DESPROTEÇÃO SANITÁRIA E PREVIDENCIÁRIA DOS CATADORES DE RESÍDUOS NÃO-ASSOCIADOS EM FORTALEZA – CE: UMA ANÁLISE SOCIOJURÍDICA DA PRECARIEDADE DE TAL ATIVIDADE
SANITARY AND SOCIAL DESPROTECTION OF NON-ASSOCIATED WASTE PICKERS IN FORTALEZA – CE: A SOCIAL LEGAL ANALYSIS OF THE PRECARIOUSNESS OF SUCH ACTIVITY
Eduardo Rocha DiasI
Dieric Guimarães CavalcanteII
Sarah Linhares Ferreira GomesIII
I Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Programa de Pós-Graduação em Direito da UNIFOR, Fortaleza, CE, Brasil. Doutor em Direito. E-mail: eduardordias@hotmail.com
II Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza, CE, Brasil. Graduando em Direito. E-mail: diericguimaraes@yahoo.com.br
III Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Fortaleza, CE, Brasil. Graduanda em Direito. E-mail: sarahlferreiragomes@hotmail.com
DOI: http://dx.doi.org/10.31512/rdj.v19i33.2861
Processo de avaliação: Double Blind Review
Recebido em: 09.11.2018
Aceito em: 25.04.2019
Sumário: 1 Considerações iniciais. 2 Aspectos metodológicos. 3 A situação dos catadores de resíduos à luz da abordagem das capacidades de Martha Nussbaum. 4 O hiato existente entre o ideal e o real: constatações empíricas. 5 O direito à informação como pressuposto da efetivação das políticas públicas. 6 Considerações finais. Referências.
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar o grau de proteção previdenciária e sanitária dos catadores de resíduos não-associados no Município de Fortaleza. A promoção do trabalho decente constitui um dos objetivos da agenda para o desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidas para o período de 2015 a 2030, vinculando o Estado brasileiro quanto à adoção de medidas que visem sua implementação e, também, se insere entre as maiores preocupações da Organização Internacional do Trabalho – OIT. Nessa perspectiva, o trabalho desempenhado por catadores de resíduos constitui uma das modalidades em que há maior precariedade, mostrando-se necessária a realização de pesquisa empírica que subsidie eventual tomada de decisões e adoção de políticas por parte do Poder Público, além de avaliação das políticas já existentes. Desse modo, mostrou-se indispensável a discussão acerca do grau de (des)conhecimento por parte dos catadores de resíduos – o que fora evidenciado na pesquisa quantitativa – sobre seus direitos relativos à previdência, à assistência social e à saúde. Ademais, optou-se por analisar, de maneira crítica, com fulcro nos dados e com embasamentos teóricos, a situação do grupo supramencionado em interface com aludidas políticas, uma vez que mais parecem figurar como um público inalcançável pelos programas que objetivam efetivar tais garantias supracitadas. Nessa lógica, é explícita a necessidade de que as informações sobre direitos previdenciários e assistenciais sejam mais bem dirigidas aos catadores de resíduos, bem como que as políticas sanitárias devam atentar para a necessidade de prevenir os danos decorrentes de acidentes e doenças e, de mesmo modo, do uso de drogas.
Palavras-chave: Catadores de resíduos. Proteção. Precariedade. Previdência. Saúde.
Abstract: The goal of the present paper is to analyze the degree of social security and health protection of non-associated waste pickers in the municipality of Fortaleza. The promotion of decent work is one of the objectives of the Agenda for Sustainable development of the United Nations for the period of 2015 to 2030, imposing on the Brazilian state the obligation of adopting measures aimed at implementing it. Decent work is also one of the greatest concerns of the International Labour Organization – ILO. From this perspective, the work done by waste pickers is one in which there is greater precariousness. It is necessary to carry out empirical research about the subject in order to help policymakers´ decisions and also to assess current policies efficiency. To this end, the discussion about the degree of knowledge by waste pickers – which was evidenced in quantitative research – about their rights relating to social security, welfare and health, has been proved indispensable. A critical analysis of the situation of the aforementioned group was made, considering available data and theoretical foundations, concluding that current policies seem to be unreachable to waste pickers. Thus, a more adequate and comprehensible information on social security rights as well as health policies must be given to them in order to prevent damage arising from accidents, diseases and drug abuse.
Keywords: Waste pickers. Protection. Precariousness. Security. Health.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente trabalho analisa a situação dos catadores de resíduos não-associados no Município de Fortaleza – CE, no que tange à (des)proteção previdenciária, sanitária e assistencial, a partir da chamada abordagem das capacidades de Martha Nussbaum. Referida perspectiva pretende definir o que deve ser assegurado a todos os membros de uma sociedade, a partir do reconhecimento de sua dignidade, possibilitando, assim, a concretização das condições mínimas para uma vida digna.
Diante de tal abordagem, se verifica nitidamente que os catadores de resíduos, apesar da função imprescindível que exercem na sociedade por meio de seu trabalho - uma vez que contribuem para um meio ambiente saudável e livre de poluição – não estão tendo suas capacidades asseguradas, pois trabalham em condições indignas, desumanas e insalubres, posto que estão frequentemente em contato direto com os resíduos urbanos, não utilizando equipamento de proteção individual (EPI), carregando peso excessivo em seus carrinhos, cumprindo jornadas de trabalhos extenuantes, correndo riscos de acidentes ao transitar pelas vias públicas, dentre diversas outras situações que configuram violações a direitos. Tal trabalho, em virtude das condições em que é exercido, inclui-se de forma precisa no conceito talhado pela OIT1sobre as formas de trabalho inaceitáveis (ARAGÃO; GOMES, 2016).
À vista disto, foram editados atos normativos tratando de políticas públicas visando garantir a proteção desse grupo social. Dentre as medidas estatais, destacam-se a elaboração da Lei nº 12.305/2010, que instituiu a Política Nacional dos Resíduos Sólidos e consagrou responsabilidades compartilhadas entre os agentes da sociedade, sejam públicos ou privados, e o Decreto nº 7.405/2010, que regulamenta a matéria veiculada na legislação supradita e instituiu o programa Pró-Catador, com vistas à promoção e à realização de políticas públicas direcionadas a essa categoria específica.
Contudo, não obstante o avanço na criação de políticas públicas voltadas a esses indivíduos e a notória percepção pelo Estado de que necessitam de uma proteção especial face à situação de vulnerabilidade em que se encontram, tais medidas estatais não são devidamente informadas aos catadores de resíduos, gerando, por consequência, a impossibilidade de fruição dos direitos veiculados em tais instrumentos, tornando-as sem eficácia e efetividade. Nesse rumo, destaca-se que o direito à informação representa um dos pressupostos para a efetivação das políticas públicas, devendo também ser compreendido como um elemento essencial para o exercício da cidadania. Como bem aduzem Carine Jansen e Nadi Helena (2015, p. 141), “o acesso à informação é condição para o exercício da cidadania, por ser pressuposto da consciência de direitos e deveres básicos”.
Assim sendo, a presente pesquisa tem relevância já que busca constatar as condições precárias de trabalho dos catadores de resíduos e avaliar a efetividade das políticas públicas implementadas com a finalidade de concretizar os direitos previstos para referida categoria, concluindo pela imprescindibilidade de garantir o direito à informação, elemento essencial para a busca por efetivação de serviços prestados pelo Estado e, inclusive, de direitos legalmente instituídos.
2 ASPECTOS METODOLÓGICOS
A elaboração desta análise foi construída a partir de uma pesquisa empírica, a qual se fez em campo com os catadores de resíduos, durante os meses de novembro e dezembro de 2017, na “Regional 2” e na “Regional Centro”, da cidade de Fortaleza, no Estado do Ceará. Foi efetuado um recorte nas experiências dos não-associados, ou seja, os que não integram associações ou cooperativas, uma vez que desempenham sua atividade laboral sozinhos nas ruas e sem apoio.
A abordagem do presente trabalho, portanto, é de natureza qualitativa e quantitativa, sendo necessário mencionar que o desenrolar desta última se deu por meio da aplicação de 32 questionários estruturados. Em virtude da inexistência de um número preciso relativamente a quantos catadores de resíduos “não-associados” desempenham suas atividades laborais na cidade de Fortaleza, no Estado do Ceará, a amostra dos participantes, para a presente pesquisa, foi fixada com fulcro no ensinamento de Triola (2014), o qual enfatiza que, para uma população com distribuição aleatória, se o tamanho amostral for maior que 30, as médias amostrais têm distribuição que pode ser aproximada por uma distribuição normal, e tal número será cientificamente válido.
Neste artigo, optou-se por analisar duas categorias, quais sejam, a da previdência social e da saúde. Nessa esteira, no tocante à categoria “previdência”, verificou-se que a maior parte dos catadores de resíduos sólidos não-associados (28) não contribui para a previdência social, nem distingue tal política da assistência social.
Quanto à categoria “saúde”, a maioria (17) afirmou não ter sido atendida por médico nos dois anos anteriores à pesquisa, fato este que também denuncia o distanciamento dos catadores dos mecanismos criados pelo Estado para garantia de determinados direitos, tal como o relativo à saúde. A presente pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos (Coética) da Universidade de Fortaleza, tendo obtido parecer favorável.
3 A SITUAÇÃO DOS CATADORES DE RESÍDUOS À LUZ DA ABORDAGEM DAS CAPACIDADES DE MARTHA NUSSBAUM
O exame do tema da desproteção sanitária e previdenciária dos catadores de resíduos faz-se a partir – mas não apenas – da chamada abordagem das capacidades, de Martha Nussbaum (2013). Essa abordagem considera a perspectiva de que uma sociedade deve assegurar a todos os seus membros um mínimo para a proteção de sua dignidade, permitindo aferir se esse mínimo está ou não sendo observado.
A partir de uma visão que une Aristóteles, Sêneca e Marx, Nussbaum busca identificar dez capacidades, compatíveis com uma sociedade liberal pluralista, fundadas em uma concepção de dignidade que leva em conta o que é necessário para um funcionamento verdadeiramente humano de cada um. Dentre essas capacidades, citem-se as relativas à vida, à saúde e à integridade física. Quanto à vida, entende que todos devem ser capazes de viver até o fim uma vida humana de duração normal, não morrer prematuramente e não ter a vida reduzida a tal ponto que não valha mais a pena ser vivida. A saúde inclui a saúde reprodutiva, receber uma alimentação adequada e ter um lugar adequado para viver. A integridade física abrange a proteção contra a violência, entre outras dimensões (NUSSBAUM, 2013).
Tais capacidades, como as demais propostas por Nussbaum (2013), pretendem-se universais e abstratas, estando abertas à configuração específica por atuação dos indivíduos, dos parlamentos e dos tribunais, admitindo-se níveis diferenciados de concretização. Ela respeita ainda o pluralismo, pois não pressupõe que a implementação de cada capacidade seja obrigatória. Assim, no tocante à saúde, defende que se deem às pessoas oportunidades de conduzir uma vida saudável, dando-lhes, porém, também, a possibilidade de escolha e evitando sanções por escolhas prejudiciais.
Centrais à teoria das capacidades são as ideias de dignidade humana e de inviolabilidade da pessoa, apontando para um resultado que se espera alcançar, pelo estabelecimento de conteúdos vinculados a uma vida apropriada à dignidade humana, buscando, em seguida, procedimentos políticos que permitam alcançar esse resultado. Os procedimentos, porém, poderão se modificar ao longo do tempo e de acordo com as circunstâncias: “a justiça é o resultado esperado, e o procedimento é considerado bom na medida em que promova tal resultado” (NUSSBAUM, 2013, p. 99).
As políticas públicas, nessa esteira, figuram como alternativas de promoção e efetivação dos direitos fundamentais no plano interno do país. Nessa perspectiva, é importante salientar que o artigo 3º da Constituição Federal expressa os objetivos da República Federativa do Brasil, sendo estes a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, bem como a erradicação da pobreza, marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais, além da promoção do bem de todos, sem qualquer forma de discriminação. Os catadores não devem permanecer à margem da sociedade, em uma situação de invisibilidade, sendo imprescindível a concretização de medidas estatais para a garantia de seus direitos.
Não restritas ao contexto nacional e ainda pertinentes à pretensão de se assegurar condições dignas e de igualdade entre os sujeitos, em se tratando da proteção internacional dos direitos humanos, também não se podem ignorar as metas de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas para o período de 2015 a 2030. Entre os objetivos das Nações Unidas estão a erradicação da pobreza (objetivo 1), saúde e bem-estar (objetivo 3) e trabalho decente e crescimento econômico (objetivo 8). Ora, sendo o trabalho dos catadores de resíduos um dos mais precários, além de exercido em um contexto de vulnerabilidade, cumpre examinar como e se as políticas atualmente existentes em matéria de saúde, previdência e assistência os protegem. E como, em caso negativo, essas políticas devem ser modificadas para assegurar a proteção de tais trabalhadores.
O enfoque das capacidades, por outro lado, reconhece que todas elas têm um aspecto material e requerem condições materiais (NUSSBAUM, 2013). Algumas delas devem ser distribuídas de forma igualitária enquanto outras, de conteúdo mais econômico, devem ser adequadas às circunstâncias e à história de cada sociedade, tolerando variações temporais e especificações mais precisas por parte do Legislativo, do Judiciário e da Administração. A tarefa de uma sociedade digna é “dar a todos os cidadãos as (condições sociais das) capacidades, até um nível mínimo apropriado” (NUSSBAUM, 2013, p. 219), e a importância das capacidades centrais justifica os gastos que tenham de ser feitos.
Para Nussbaum (2013, p. 106), o homem é um animal político, inserido em uma teia de relações sociais, nas quais é inerente uma “trajetória temporal” em que se mesclam períodos de fragilidade, necessidade e de cuidado (a infância e a juventude, por exemplo), superadas na fase adulta, mas que podem reaparecer na velhice e em situações como a incapacidade. Diante da diversidade efetiva das relações sociais, a perspectiva defendida pela autora se mostra mais rica que outras abordagens contratualistas, que tendem a idealizar os participantes dos arranjos sociais como pessoas “independentes” e produtivas. A abordagem das capacidades permite também fixar parâmetros para a verificação das políticas públicas e da atuação do Estado na sua concretização, bem como permitem preencher o conteúdo referente a direitos que essas políticas pretendem concretizar. Cabe a uma sociedade que se pretende digna “dar a todos os cidadãos as (condições sociais das) capacidades, até um nível mínimo apropriado” (NUSSBAUM, 2013, p. 223) e a importância das capacidades centrais justifica os gastos que tenham de ser feitos por essa sociedade (NUSSBAUM, 2013, p. 234).
Não se pode deixar de registrar a convergência da abordagem das capacidades com a proposta das Nações Unidas de avaliação da qualidade de vida e dos níveis de justiça assegurados por diferentes sociedades a seus integrantes. Já no primeiro Relatório do Desenvolvimento Humano do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, de 1990, elaborado pelo economista paquistanês Mahbub ul Haq, destacou-se que a renda não significa a totalidade da vida humana e que é necessário proporcionar às pessoas condições para viverem vidas longas e boas (UNDP, 1990).
Tal abordagem, muito embora se aproxime mais da perspectiva comparativa fixada por Amartya Sen (1989), tem também um conteúdo principiológico, que permite uma busca de consensos ampliados, semelhantes ao que ocorre no tocante aos acordos internacionais de direitos humanos (STRAPAZZON; RENCK, 2014). Permite ainda uma avaliação do atendimento, por Estados Nacionais, de padrões mínimos fixados para os direitos associados às capacidades em causa. Frise-se, parâmetros mínimos para que se estabeleça uma sociedade mais justa.
Vê-se que, atualmente, na sociedade ocidental, a precariedade laboral carrega em seu bojo características bem específicas, as quais se alinham, inclusive, com a nova fase de desenvolvimento do sistema capitalista, nesse sentido, como bem aduzido por Castells (2002, p. 266-267): “em qualquer processo de transição histórica, uma das mais diretas expressões de mudança sistémica é a transformação da estrutura ocupacional e do emprego”. Necessário mencionar que o consumismo desenfreado figura como um dos produtos mais autênticos do capitalismo e tem relação direta com a geração e, de mesmo modo, com o consequente acúmulo de resíduos no globo. No entanto, como fruto do consumo, tem-se o descarte, e este não se dá, na grande maioria das vezes, de maneira correta, dessarte, a atividade da catação, paradoxalmente, se mostra mais relevante, mas segue ainda mais insalubre e desempenhada em condições de extrema precariedade.
A atividade dos catadores está intrinsecamente ligada ao manuseio do que se classifica como “lixo” e, como consequência disso, o trabalho – embora de indiscutível importância para o meio ambiente e para a sociedade é praticado sob o manto da invisibilidade. No tocante aos catadores sem vínculo associativo, essa realidade é deveras mais preocupante, uma vez que atuam de forma autônoma, nas ruas, sem qualquer amparo formal. A atividade exercida pelos catadores é indiscutivelmente importante ao meio ambiente e à sociedade em geral. O direito ao meio ambiente equilibrado, previsto como um direito fundamental, não depende unicamente do Estado, mas de outros atores, dentre os quais notadamente se destacam os catadores e é, nesse sentido, que Vieira, Garcia e Sobrinho (2014, p. 173-184) aduzem:
O artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil dispõe que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Portanto, a Governança Ambiental Global não é responsabilidade exclusiva do Estado.
A vinculação entre trabalho decente e sustentabilidade se encontra presente também nos documentos da OIT (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, ONLINE). Formalizado desde 1999, o conceito de trabalho decente pretende ser condição de superação da pobreza, de redução de desigualdades, de garantia de governabilidade democrática e de desenvolvimento sustentável. Neste conceito convergem os quatro objetivos estratégicos da OIT, a saber: a) respeito aos direitos no trabalho, especialmente os definidos como fundamentais (erradicação de formas de trabalho forçado e de trabalho infantil, eliminação de discriminação, liberdade sindical e de negociação coletiva); b) promoção do emprego produtivo e de qualidade; c) ampliação da proteção social; e d) fortalecimento do diálogo social.
O trabalho de coleta de resíduos, ao mesmo tempo que permite a inclusão social de pessoas sem maiores qualificações profissionais, garantindo-lhes renda, permite também encaminhar o problema do destino do lixo das grandes cidades. Mas para que tal atividade tenha sua precariedade diminuída é necessária a adoção de políticas públicas adequadas e direcionadas a dar informação e oportunidades aos catadores, diminuindo sua informalidade e permitindo que tenham acesso a direitos básicos.
Bauman (2001, 2003) discorre que a chamada “modernidade pesada” ou “sólida” se apresentou como a época em que havia um maior compromisso estabelecido entre o binômio capital-trabalho e, naquele momento, existia um “exército de reserva da mão-de-obra”, o qual correspondia aos trabalhadores que eram úteis ao funcionamento do sistema capitalista. Todavia, na “modernidade líquida”, tais trabalhadores deixam de ser necessários, tornando-se supérfluos ou inúteis no mundo.
Nesta esteira, vê-se que a presente pesquisa permite verificar as condições em que laboram os catadores de resíduos da cidade de Fortaleza, o grau de atendimento de seus direitos referentes ao trabalho digno e salubre, bem como discutir o acesso à informação como meio de eficácia das políticas públicas destinadas aos exercentes dessa atividade.
4 O HIATO EXISTENTE ENTRE O IDEAL E O REAL: CONSTATAÇÕES EMPÍRICAS
Os catadores de resíduos integram o cenário brasileiro desde o século XIX, de forma que acompanharam todo o processo de urbanização do país. No entanto, tal trabalho ainda permanece sendo exercido em condições extremamente vulneráveis e insalubres. Como consequência de tal realidade, é possível constatar a existência de uma acentuada desproteção sanitária relativamente aos catadores de resíduos, principalmente daqueles sem vínculo associativo. Há uma baixa efetividade de acesso a medidas que diminuam ou eliminem riscos à sua saúde. Vê-se, de mesmo modo, a desproteção previdenciária de tal grupo pelas condições de extrema pobreza e consequente exclusão social na qual estão inseridos, não tendo recursos para contribuir para a previdência e se inserindo na informalidade. Estão, portanto, privados de acesso a benefícios por doença, invalidez e idade avançada, dentre outros. Podem, eventualmente, tornar-se elegíveis para benefícios assistenciais, como o Programa Bolsa-Família e o benefício de prestação continuada da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS).
O trabalho dos catadores de resíduos se inclui de modo preciso no conceito talhado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) como uma das formas de trabalho inaceitáveis (GOMES; BERTOLIN, 2016, p. 400). De acordo com o termo utilizado pela retromencionada autora, a Forma Inaceitável de trabalho – FIT é conceituada como “trabalho em condições que negam princípios e direitos fundamentais no trabalho, coloca em risco a vida, saúde, liberdade, dignidade humana e segurança dos trabalhadores ou mantém as famílias em condições de extrema pobreza”. Necessário mencionar que em países onde inexiste um programa formal de gerenciamento de resíduos sólidos, a atuação do catador é ainda mais importante.
Tal serviço prestado tem como objeto a catação dos resíduos, sendo este regulamentado e definido pela Lei 12.015/2010, que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos, especificamente em seu artigo 3º, inciso XVI, conforme se depreende abaixo:
Art. 3º Para os efeitos desta Lei, entende-se por: XVI - resíduos sólidos: material, substância, objeto ou bem descartado resultante de atividades humanas em sociedade, a cuja destinação final se procede, se propõe proceder ou se está obrigado a proceder, nos estados sólido ou semissólido, bem como gases contidos em recipientes e líquidos cujas particularidades tornem inviável o seu lançamento na rede pública de esgotos ou em corpos d’água, ou exijam para isso soluções técnica ou economicamente inviáveis em face da melhor tecnologia disponível;
Vê-se que o acúmulo de resíduos no meio urbano contribui, significativamente, para a proliferação dos agentes transmissores de doenças, os quais sobrevivem e têm sua reprodução por via desses rejeitos, tais como as baratas, os ratos e, também, mosquitos. Fato é que, dessa forma, tem-se acentuado o grau de insalubridade do trabalho dos catadores de resíduos, uma vez que o risco de contaminação pode se dar por transmissão direta, por meio de bactérias, vírus e vermes, transmitindo doenças aos que manuseiam estes rejeitos; e de maneira indireta, ao alcançar um maior número de pessoas, pois advém da contaminação do solo, da água e até do ar, além dos insetos, que são vetores de algumas doenças (FUNASA, 2013).
Entre outros riscos aos quais os catadores estão diariamente sujeitos têm-se: a exposição ao calor, à chuva, ao risco de quedas, aos atropelamentos, aos cortes em razão de vidro quebrado, ao mau cheiro dos gases e à fumaça exalada dos resíduos acumulados, às longas jornadas de trabalho, ao levantamento de peso excessivo e às contaminações por alguns materiais. Logo, em virtude de o contexto no qual desempenham sua atividade laboral ser permeado por fatores que os colocam em condição de risco constante, a ocorrência de acidentes de trabalho não é incomum.
Dos 32 entrevistados, 18 relataram já ter sofrido algum tipo de acidente relacionado ao trabalho, conforme se verifica na tabela abaixo:
Figura 1 – Já sofreu algum acidente relacionado ao trabalho?
Fonte: Pesquisa empírica realizada pelo autor – UNIFOR - 2017
Não por acaso, a atividade laboral dos catadores é considerada como insalubre em grau máximo, conforme estabelecido na Norma Regulamentadora NR-15, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), de forma a exigir maiores cuidados em termos de utilização de equipamentos de proteção individual (EPI´s) e a disponibilidade de locais mais adequados para a atividade laboral. O EPI é um dispositivo utilizado pelo trabalhador que se destina a protegê-lo contra riscos capazes de ameaçar a sua segurança e a sua saúde. No entanto, assim como a própria política de treinamento para a coleta, não basta prever o uso de EPI´s, é preciso fiscalizar sua utilização.
Todavia, a realidade atinente à utilização dos equipamentos de proteção individual ainda é muito distante do desejado, devido a baixa efetividade de políticas relativas ao treinamento para a coleta, o que corrobora a análise dos dados referentes aos acidentes de trabalho, uma vez que a não utilização do EPI potencializa os riscos de tais incidentes acontecerem. Nesse sentido, o que se extraiu, fruto da observação, foi que, de maneira uniforme, os catadores mencionaram o incômodo ao utilizar o equipamento, uma vez que atrapalha em demasia o manuseio do resíduo e provoca calor excessivo. Dos 32 entrevistados, 29 relataram não terem EPI´s. Apenas 3 disseram ter o equipamento de proteção individual, conforme se verifica na tabela abaixo:
Figura 2 – Tem equipamento de proteção individual?
Fonte: Pesquisa empírica realizada pelo autor – UNIFOR - 2017
Faz-se necessário mencionar a existência da Norma Regulamentadora Nº 6 (NR-6), a qual dispõe sobre a obrigatoriedade recíproca entre os sujeitos da relação de trabalho relativamente ao uso do EPI, uma vez que o empregador deve fornecer e exigir seu uso, bem como o empregado deverá utilizá-lo. Contudo, num contexto de trabalho por conta própria, sem vínculo empregatício ou associativo – recorte do presente trabalho –, tal fornecimento dos equipamentos atrelado à devida exigência quanto ao uso não são observados. Caso houvesse vinculação a uma associação ou cooperativa seria mais viável que fossem fornecidas informações e disponibilizados equipamentos de proteção. Mas na prática a relação mais comum que os catadores não-associados mantêm é com os donos de depósitos, os chamados “deposeiros”, que além de pagarem pouco pelo material coletado não têm preocupação com as condições em que o trabalho é exercido.
Não menos importante do que o uso dos equipamentos de proteção individual, a capacitação para coleta, movimentação e armazenamento do resíduo, além de ser um ponto fundamental para a implantação de Programa de Gerenciamento de Resíduos Sólidos, tem relação direta com a situação de vulnerabilidade na qual os catadores estão inseridos. O trato de cada resíduo e os riscos a eles correlatos não se desgarram da atividade dos catadores, dessarte, acidentes no desenrolar de sua atividade não são incomuns, principalmente, no que se refere a cortes e ferimentos.
Dos 32 entrevistados, apenas 1 relatou ter recebido treinamento para a coleta por parte da “SUCAM”, conforme se constata na tabela abaixo. Todavia, desde 1990, surgiu a Fundação Nacional de Saúde – FUNASA, como resultado da fusão de várias entidades atuantes na área de saúde, dentre os quais se destacam a Fundação Serviços de Saúde Pública (Fsesp) e a Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam). A confusão quanto ao termo se dá, certamente, pela condição de acentuada exclusão social e, consequentemente, de desinformação – aspecto que será melhor abordado no tópico 3 deste trabalho – na qual os catadores não-associados desempenham suas atividades laborais.
Nesse sentido, há um notório desconhecimento quanto ao sujeito responsável pelo fornecimento de treinamento para lidar com os processos de catação, de manuseio do resíduo e de destinação dos rejeitos, os quais são de responsabilidade da FUNASA e se fazem mediante a ação do “sistema de tratamento e destinação final de resíduos” e pelo “sistema público de manejo de resíduos sólidos”.
Figura 3 – Recebeu algum treinamento para coleta?
Fonte: Pesquisa empírica realizada pelo autor – UNIFOR - 2017
A pesquisa confirmou ainda que a jornada de trabalho dos catadores de resíduos “não-associados” pode chegar a ultrapassar as 16 horas diárias.
Figura 4 – Qual sua jornada diária?
Fonte: Pesquisa empírica realizada pelo autor – UNIFOR - 2017
Mostra-se necessário incentivar alguma formalização dos catadores, em especial por meio da associação em cooperativas, visando minimizar as vulnerabilidades acima indicadas. A não existência de uma relação de emprego torna-se um obstáculo para que a proteção do direito do trabalho alcance esses trabalhadores. A perspectiva proposta pela OIT no que concerne a formas inaceitáveis de trabalho é que nenhum trabalho, independentemente do seu formato, deve ser realizado em condições inaceitáveis. Vale destacar que “essa perspectiva lança ao direito e ao direito do trabalho, especificamente, o desafio de estender a proteção legal ao trabalho do catador, tanto na garantia de seus direitos fundamentais – vida, liberdade, dignidade -, quanto na garantia de condições de trabalho justas” (GOMES; BERTOLIN, 2016, p. 402).
Nessa perspectiva, os catadores de resíduos, muitos dos quais são pessoas que em razão do êxodo rural vieram para as grandes cidades, se deparam com o excesso de mão de obra nas metrópoles, impossibilitando, assim, a sua inserção no mercado de trabalho. Essa situação é agravada pela sua baixa qualificação profissional, surgindo, por consequência, uma “população marginal”. Desta forma, verifica-se que, desde sua origem, figuram em uma situação de vulnerabilidade e exclusão social. Tais pessoas buscam oportunidades de trabalho que possibilitem a satisfação das condições mínimas de sobrevivência, encontrando na atividade da catação de resíduos um meio de mais fácil acesso, em razão da informalidade que lhe é inerente (GOMES; BERTOLIN, 2016).
No tocante às ações estatais direcionadas aos catadores de resíduos, tem-se a edição da Lei nº 12.305/2010, que instituiu a Política Nacional dos Resíduos Sólidos. Tal legislação consagrou a responsabilidade compartilhada dos diversos agentes da sociedade, sejam do setor público, sejam do privado, como fabricantes, importadores, distribuidores, comerciantes e consumidores (SOUTO, 2013).
Além disso, é relevante destacar que, na mesma direção da tutela ao trabalho relacionado aos resíduos sólidos, foi editado o Decreto nº 7.405/2010, que regulamenta a matéria veiculada na legislação supracitada, instituindo o programa Pró-Catador, com vistas a promover e realizar políticas públicas voltadas à organização produtiva dos catadores (ARAGÃO NETO; GOMES, 2016, p. 193). Em se tratando de medidas protetivas desta categoria de trabalhadores, a elaboração da Portaria 940, de abril de 2011, do Ministério da Saúde, constitui um dos marcos a serem destacados, pois estabelece numa de suas disposições – artigo 13 e seus incisos correspondentes – a possibilidade de atendimento nos serviços de saúde mesmo sem a apresentação do Cartão Nacional de Saúde. Como muitos catadores moram na rua e não conseguem guardar documentos, referida previsão normativa vai ao encontro da proteção de sua saúde, muito embora seja necessário aperfeiçoar o atendimento ao referido público nas unidades de saúde.
5 O DIREITO À INFORMAÇÃO COMO PRESSUPOSTO DA EFETIVAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
É nítido o progresso relativamente às ações desenvolvidas pelo Estado com o fito de tutelar a situação de vulnerabilidade dos catadores de resíduos. Entretanto, constata-se uma dificuldade referente à falta de informação satisfatória destinada ao público-alvo retro mencionado para a concretização de serviços prestados pelo Estado e de políticas públicas disponibilizadas. Como hipótese, encara-se tal carência de informação, relativamente aos catadores não-associados, como elemento que tende a impactar negativamente no processo de efetivação de direitos, de modo que a situação de precariedade se perpetua.
Foi constatado que dos 32 catadores entrevistados, 28 indivíduos não recebem benefícios assistenciais e previdenciários, tais como Bolsa Família, auxílio doença, seguro desemprego e etc., o que pode ser relacionado diretamente com a falta de informação ao público alvo destinatário referente ao que é necessário para a fruição de tais direitos.
Destaca-se que o direito à informação figura como elemento imprescindível para a concretização dos direitos dos catadores, uma vez que um dos pressupostos para a fruição de tais garantias é o seu conhecimento prévio. Contudo, contrariamente ao desejado, verifica-se que os catadores de resíduos padecem de desconhecimento, o que se evidencia com a confusão que fazem entre os termos “previdência social” e “assistência social”, não sabendo diferenciá-los.
Figura 5 – Recebe algum benefício da previdência social? Se sim, qual?
Fonte: Pesquisa empírica realizada pelo autor – UNIFOR - 2017
Cumpre assinalar que, além dos dados que demonstram que os catadores de resíduos não têm acesso a benefícios fornecidos pela previdência e pela assistência social, outra dificuldade que merece destaque é a situação comumente verificada com relação à falta de documentos de identificação, que constitui óbice para a fruição de diversos direitos, como se observa no atendimento nos postos de saúde. Por viverem na rua e não terem como guardar documentos, e, ainda, por perderem tais documentos com frequência, os catadores acabam sendo privados do acesso a vários serviços por razões burocráticas, situação que poderia ser evitada, por exemplo, com o uso de tecnologia, como é o caso do cadastramento biométrico.
Vale ressaltar que o acesso à informação deve ser resguardado e interpretado como um direito que possui o condão de efetivar o exercício da cidadania, possibilitando, assim, que os indivíduos usufruam seus direitos na integralidade e vivam em conformidade com os preceitos estabelecidos para o alcance de um mínimo existencial. Na mesma esteira, Jansen e Helena (2015, p. 141), aduzem que “o acesso à informação é condição para o exercício da cidadania, por ser pressuposto da consciência de direitos e deveres básicos”.
Nessa vereda, como requisito para o exercício pleno da cidadania, o direito à informação, conforme acertadamente aduzido por Souza e Jacintho (2016, p. 341), “integra a classificação de direitos fundamentais de natureza positiva e que, portanto, exigem do sujeito obrigado – o Poder Público ou o particular – uma prestação alheia para a sua efetiva fruição”. Desta maneira, tal direito se reveste de um caráter programático, sendo fundamental para a sua concretização uma atuação estatal positiva por meio de políticas públicas e programas específicos, sob pena de tornar-se norma constitucional ineficaz.
Ademais, destaca-se que o direito à informação também se encontra diretamente ligado à dignidade da pessoa humana, uma vez que aquele possibilita o aumento da efetividade das políticas públicas criadas pelo Estado e, por conseguinte, dos direitos garantidos para os catadores de resíduos, possibilitando, desse modo, melhorias na qualidade de vida dessa categoria de indivíduos. Nessa perspectiva, Flávio Henrique Franco Oliveira (2014, p. 108) aduz que “toda pessoa é digna e, por essa condição particular, vários direitos fundamentais são conquistados e declarados com o objetivo de proteger a vida como um todo”.
Assim, frise-se que, como o direito à informação possui o status de direito fundamental, deve ser primordialmente assegurado pelo Estado, uma vez que dele decorrem diversos outros direitos da mesma categoria, como é o caso dos direitos sociais e a proteção da dignidade da pessoa humana (SOUZA; JACINTHO, 2016, p. 350). Todavia, apesar da relevância do acesso à informação para a concretização das medidas estatais, por diversas vezes o Poder Público se revela negligente quanto à sua efetivação, o que pode ocasionar nefastas consequências para os demais direitos, como o direito à saúde e à assistência social, conforme ficou evidenciado na pesquisa realizada.
A propósito, Varanda e Adorno (2004, p. 67) examinam a relação entre o direito à saúde e a situação das pessoas que vivem em situação de rua, evidenciando a precariedade constatada de forma nítida e comum, em virtude da ausência, insuficiência ou inadequação das políticas públicas:
Um grande número de pessoas que vive nas ruas raramente procura o serviço de saúde, enquanto suporta a presença dos sintomas de doenças, recorrendo à rede ambulatorial em último caso, com a acumulação de vários problemas de saúde. Muitas pessoas só se submetem a tratamentos de saúde quando são conduzidas pelo serviço de resgate ou por meio de instituições de assistência, portanto encontram dificuldades em recorrer a eles espontaneamente e ou ainda pela reincidência de doenças maltratadas, como tem acontecido com casos de tuberculose. A familiaridade com as doenças (referida por Gregis, 2002, entre meninos de rua, pela “morte anunciada e narrada”) que vão se instalando e se agravando lentamente em decorrência da debilidade física e da perda da imunidade, se estende também às doenças sexualmente transmissíveis ou adquiridas através da convivência com outras pessoas doentes.
Sendo assim, verifica-se que o direito à informação se relaciona diretamente com diversos outros direitos abordados acima e constitui elemento essencial para a efetivação das políticas públicas, notadamente no âmbito do direito à saúde e do direito à previdência e à assistência social, devendo, portanto, receber a devida atenção pelo Poder Público, uma vez que, sem o conhecimento das políticas públicas e dos direitos consagrados, não há como efetivá-los em relação aos catadores de resíduos.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa possibilitou uma análise baseada em dados empíricos sobre a situação da proteção sanitária, previdenciária e assistencial dos catadores de resíduos sem vínculo associativo na cidade de Fortaleza/CE. Tal análise se deu a partir da teoria das capacidades elaborada por Martha Nussbaum, a qual identifica dez capacidades que são necessárias para a vida com a devida dignidade, como a referente à saúde e à integridade física, que podem contribuir para a densificação de direitos fundamentais com elas relacionados. O desdobramento dessas capacidades abrange, dentre outros aspectos, a possibilidade de o ser humano viver uma vida com duração normal, com saúde, em um local adequado de moradia e protegido da violência. Relaciona-se ainda com a noção de trabalho decente, desenvolvida pela OIT, que inclui a ampliação da proteção social e a eliminação de trabalhos insalubres, que também é um dos objetivos de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas para o período de 2015 a 2030.
Entretanto, a pesquisa empírica demonstrou que a situação dos catadores de resíduos está longe de garantir as capacidades mínimas indicadas. Verificou-se que, dos 32 entrevistados, 18 relataram já ter sofrido algum acidente relacionado ao trabalho, sendo uma consequência do contato com fatores que os colocam em condição de risco constante. Ademais, no que se refere às políticas relativas ao treinamento para a coleta de resíduos, observa-se sua baixa efetividade, além da pouca utilização de equipamentos de proteção individual, tendo sido constatado que 29 indivíduos informaram não utilizá-los. Também se destaca a longa duração das jornadas de trabalhos, que podem vir a ultrapassar 16 horas diárias.
Desse modo, conclui-se que é necessária uma proteção diferenciada para tal grupo, visando diminuir ou eliminar os riscos a que estão expostos. Para tal fim, uma informação adequadamente prestada deve figurar como um dos principais objetivos do Estado, seja a informação relativa a políticas públicas de saúde, prevenção e tratamento de dependência química, acesso a serviços de saúde, direitos previdenciários e assistenciais e também sobre a possibilidade de maior formalização por meio do ingresso em associações ou cooperativas.
Ademais, resta necessária a inserção formal dos catadores de resíduos no processo de gestão dos resíduos das grandes cidades, de preferência em pontos de coleta de resíduos mantidos ou credenciados pelo poder público, que garantam uma remuneração mais digna e menor dependência dos chamados “deposeiros”. Tais pontos de coleta poderiam ainda servir como locais em que as demais informações necessárias à fruição de direitos poderiam ser prestadas, contribuindo para minorar a precariedade em que os catadores estão inseridos.
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1 A Organização Internacional do Trabalho define, como sendo “formas de trabalhos inaceitáveis”: As situações laborais que negam os princípios e direitos fundamentais no trabalho ou que colocam em risco as vidas, a saúde, a liberdade, a dignidade humana ou a segurança dos trabalhadores ou que sujeitam os agregados familiares a condições de pobreza são inaceitáveis.
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ISSN: 2178-2466