos, anteriormente escravizados (incluindo mulatos); (iv) animais; e (v) todas as outras propriedades e serviços comerciais (MOCOMBE, 2010). Além da obrigação de conceder um desconto de 50% (cinquenta por cento) no valor dos produtos haitianos vendidos para a França, a indenização supostamente devida ficou estabelecida em 150.000.000 (cento e cinquenta milhões) de francos, a ser liquidada em cinco parcelas anuais.13 Destaca-se que, nos termos do acordo, os escravizados foram reduzidos a bens móveis ou semoventes como produtos passíveis de serem valorados (WITTMANN, 2012).
Como era de se esperar que o Haiti não tivesse condições de arcar com o valor exorbitante, o acordo previa que, em caso de necessidade de contrair empréstimo para quitação, o Estado recorreria exclusivamente aos bancos franceses – o país então incorria num duplo débito (FORSDICK, 2013). Formalmente, a dívida da independência começou com o primeiro empréstimo do Haiti ao banco francês Ternaux Grandolpe et Cie, que incluía um principal de 30 (trinta) milhões de francos (primeira parcela), valor sobre o qual o banco automaticamente taxou 6 (seis) milhões de francos. Os 24 (vinte e quatro) milhões de francos que restaram após a taxação bancária, foram levados diretamente do banco para o Tesouro francês – sem sair de Paris (PHILLIPS, 2008; GAILLARD-POURCHET, 1990).
No Haiti, ano após ano, a situação se agravava e os pagamentos restavam atrasados. O governo impôs uma série de políticas fiscais na tentativa de aumentar a receita e liquidar o débito – inclusive um imposto direto para a dívida de independência e a nacionalização da dívida. Apesar dos esforços, um novo empréstimo foi contraído para pagar a segunda parcela, desta vez, financiado pelo banco francês Lafitte Rothschild Lapanonze – o que demonstra o planejamento cauteloso dos banqueiros em harmonizar seus interesses entre si (ARISTIDE, 2003). Na sequência, “o Haiti novamente tomou emprestados 30 milhões de francos, mas concordou em amortizar em trinta e cinco parcelas anuais de 6,5 milhões de francos – um reembolso total de 227 milhões de francos durante a vida do empréstimo” (PHILLIPS, 2008, p. 5, tradução nossa).
A partir daí, a recém-reconhecida república já não tinha condições de cumprir os pagamentos programados: a dívida da independência havia sugado todo tesouro haitiano e a economia do país – que ainda não se recuperara da guerra e sofria as consequências do tempo que passara isolada dos mercados de exportação – não gerava receita suficiente para suportar o déficit. As tentativas de fazê-lo por superprodução e tributação sobre a produção agrícola reforçaram uma agricultura não diversificada e incapaz de suprir ou financiar as necessidades básicas da população (PHILLIPS, 2008; GAILLARD, 1990; MADIOU, 1989).
A crise haitiana era tamanha que incitou a renegociação da dívida. Em 1834, o governo francês se preparava para as negociações e encomendou ao escritório de advocacia Dalloz, Delagrange, Hennequin, Dupin, Jeune, e outros, a revisão do acordo original. Como resultado da consulta,14 o escritório entendeu ilegal a transação original e responsabilizou a própria governança francesa pelas perdas dos colonos, bem como a considerou culpada por entrar em um acordo que sabia que o Haiti não poderia cumprir. Não surpreende que o relatório fosse praticamente ignorado pelas autoridades e em 1838, os países assinaram o (ironicamente nomeado) Traité d’Amitié (Tratado da Amizade). O saldo remanescente foi calculado em 60 (sessenta) milhões de francos e, novamente, os empréstimos necessários deveriam ser contraídos com bancos franceses a taxas exorbitantes (HEINL et al, 2005; PHILLIPS, 2008).
O pagamento da última parcela da dívida principal se deu em 1883 (GAILLARD, 2003). Entretanto, “[p]ara financiar os pagamentos de indenização e os empréstimos antecipados, o Haiti tomou mais de 166 milhões de francos entre 1875 e 1910. Mais de metade desse dinheiro foi devolvido aos bancos credores sob a rubrica de comissões, taxas e juros” (PHILLIPS, 2008, p. 6, tradução nossa). A última remessa monetária realizada do Haiti para a França se deu apenas em 1947, quando o governo haitiano finalmente pagou todos os juros, taxas e pormenores que constavam nos acordos, afinal, os empréstimos feitos ao Haiti contavam com o dobro de juros do mercado à época (MOCOMBE, 2010).
Consoante exposto, somente na metade do século XX o Haiti pode finalmente ver-se livre do Débito da Independência. As consequências da instauração dessa dívida foram vivenciadas pelos haitianos não apenas nas questões econômicas, mas igualmente na política do país – que foi marcada pela ingerência externa nos séculos que seguiram a independência e que permanece até hoje.
Para Aníbal Quijano (2000, p. 134), a Revolução Haitiana “foi um caso excepcional onde se produziu, no mesmo movimento histórico, uma revolução nacional, social e racial. Quer dizer, uma descolonização real e global do poder”, que só foi desafiada ou, nos termos do autor, derrotada “pelas repetidas intervenções militares por parte dos Estados Unidos”.
Como pode ser constatado, o Débito da Independência do Haiti atravessou o século XIX, sendo remido apenas na metade do século XX, quando o país já lidava com a ocupação americana de seu território. Atualmente, após duzentos anos de independência haitiana, o legado deixado pelas sistemáticas violações da soberania do país foi uma economia subdesenvolvida, a população carente e desprovida de qualidade de vida e um cenário político perpetuamente instável.
É possível dizer que juntamente com a assinatura do acordo com a França, o Haiti assinou uma sentença de destruição econômico-social. Para Paul Mocombe (2010, p. 35, tradução nossa) o Débito da Independência haitiana marcou o início “[d]a destruição sistemática da República do Haiti. O governo francês sangrou a nação e transformou-a num Estado arruinado. Foi projetada uma exploração sem misericórdia, que garantiu o colapso da economia e da sociedade haitianas”. Isso porque durante o todo o período que o Haiti pagou a dívida (entre 1826 e 1947), quase 70% (setenta por cento) das rendas provenientes do comércio exterior do país foram entregues aos franceses para liquidação do Débito (MOCOMBE, 2010).
O governo haitiano acreditara que o pacto possibilitaria a reinserção comercial e o reconhecimento internacional, entretanto, tudo o que conseguiu foi a perda de autonomia para construir a infraestrutura nacional com base nos seus próprios parâmetros. Os status do Haiti depois do acordo foi descrito como “uma província francesa contribuindo muito, custando nada” (JOACHIM, 1975, p. 369, tradução nossa). Os matizes neocoloniais do arranjo ficaram evidentes também pela insistência dos franceses em se referenciarem ao Haiti apenas sob o nome de Saint-Domingue, mesmo após a firma do Tratado que prometia reconhecimento da independência (FORSDICK, 2013).
Apesar das contínuas intervenções externas que asseguravam estabilizar e desenvolver o país, a realidade do Haiti hoje é preocupante: a nação é a mais pobre das Américas e uma das mais pobres do mundo, dependente do auxílio externo para alimentar a própria população e sem muita perspectiva de melhora no que concerne ao desenvolvimento econômico e obtenção de real autonomia de governo. O resultado final das tentativas reiteradamente fracassadas de integração na economia global, que se iniciou no pós-revolução e permanecem até hoje como resquícios das políticas colonial e neocolonial implementadas, sobretudo, pela França e na sequência pelos Estados Unidos, é a miséria do Haiti.
No atual momento histórico, é incrível considerar que a primeira Revolução antiescravismo do mundo e que ocorreu em um tempo histórico paralelo às Revoluções francesa e americana não ocupa um lugar nuclear na historicidade do Direito Internacional e é totalmente excluída das análises e estudos sobre democracia e Direitos Humanos. Seguramente, tal ausência não é porque a Revolução Haitiana não era conhecida em seu tempo e, por isso, é necessário questionar as razões de tal absentismo.
No próximo tópico será exposto o não-lugar da Revolução Haitiana e das narrativas dos povos negros na historiografia do Direito Internacional.
3 O HAITI, AS HISTORIOGRAFIAS NÃO CONTADAS E AS SUBJETIVIDADES OMITIDAS PELO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO
Anthony P. Maingot (2013, p. 115) reputa a Revolução Haitiana como “um dos momentos épicos da história do hemisfério ocidental”, já que não apenas promoveu a quebra da economia de plantation mais rica da época, mas também dos próprios fundamentos do racismo – “aquela grotesca ideia econômico-filosófica que justificava a escravidão” –, que representa os negros como sujeitos inferiores, irracionais, destituídos de capacidade de razão e de agência. Entretanto, século após século as macronarrativas dos vencedores têm insistido em minimizar ou omitir completamente o peso, a relevância e o significado histórico do episódio.
Tal ausência é produto de uma “amnésia intencional” (KRISHNA, 2006, p. 89), que serve para isolar as atrocidades cometidas pelos poderes ocidentais e para mascarar estruturas racializadas do sistema. No campo do Direito Internacional, o continuado desprezo sobre questões de raça, escravidão e colonialismos omite as manifestações do imperialismo que propaga a ilusória noção de igualdade entre os povos, ao mesmo tempo em que perpetua as relações de dominação Norte/Sul e, sobretudo, blinda os ex-colonizadores de assumir responsabilidades de reparar as vítimas em decorrência da escravidão e do colonialismo. Ou seja, o “esquecimento” é uma estratégia para negar as capacidades de agência dos povos não-europeus e para “apagar a violência, o genocídio e o roubo que marcaram o encontro entre “o resto” e o Ocidente na era pós-colombiana” (KRISHNA, 2006, p. 89) e que se repetiram durante a expansão do denominado sistema internacional.
Siba Grovogui (1996, p. 43-44; 63) assinala que a arquitetura do moderno Direito Internacional foi desenhada por um número reduzido de Estados “não como a base ética de uma ordem universal, mas como um meio para a sua hegemonia” e para tal transformou este ramo do Direito num campo “composto de princípios e normas moralmente deficientes e não-relacionados”. Esta deformação permitiu a aplicação seletiva de disposições jurídicas para europeus e não-europeus, fazendo com que a Europa pudesse minar “a subjetividade e a soberania do Outro na ordem internacional”.
Nesse contexto, os teóricos mainstream ocidentais têm excluído as alteridades não-europeias e não-brancas da formulação e das práxis do DIP, o que reforça as hierarquias do sistema e impede a aplicação do princípio da igualdade no tocante à participação nas esferas de poder. Ainda de acordo com o autor:
a partir de meados do século XVI, a relação entre as potências europeias e os não-europeus foi construída segundo os princípios gêmeos de negar ou suprimir a subjetividade deste último. Esses princípios se manifestaram em dois desenvolvimentos relacionados: a diminuição da capacidade jurídica do outro, condição necessária para a hegemonia ocidental; e a instituição da extraterritorialidade, ou seja, a aplicação de leis ocidentais fora da Europa... embora o Ocidente tenha proclamado a universalidade dos princípios do Direito Internacional (por exemplo, liberdade, livre-comércio e direitos de propriedade), a práxis ocidental excluiu o outro da participação igual na ordem internacional. Essa práxis também gerou jurisprudência, isto é doutrinas legais e linguagens jurídicas. A formulação dessas doutrinas e a distração dessas linguagens refletiram as sensibilidades históricas e o ethos de seus tempos. A jurisprudência ocidental moderna endossou ou tolerou, mas, em ambos os casos, perpetuou a exclusão violenta do outro (GROVOGUI, 1996, p. 43-44).
De fato, a exclusão e a hierarquização são a base constitutiva do Imperialismo. O DIP, por seu turno, tem minimizado e/ou apagado as tonalidades imperiais da arquitetura da sociedade internacional. Assim, é necessário entender o Imperialismo como elemento “fundamental para as origens, formas, as bases normativas das Organizações Internacionais e do Direito Internacional, para a prevalência das desigualdades nas relações de poder entre os Estados [...] ex-colonizados e as antigas metrópoles” (JONES, 2006, p. 04). Nesse sentido, afirma Jones que “esta naturalização serve para despolitizar e des-historicizar as desigualdades atuais, deste modo, negando a realidade e os efeitos do imperialismo na era neocolonial” (JONES, 2006, p. 9-10).
Por tudo isso, urge ultrapassar os limites da Modernidade eurocêntrica racial e hierarquizada que atua fortemente no DIP. Para tal é necessário, primeiramente, reconhecer a herança colonial, hierárquica e desigual do sistema-mundo e, sobretudo, que o “legado europeu para a maior parte do mundo tem sido o de autoritarismo, pilhagem, racismo e, em significantes casos, massacre e genocídio” (JONES, 2006, p. 4). Nesse sentido, as teorias do mainstream pecam ao passo que fantasiaram uma origem mitológica das relações internacionais que “envolve a dupla manobra de silenciar ou negar a historicidade de povos não-ocidentais e idealizar a distorcida história do Ocidente – mais especificamente, da Europa”.
Do mesmo modo, é fundamental refutar os discursos que transformaram a expansão colonial brutal como parte de um projeto civilizatório e iluminista Ocidental. Segundo Sandra Halperin, (2006, p. 58), “a noção de modernidade europeia foi produzida como parte de um projeto hegemônico”. Assim, consentir com essa versão que transforma o outro, não-europeu, a vítima em bárbaro que necessita ser domesticado, significa dar aquiescência “à continuação daquele projeto (hegemônico)” (HALPERIN, 2006, p. 58).
A materialização do projeto hegemônico de poder também se verifica na agenda do DIP que reflete as demandas, os interesses de poder do Ocidente, e transforma os acontecimentos nas sociedades coloniais como derivativos do que ocorre na Europa (CAPAN, 2017). Ao centrar o ponto de partida desse ramo do Direito no sistema de Estados europeus que nasceu da Paz de Westfália, impõe-se ao restante do globo um Direito “Internacional” extremamente limitado em seu alcance geográfico, afinal, para esta maioria a principal forma delineadora das Relações Internacionais não foi a paz na Europa, mas a brutalidade da colonização. Sem dúvidas, o Imperialismo, em sua longa extensão histórica e todas as suas dimensões – econômicas, políticas, institucionais, culturais e legais – é muito mais significativo para o atual sistema internacional do que os desenvolvimentos políticos internos da Europa. Mesmo assim, a forma eurocêntrica de pensar o Direito Internacional consolidou-se como um padrão segundo o qual o “resto do mundo” é medido e comparado, ao mesmo tempo em que esse pensamento clássico europeu exclui de suas análises o próprio contexto histórico colonial no qual está inserido e foi desenvolvido.
O conceito de soberania derivado de Westfália permitiu que as nações europeias se reconhecessem mutuamente como soberanas e, a partir daí, dividissem o “resto do mundo” entre si, para a grande empreitada da missão civilizadora. Significa dizer que os períodos de desenvolvimento do Direito Internacional coincidem com aqueles em que as engrenagens imperialistas e racistas europeus estavam a pleno vapor, com a era das grandes navegações, da escravidão, da colonização. Parece no mínimo irônico que “uma disciplina que afirma ser internacional, de relevância para todos os povos e Estados, trace suas origens modernas, sem constrangimento, em um lugar e momento no coração e no auge do imperialismo”, afinal, o imperialismo, em última análise, é “a antítese do reconhecimento internacional universal” (JONES, 2006, p. 2, tradução nossa).
A retórica da “missão civilizadora” europeia sustentou esse projeto através da “negação sistemática da humanidade do outro” (FANON, 1968) e da imposição de uma diferença cultural imaginada entre os europeus e os não-europeus, os civilizados e os não civilizados e, atualmente, os desenvolvidos e os não desenvolvidos. A “dinâmica da diferença” (ANGHIE, 2004) moldou o conceito de soberania e, mais amplamente, do Direito Internacional e das Instituições. Esse processo de exclusão, que B. S. Chimni (2007) chamou de “alienação do Direito Internacional dos povos do terceiro mundo”, fez das entidades do Sul Global objetos – e não sujeitos – do Direito Internacional, em que pese estarem submetidas a ele graças à teoria jusnaturalista (igualmente europeia).
As teses jusnaturalistas e, posteriormente, do positivismo jurídico, que se desenvolveram na Europa paralelamente à era colonial serviram de sustento para o imperialismo europeu. As primeiras transferiram os indivíduos para uma única ordem jurídica natural, vinculando-os obrigatoriamente – ou naturalmente – ao Direito Internacional, enquanto que as segundas permitiram determinar as condições e definir os critérios para que indivíduos, grupos ou nação pudessem tornar-se sujeitos soberanos de Direito Internacional.15
Importante ressaltar a incoerência das potências europeias na interpretação do Direito Internacional que elas mesmas conceberam. Se, por um lado, a descolonização libertou do jugo colonial os povos explorados, tornando-os soberanos, por outro os inseriu direta e obrigatoriamente nesse sistema de ordem internacional concebido pela Europa, o qual exclui e desempodera completamente o colonizado. Mesmo que, para a doutrina europeia, um Estado só esteja vinculado a cumprir com as obrigações que expressamente tenha concordado (essência da doutrina da soberania), os Estados formados a partir de ex-colônias não tiveram a escolha em participar nesse “contrato” que fez nascer o Direito Internacional, no entanto estão vinculados a ele. Diferentemente, quando o Sul Global se une para instaurar, por exemplo, a Nova Ordem Econômica Internacional, as potências coloniais negam sua aplicação e ativam o princípio da soberania westfaliana pelo qual o Estado só é obrigado em matéria de Direito Internacional naquilo em que consentir, e afirmam, portanto, que as resoluções do Sul Global, ainda que adotadas dentro do âmbito da Organização das Nações Unidas, não podem atingir as potências imperialistas uma vez que essas não deram expresso consentimento à formulação de uma Nova Ordem Econômica. Assim, os povos do Sul são obrigados a lidar com a tradição colonial do Direito Internacional que “desempodera continuamente o mundo não-europeu” (ANGHIE, 2004, p. 312).
A concepção de soberania, fundada a partir do pensamento dos avatares da perspectiva eurocentrista imperial (Hobbes, Bodin, Grotius, etc.), não considerou as diferenças culturais, antes, foi construída por uma Europa que se identificava como soberana, ao passo que via as diferentes formas de ordem como não soberanas, não legais e, portanto, colonizáveis. Assim, “[a] soberania é formulada de forma a excluir o não-europeu e, consequentemente, a soberania pode ser implantada para identificar, localizar, sancionar e transformar os incivilizados”. Essas manobras conceituais que excluíam sistemas de ordem não-europeus, foram impostas durante a colonização nos locais onde “a soberania era completamente livre, dirigida e controlada apenas pela ingenuidade de incivilizados”. Assim, a própria criação do Direito Internacional “em seu impulso necessariamente infinito para a universalidade baseia-se na invocação convincente deste ‘outro’” (ANGHIE, 2004, p. 311-12, tradução nossa).
Chimni (2007), Grovogui (2006) e Park (1987) destacam que o papel dos não-europeus na construção dos Direitos Humanos e da ordem econômica, apesar de cruciais, são simplesmente apagados. Esses autores sustentam a necessidade de se reconhecer a cooperação feita ao Direito Internacional por povos e culturas subalternizadas que não intentaram forçar sua própria visão ao resto do mundo. Uma delas, identificada por Grovogui (2006), encontra-se na concepção de Direitos Humanos construída na Revolução Haitiana, que via direitos sociais e de autodeterminação econômica como equivalentes aos direitos individuais e políticos. Nesse sentido, o autor defende o protagonismo dos negros, especialmente no contexto da Revolução Haitiana, no desenvolvimento dos Direitos Humanos e nas exigências de igualdade e liberdade que ganhavam força na última década do século XVIII na França – que neste último caso, limitava-se como sujeito desse direito apenas o masculino branco europeu.
No campo da História, as correntes dominantes optaram por “ignorar completamente a Revolução [Haitiana] ou minimizar seu significado e, ao mesmo tempo, supervalorizar os aspectos que se encaixam na ontologia ocidental”, tais como forçando a ideia de que a Revolução Francesa fora um feito único, heróico, sem precedentes e sem inspirações externas, realizada pelo senso humanista inerente e exclusivo do povo francês (REINHARDT, 2005; TROUILLOT, 1995).
Assim, a corrente predominante da historiografia ocidental tem tentado apagar a conquista haitiana de quatro maneiras proeminentes: i) simplesmente por meio da omissão, não se referindo à Revolução nas obras históricas; ii) esvaziando-a de seu caráter revolucionário, afirmando que não era em si uma revolução, mas uma revolta ou um levante contra o tratamento desumano (e não contra o próprio sistema escravagista) e, por conseguinte, iii) isolando pessoas (por exemplo, as biografias de Toussaint L’Ouverture que o tornam incomparável, uma pessoa extraordinária, esquecendo-se dos demais líderes que perseguiram os mesmos objetivos após o exílio de L’Ouverture, que se deu antes da conquista da independência) e colocando acontecimentos como excepcionais, alegando que as tropas europeias foram derrotadas porque sofreram demasiadamente com as doenças tropicais já que não possuíam anticorpos, e não porque foram vencidas por um exército superior (aliás, os negros que batalharam pela independência do Haiti também eram recém-chegados da África e, portanto, não seriam imunes às condições do Caribe, a não ser que se alegue a genética negra como superior ou mais forte – e assim, ironicamente, os “fundamentos raciais” do regime escravagista seriam desafiados); e por fim, iv) sustentando que a Revolução Haitiana não foi um sucesso, mas um fracasso, tendo em vista a situação atualmente crítica do país – um argumento típico de maus perdedores, que fizeram o possível para impedir o desenvolvimento haitiano desde o princípio e ainda buscam desesperadamente alguma explicação que lhes convém (REINHARDT, 2005).
Para Trouillot, ainda em 1995 os historiadores reproduziam as narrativas dos contemporâneos à Revolução Haitiana e,
[a]ssim como nos séculos XVIII e XIX, as análises modernas fragmentam e despolitizam a resistência escrava, quando não a ignoram. Como seus antecessores, estudiosos modernos tendem a estar mais preocupados em buscar causas externas ou agentes [individuais] para creditá-los pelo levante. Tal problemática diminui ou trivializa a Revolução Haitiana ao mesmo tempo em que desconsidera a ideia de que escravos poderiam ser agentes conscientes, responsáveis por suas próprias lutas pela libertação (TOMICH, 2009, p. 403, tradução nossa).
Siba N. Grovogui (2006, p. 182, tradução nossa) afirma que o papel da Revolução Haitiana não é de importância exclusivamente histórica, ao contrário, “em muitos aspectos, é parte integrante de uma genealogia da modernidade. Este fato simples foi ignorado por teóricos e historiadores do pensamento”.
Desde sempre, afirma Trouillot (1995), a historiografia francesa tem tratado a Revolução Haitiana como derivativa, negligenciando-a totalmente em razão do seu silêncio em relação ao tema. O resultado disso foi “o isolamento e a deterioração do Haiti desde sua independência, transformando a Revolução Haitiana em um ‘não-evento’ e conduzindo à falta generalizada de ênfase em raça, escravidão e colonialismo na escrita da história do Ocidente”.
O menosprezo tornou-se a maneira francesa de lidar com o legado da escravidão até pelo menos o final do século XX. Em se negando a necessidade de perdão, consentimento e principalmente reparação como condição prévia ao “esquecimento coletivo” esperado, o Estado francês “efetuou uma política oficial de esquecimento por meio da substituição da memória do crime da escravidão pelo seu oposto: a magnanimidade da abolição e a missão civilizadora da França” – ou seja, como uma ironia, engradeceram o ato da abolição como se os próprios colonizadores fossem agora heróis que conceberam a liberdade e a “concederam” aos escravizados em um ato coberto de benevolência e generosidade (GARRAWAY, 2008, p. 367, tradução nossa).
Por isso, é necessário enfatizar que os teóricos e os instrumentos do Direito Internacional Público devem estar a serviço de várias formas de reparação das quais o Haiti é merecedor: a recuperação da memória e reconhecimento da agência dos povos haitianos; a garantia do direito de restituição do Débito da Independência, ou seja, o ressarcimento devido pela França ao Haiti dos valores que recebeu indevida e injustamente a partir do “acordo” que instituiu o Débito; a reparação por escravização, cujo devedor é igualmente a França. Nesse sentido, Clude Ribbe (2010, tradução nossa) afirma que “a restituição concerne exclusivamente ao Haiti, enquanto a reparação concerne ao Haiti, bem como aos países africanos e aos domínios franceses do ultramar”.
Pelo cometimento do crime de escravidão e pela extorsão dos valores do Débito da Independência face ao Haiti, a França incidiu no chamado enriquecimento ilícito. De maneira sucinta, o enriquecimento ilícito se caracteriza pelo “acréscimo de bens que se verifica no patrimônio de um sujeito, em detrimento de outrem, sem que para isso tenha um fundamento jurídico” – ou pelo aumento do patrimônio de um à custa do empobrecimento injusto de outro – e que, portanto, justifica a ação de in rem verso, que garanta restituição ao beneficiário (FRANÇA, 1987, p. 87; ACQUAVIVA, 1998).
Assim, a partir dos fatos analisados, defendeu-se a necessidade de revisão teórica das doutrinas coloniais, viabilizando um empoderamento substancial dos Estados e das vítimas que sofreram com a perpetração desses crimes contra a humanidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A zona do não-ser é aquela onde a subjetividade é negada; é o campo livre da violência física e/ou simbólica. Destituir os povos de suas memórias, invizibilizar as suas ações e subtrair-lhe as possibilidades de agência é uma forma de perpetuar as violações imperiais.
A Revolução Haitiana é uma parte da história não contada e não validada pelo mainstream do Direito Internacional. Os atores da independência foram relegados a uma posição de ostracismo e suas narrativas são objeto de um verdadeiro historicídio pela doutrina dominante do DIP. Ou seja, o DIP tem se mostrado classista e racista, à medida que tenta promover uma higienização das contribuições dos povos negros.
A disciplina que prega ser internacional, que pretende ser o “Direito dos Povos” e de relevância para todos Estados e todas as comunidades, tem o Imperialismo na sua origem enquanto locus geográfico e marcador temporal. A matrix colonial de poder que reina nas esferas formuladoras e aplicadoras do Jus Gentuim é responsável pela hierarquização e pelo embargo à participação das etnias não-ocidentais nos círculos decisórios mundiais.
Portanto, é necessário caminhar para uma nova era, que seja, realmente, pós-colonial. Para tal, faz-se mister ampliar e aprofundar a crítica que compreenda a disciplina como um todo. É fundamental, nesse propósito, incitar a formulação de pensamentos e análises que se comprometam não apenas a criticar, mas a elaborar de maneira mais adequada as explicações do DIP contemporâneo de modo que incluam todas as vozes que compõem o sistema internacional.
O primeiro passo nesta jornada é o autorreconhecimento de suas próprias origens e da reprodução da colonialidade do saber e do poder em sua arquitetura. Em segundo lugar, é relevante denunciar e rejeitar a relação íntima entre ciência e colonialismo. Ao se confrontar a herança colonial do DIP, impõe-se rejeitar teorias que reproduzam os imperialismos.
Ou seja, a descolonização do Direito Internacional requer, obrigatoriamente, o enfrentamento das distorções substantivas, metodológicas e políticas das abordagens clássicas da disciplina. Significa afirmar que a própria imaginação imperialista que omite eventos, processos e correntes de pensamento fora do mundo ocidental deve ser desmantelada. Atualmente, a omissão parece tomar lugar quanto à questão da exploração econômica dos países em desenvolvimento pelas mesmas grandes potências, que são tratadas pela academia com a mesma indiferença que foram tratados os temas da escravidão, abolição, colonização e descolonização. Passam-se os anos e as eras e o vocabulário do Direito apenas se altera para perpetuar relações desiguais no plano legal.
Para mudar os ventos que conduzem o caminhar do Direito Internacional, faz-se necessário, igualmente, revisar e reconstruir a disciplina a partir da inclusão e do empoderamento daqueles que foram excluídos ou marginalizados durante os processos historiográficos dominantes. A revisão servirá para dar luz aos muitos exercícios de resistência ao Direito Internacional colonial e neocolonial e incorporá-los na trajetória do Direito Internacional, por meio da assimilação de práticas, memórias, sujeitos e conceitos não-ocidentais.
Nesse sentido, faz-se mister afirmar que proposta descolonizadora não cai na vala comum das vertentes que negam o Ocidente, sob pena de incidir no fundamentalismo antieuropeu. O objetivo é abrir o campo de visão para, ao mesmo tempo em que se reconheça a contribuição do acervo que os países do Norte aportam para o DIP, que, também, sejam incluídas e valorizadas outras experiências e outras epistemes.
Incorporar o pensamento e as experiências do Sul Global, como a Revolução Haitiana é também uma forma de recuperar o lugar de fala, como contraponto ao silenciamento das vozes negras, e reconhecê-las como protagonistas das próprias histórias e das suas lutas. Rasgar as imagens esquecidas implica reconhecer o papel dos negros na construção do conhecimento. Compreender o lugar de fala do subalternizado pressupõe uma postura ética das teorias e autores/autoras de DIP de legitimar outros espaços de enunciação para se repensar as hierarquias, as desigualdades, os racismos na academia e nas estruturas de poder internacional.
Em resumo, o Direito Internacional aguarda uma reformulação imaginativa, capaz de refutar a suposição de que o Ocidente detém o monopólio da virtude em relação a noções de democracia, direitos humanos ou qualquer outra categoria de discurso normativo. A omissão no Direito Internacional das contribuições feitas pela Revolução Haitiana, pelo Movimento dos Não-Alinhados e tantas outras provenientes da África, Ásia e América Latina, além de empobrecer a disciplina, a torna historicamente incorreta. Englobar no DIP as histórias não-ocidentais, significa enobrecer a existência humana em sua totalidade, de forma imparcial, justa e igualitária.
Por fim, descolonizar o Direito Internacional a partir do lugar de enunciação dos “condenados da terra” (FANON, 1968), onde estão maioria das populações do mundo é, também, uma forma de devolver a humanidade ao colonizado.
REFERÊNCIAS
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Recebido em 15.10.2018
Aceito em 07.11.2018
1* Esta pesquisa foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
2 Categoria cunhada por Franz Fanon em 1952, que revela a negação da subjetividade e da humanidade dos povos negros.
3 O Haiti é um dos líderes do ranking de países mais pobres do mundo, com o pior IDH do Ocidente e divide a 163a posição geral com Ruanda e Uganda, de acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano Global (PNUD). Disponível em: <http://www.pnud.org.br/HDR/Relatorios-DesenvolvimentoHumanoGlobais.aspx?indiceAccordion= 2&li=li_RDHGlobais>.
4 A estimativa de historiadores considerados realistas ou “moderados”, como Hugh Thomas (1997, p. 805-806) sobre a dimensão do tráfico transatlântico é de que no mínimo 13 (treze) milhões de africanos foram coercitivamente embarcados rumo às Américas, sendo que tal número exclui aqueles que sucumbiram nas lutas de resistência, nas capturas, nos períodos em que estiveram presos nas masmorras antes do embarque e durante a cruzada do Atlântico..
5 Significa dizer que, “quando os escravizados lançaram sua grande revolta em 1791, a maioria desse meio milhão de negros havia nascido na África, falava línguas africanas, adorava deuses africanos” (DANNER, 2010, p. 1, tradução nossa; RIBBE, 2010).
6 Toussaint L’Ouverture era um antigo escravizado letrado, já livre em 1791 (momento em que a Revolução eclodiu), que começou a assumir a liderança ao enviar cartas aos escravos em todo o Haiti para se apresentarem à batalha (KEE, 2015). Em 1973, Toussaint emergiu como um líder forte e capaz de unir todos sob o mesmo objetivo de conquistar a independência e, consequentemente, direitos. Para Paul C. Mocombe (2010) e David Patrick Geggus (2002), havendo emergido como um comandante dentro do exército rebelde de escravos negros liderados por Georges Biassou e Jean-François, Toussaint L ‘Ouverture provou-se capaz de organizar massas de escravos e mulatos ao mesmo tempo em que mantinha boas relações com os brancos colonizadores. Ele havia sido criado dentro dos costumes brancos, havia sido liberto antes do começo da Revolução e podia, inclusive, ler em francês. Por outro lado, mostrou-se fiel à causa da independência e abolição, mesmo quando a França ofereceu anistia aos insurgentes na tentativa de suprimir a revolução e impossibilitar a independência.
7 David Patrick Geggus (2002, p. 22) faz uma descrição no mínimo interessante de como esse líder se apresentava na época: “[u]m homem pequeno e nervoso, muito negro, com olhos móveis e penetrantes, que impressionava muito quem o conhecia, mesmo aqueles que o consideravam feio. Ele tinha perdido a parte superior dos dentes da frente em batalha e suas orelhas estavam deformadas usando pesados brincos de ouro, mas sua presença era imponente e sugeria um enorme controle de si mesmo”.
8 Ressalta-se, contudo, que a escravidão foi restabelecida na França e seus territórios coloniais por Napoleão Bonaparte em 1802, quando já havia derrubado a República e restaurado o Império Napoleônico.
9 Desde a revolta haitiana de 1791, os negros no Caribe já cantavam canções sobre o levante, e os colonizadores “nas Índias Ocidentais e na América do Norte começavam a se queixar de uma nova ‘insolência’ por parte de seus escravos” (GUGGES, 2002, p. 28, tradução nossa).
10 O autor lembra também que “[n]o entanto, muitos fatores estavam em ação nas rebeliões escravas do período e supor que a mera inspiração do exterior era crítica para provocar resistência seria subestimar as dificuldades enfrentadas pelos dissidentes nesta era de fortes guarnições coloniais” (GUGGES, 2002, p. 28, tradução nossa).
11 Os Estados Unidos apenas reconheceram a independência haitiana em 1862, sob o governo de Abraham Lincoln (DANNER, 2010; PHILLIPS, 2008).
12 Dos (em média) 450.000 rebeldes que lutaram pela independência, apenas cerca de 170.000 remanesceram em condições para trabalhar e reconstruir a economia nacional (FARMER, 2006).
13 Muito embora tal montante excedesse as estimativas de suas “perdas reais” em cinquenta milhões de francos (PHILLIPS, 2008).
14 Consultation de MM. Dalloz, Delagrange, Hennequin, Dupin jeune et autres jurisconsultes, pour les anciens colons de St-Domingue. Disponível em: <https://archive.org/details/consultationdemm00dall>. Acesso em: 29 mar. 2017.
15 Assim, quando interessava às potências colonizadoras, dizia-se que as terras estrangeiras eram colonizáveis porque não havia nelas uma ordem ou governo soberano capaz de satisfazer o imaginário europeu. Por outro lado, quando confrontados por sua própria doutrina, as mesmas potências diziam que os chefes nativos não-europeus entraram em acordo com os Estados europeus, concedendo-os autoridade para governá-los. São tratados dessa forma muitos acordos sobre a independência das colônias em que estas – até então consideradas desprovidas de soberania, por isso colônias – acordavam com a metrópole os termos em que se desenrolaria o processo de liberação política. Essa retórica sustenta igualmente a impossibilidade do pedido de reparação por colonização e escravidão de Estados africanos e da diáspora.
Este obra está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
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ISSN: 2178-2466