SOBRE A MASSIFICAÇÃO DOS AGROTÓXICOS NO BRASIL E OS LIMITES JURÍDICOS PARA A RESPONSABILIZAÇÃO INTERNACIONAL PELOS PRE-JUÍZOS OCASIONADOS AO DIREITO À SAÚDE DE CRIANÇAS
ABOUT THE MASSIFICATION OF AGROTOXICS IN BRAZIL AND THE LEGAL LIMITS OF INTERNATIONAL RESPONSABILITY DUE TO DAMAGES CAUSED TO THE CHILDREN HEALTH RIGHTS
Isabelle Maria Campos Vasconcelos ChehabI
Maria Cristina Vidotte Blanco TarregaII
I Universidade Federal de Goiás (UFG), Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da UFG, Goiânia, GO, Brasil. Doutora em Direito. E-mail: ivchehab@gmail.com
II Universidade Federal de Goiás (UFG), Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da UFG, Goiânia, GO, Brasil. Doutora em Direito. E-mail: mcvidotte@gmail.com
E-ISSN: 2178-2466
DOI: http://dx.doi.org/10.31512/rdj.v19i34.3233
Recebido em: 09.08.2019
Aceito em: 15.10.2019
Sumário: 1 Introdução. 2 Panorama conceitual e histórico sobre os agrotóxicos no Brasil. 3 Das normativas nacionais e internacionais sobre a matéria. 4 Limites jurídicos para a respon-sabilização internacional pelos prejuízos ocasionados à saúde de crianças. Conclusões. Referências.
Resumo: O Brasil consome 20% de todo o agrotóxico produzido no mundo. Somente até o mês de julho de 2019, 290 novas substâncias agrotóxicas foram liberadas pelo governo brasileiro. Conforme dados do Greenpeace, dessas novas substâncias, 41% são consideradas extremamente tóxicas, enquanto 32% são proibidas pela União Europeia. Estudos recentes demonstram que a crescente massificação de agrotóxicos no Brasil enseja prejuízos à saúde das mais diversas ordens e para os mais distintos segmentos, com destaque para as crian-ças, em razão da sua peculiar condição de desenvolvimento. O presente trabalho assume por objetivo prin-cipal analisar o fenômeno da massificação dos agrotóxicos no Brasil e os limites jurídicos para a responsabi-lização internacional pelos prejuízos severos ocasionados ao direito à saúde de crianças. Para tanto, valeu-se de pesquisa bibliográfica e documental. No primeiro tópico, apresentou-se um panorama conceitual sobre agrotóxicos no Brasil. Já no segundo, declinaram-se as normas nacionais e internacionais referentes – direta ou indiretamente - à matéria em estudo. Finalmente, no terceiro tópico, comentou-se sobre os possíveis pro-cedimentos utilizados para a responsabilização do Estado brasileiro e das empresas transnacionais do agro-negócio, no que concerne à produção, comercialização e distribuição massificadas de agrotóxicos no territó-rio nacional, dados os prejuízos ocasionados ao direito à saúde de crianças.
Palavras-chave: Agrotóxicos. Crianças. Brasil. Direito à saúde. Responsabilização internacional.
Abstract: Brazil consumes 20% of all pesticides produced in the world. Only until July 2019, 290 new pesti-cides were released by the Brazilian government. According to Greenpeace data, 41% of these new substanc-es are considered extremely toxic, while 32% are banned by the European Union. Recent studies show that the increasing massification of pesticides in Brazil causes damages to the health of the most diverse orders and to the most distinct segments, especially children, due to their peculiar condition of development. The main objective of this paper is to analyze the phenomenon of massification of pesticides in Brazil and the legal limities of international liability for damages caused to the right to health of children. In order to do this, it was used bibliographic and documentary research. In the first topic, a conceptual overview of pesticides in Brazil was presented. In the second, the national and international norms referring - directly or indirectly - to the subject under study were declined. Finally, in the third topic, it was commented on the possible procedures used for the accountability of the Brazilian State and the transnational agribusiness companies, regarding the mass production, marketing and distribution of pesticides in the national territory, given the damages caused to children’s health.
Keywords: Pesticides. Children. Brazil. Right to health. International Responsability.
1 Introdução
Em tempos de neoliberalismo, os direitos fundamentais e a democracia de alta densidade se tornaram elementos descartáveis, em razão, sobretudo, da demanda inesgotável do mercado por progressivos lucros e dividendos. Pessoas são cotidianamente subalternizadas, quando não precificadas, diante de eventuais prejuízos provocados por grandes empresas, especialmente as denominadas transnacionais. Vida e saúde, por seu turno, são vislumbradas como meras commodities que, ao sabor do humor e do interesse das corporações financeiras, podem – ou não – ser objeto de proteção.
Nesse contexto, a produção, a utilização, a circulação e a comercialização massificadas de agrotóxicos em solos brasileiros têm rendido numerosos prejuízos à saúde da população, uma vez que não costumam estar fielmente jungidas ao disposto pelas normativas nacionais tampouco pelos documentos internacionais. Ou, quando o fazem, gozam de extenso lastro de flexibilidade – administrativa e/ou judicial - para se valer de substâncias ou quantidades inadequadas à vida humana e ao meio ambiente.
Tais danos ganham uma proporção mais ampla quando dizem respeito à saúde de crianças, considerando a sua própria condição peculiar de desenvolvimento, explicitadas por normas nacionais – a exemplo da Constituição da República Federativa do Brasil (1988) e do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) – e normas internacionais – como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), Pacto de San José da Costa Rica (1969) e Convenção sobre os Direitos das Crianças (1989) – que, conjuntamente, exigem cuidados específicos para resguardar o seu bem-estar físico, social e ambiental, os quais, se não forem minimamente observados, costumam trazer prejuízos irreversíveis ao seu crescimento e desenvolvimento humano adequados.
Diante desse quadro, a reflexão central que aqui se apresenta é: seria possível responsabilizar, por intermédio das normativas nacionais e internacionais, o Estado brasileiro e/ou as empresas transnacionais do agronegócio, com autorização para produzir, comercializar e distribuir agrotóxicos no território nacional, pelos prejuízos ocasionados à saúde de crianças?
Com esse objetivo, dividiu-se o texto da seguinte maneira: na sua primeira parte, apresentou-se um panorama conceitual sobre agrotóxicos no Brasil; na segunda, declinaram-se as normas nacionais e internacionais referentes – direta ou indiretamente - à matéria; e, finalmente, na terceira, comentou-se sobre os possíveis procedimentos utilizados para a responsabilização do Estado brasileiro e das transnacionais do agronegócio, no que concerne à produção, comercialização e distribuição massificadas de agrotóxicos no território nacional, em razão dos severos prejuízos ocasionados à saúde de crianças.
No que tange à metodologia, aclara-se que esta pesquisa será dotada de caráter bibliográfico interdisciplinar, à medida que, conjugado à doutrina jurídica, serão permeadas a Geografia, Sociologia, História, Agronomia e Economia. Também, registra-se o seu cunho documental, pela utilização de relatórios, dossiês, normativas e dados estatísticos. Ainda, deve ser entendida como pesquisa aplicada, considerando o seu intuito de colaborar, por meio dos dados aqui reunidos, para a construção de uma sociedade capaz de reconhecer a magnitude da dignidade, da vida e da saúde da pessoa humana, em especial de suas crianças. Ademais, trata-se de ensaio eminentemente qualitativo, dada a sua perspectiva de buscar compreender o contexto do objeto investigado. Ainda, ressalta-se que, para a consecução dos objetivos arrolados, pretende-se utilizar dados estatísticos colhidos junto ao atual Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), além de arquivos, relatórios e registros disponíveis nos sítios da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), conforme adiante será explicitado.
2 Panorama conceitual e histórico sobre os agrotóxicos no Brasil
Os agrotóxicos, também denominados de “defensivos agrícolas” ou “agroquímicos”, são produtos e agentes de processos físicos, químicos ou biológicos utilizados na agricultura para controlar pragas e doenças consideradas nocivas à produção, tendo por fundamento – e norte – o modelo hegemônico de agricultura de monocultura de larga escala produtiva, sem rotatividade. O argumento central para tal é que o uso de agrotóxicos otimiza a produção. Por outra banda, o seu uso em caráter massivo, esgota o solo, prejudica a natureza e a saúde humana. Nesse contexto, o que se observa, de fato, é uma captura da prática agrícola pela indústria química. Nas últimas décadas, a agricultura passou a ser controlada pela indústria química que, por sua vez, controla também a produção e o comércio das sementes e cultivares, de acordo com a possibilidade do uso dos produtos químicos que coloca no mercado. Pior: com o processo de industrialização de alimentos, essa situação se agrava, em razão, principalmente, do amplo uso de combustíveis fósseis e outros intoxicantes.
Nesses termos, Lutzemberg (2019, ONLINE) adverte que o atual sistema de produção de alimentos “começa nos campos de petróleo e continua nas minas, passa pelas refinarias, siderúrgicas, plantas de alumínio, indústrias químicas, de maquinário, de embalagens, pelo envolvente sistema de transporte (consumindo principalmente combustíveis fósseis...”, o que lhe faz concluir que a manipulação de alimentos “mais mereceria ser chamada de indústria de desnaturação e contaminação de alimentos (com aditivos e resíduos de agrotóxicos).”
Esse processo agroquímico industrial, que fomenta o crescente uso de agrotóxicos, como se conhece hoje, se dá, primordialmente, a partir da Segunda Guerra Mundial (ALVES FILHO, 2002, p. 24), embora haja registros de fábricas de produtos químicos para a agricultura desde o final do século XIX, operado com o desenvolvimento das armas químicas e da expansão do uso de biocidas, sintetizados na produção de alimentos, sobretudo, pelas indústrias químicas alemãs e americanas,
O uso dos agrotóxicos relaciona-se, portanto, à busca de métodos para a otimização da produção de alimentos e outros produtos agrícolas; criação de animais; e estocagem destes produtos para fins alimentares e medicinais, vislumbrando um aumento populacional. A agricultura científica ou moderna trabalha com o conceito de praga biológica ou doença, o que direciona ao manejo de substâncias químicas, ou seja, levam ao uso do agrotóxico1. Nesse diapasão, Alves Filho considera dois fatores antropogênicos determinantes do modelo, quais sejam: a expansão do comércio mundial de alimentos e produtos derivados de plantas e a mudança nos padrões e a intensificação de produção e a implementação predominante de monoculturas. (ALVES FILHO, 2002, p. 32)
Nesses termos, Alves Filho classifica historicamente os agrotóxicos em quatro gerações. A primeira geração, datada do final do século XIX e os trinta primeiros anos do século XX, caracteriza-se pelo uso de produtos químicos constituídos basicamente por compostos inorgânicos à base de flúor, arsênio, mercúrio, selênio, chumbo, bórax, sais de cobre e zinco. (ALVES FILHO, 2002, p. 26-27) A marca da segunda geração é a comercialização, em 1932, do primeiro produto inseticida desenvolvido por síntese orgânica, à base de tiocianato, denominado Lethane 384. Já terceira geração, a partir dos anos sessenta, mais consciente dos efeitos danosos dos agroquímicos, caracteriza-se pela busca por produtos menos tóxicos à saúde, dando origem a formulações à base de semioquímicos (ferormônios), os fisiológicos (diflubenzuron), os biológicos (Bacillus thuringienis) e os piretróides. A quarta geração marca os “avanços nos estudos entomológicos, sobretudo em relação ao campo da fisiologia dos insetos”, por meio dos quais se descobriu substâncias com ações sofisticadas, que atuam no sistema endócrino (por exemplo, methoprene), apresentando, assim, algumas vantagens em relação as gerações anteriores.
Em que pesem as terríveis contaminações ambientais provocadas pelos agrotóxicos, seja da água (com o lançamento dos praguicidas e fertilizantes no lençol freático), do ar (lançamento de monóxido de carbono, ozônio e óxidos de enxofre e nitrogênio) e do solo diretamente (PEDROZA, 2011, p. 88), argumentos são postos em favor de seu uso.
Alves Filho apresenta as principais linhas de argumentação e posicionamentos prós e contras os agrotóxicos, entre os quais, favoráveis destacam-se que: “salvam vidas, pois controlam as doenças transmitidas por vetores”, “aumentam a disponibilidade de alimentos e diminuem seus custos de produção” e “aumentam o lucro de agricultores”; “funcionam melhor e mais rápido que outras alternativas” para controle de pragas e geram “produtos mais seguros e efetivos estão continuamente sendo desenvolvidos”. (ALVES FILHO, 2002, p. 27-28)
A resposta, no que diz respeito à nocividade, aponta para os seguintes aspectos: “o desenvolvimento da resistência genética”, “a morte dos inimigos naturais e a conversão de pragas secundárias em pragas primárias”, “círculo vicioso dos agrotóxicos” (a maior resistência genética da praga exige o uso mais intenso e contínuo do produto químico ou de um mais agressivo), “a mobilidade dos agrotóxicos no ambiente”, “amplificação biológica dos agrotóxicos, “as ameaças à vida silvestre” “as ameaças de curto prazo à saúde humana pelo uso e fabricação de agrotóxicos”; e “as ameaças de longo prazo à saúde humana.” (ALVES FILHO, 2002, p. 28-29).
Por outro lado, é curial verificar que, com o desenvolvimento da biologia molecular e da engenharia genética, a grande discussão se ampara nos transgênicos, como uma possível quinta geração, dado o consequente aumento do uso de agrotóxicos, seus impactos à saúde humana e ao meio ambiente - no curto, médio e longo prazos.
Desta feita, observa-se que o debate sobre os agrotóxicos se relaciona sempre com a questão alimentar, tentando reforçar a ideia da necessidade de modelos produtivos avançados para combater a fome nos países subdesenvolvidos para, quiçá, colocar-lhes em posição de igualdade àqueles ricos, cuja produção agrícola é industrializada. Jacques Chonchol afirma que, desde os anos de 1930, há uma contradição em torno da questão alimentar- de um lado estavam os agricultores dos países industrializados, que não conseguiam comercializar os excedentes da produção; e de outro, “os progressos nos conhecimentos científicos sobre a biologia humana conduzem a conceber e analisar o problema da desnutrição. ”(CHONCHOL, 2018, p. 33) O paradoxo entre a abundância de alimentos em algumas regiões do mundo e a subnutrição em outros se mantém, mas, sobretudo, como resultado da proposta neoliberal globalizada exploratória e como reflexo de políticas repressivas aos desfavorecidos socioeconomicamente.
Considerando as duas últimas décadas do século XX, Jacques Chonchol advertiu que na América Latina houve uma mudança no modelo de desenvolvimento no setor rural baseado na substituição de importações e de industrialização interna, bem como na abertura externa, promoção de exportações e de sua liberalização. (CHONCHOL, 2008, p. 184) O sistema de produção agrária e renda se concentrou em poucos latifundiários, visando ao mercado externo, marginalizando os pequenos produtores familiares ou subfamiliares e os trabalhadores sem-terra, causando-lhes o desvelamento econômico, o que repercutiu diretamente na segurança alimentar - seja quanto à produção de alimentos, quanto ao seu acesso. (CHONCHOL, 2005, p. 43;47)
Outrossim, as grandes empresas do agronegócio (produtores de agroquímicos e de sementes, de agroindústrias alimentares ou de cadeia de supermercados), a maioria multinacionais, causaram grande pressão aos agricultores, impactando, ainda mais, na concentração e internacionalização da produção. Essa situação repercutiu na população urbana que, pela falta de políticas de pleno emprego e má distribuição de renda, teve dificultado o acesso à boa alimentação, a qual já se mostra prejudicada pela intensa exportação de produtos (CHONCHOL, 2005, p. 43;47) primários e pela sua pouca variedade, em razão do predomínio das monoculturas.
No Brasil, o marcador temporal do uso de agrotóxicos se configura, primordialmente, após a Segunda Guerra Mundial, quando “os primeiros registros de compostos organoclorados foram feitos no ano de 1946. Nesse mesmo período, foram introduzidos os inseticidas sistêmicos e, em 1958, os antibióticos à base de sais de estreptomicina”; ademais, entre os anos de 1954 a 1960, houve um intenso processo de registro de novos produtos agroquímicos no Ministério da Agricultura (ALVES FILHO, 2002, p. 25), quando a matéria passa a ser objeto de regulamentação legal
Nesse ponto, é fundamental explicitar que a Lei n. 7.802, de 11 de julho de 1989, conhecida como Lei dos Agrotóxicos, alterada pela Lei n. 9.974, de 6 de junho de 2000 e regulamentada pelo Decreto n. 4.074, de 4 de janeiro de 2002, define tais substâncias, em seu art. 2º., inciso I, alínea “a”, como sendo: “os produtos e os agentes de processos físicos, químicos ou biológicos, destinados ao uso nos setores de produção, no armazenamento e beneficiamento de produtos agrícolas, nas pastagens, na proteção de florestas, nativas ou implantadas, e de outros ecossistemas (...).” Igualmente, esclarece que a suposta finalidade dos agrotóxicos é: “(...) alterar a composição da flora ou da fauna, a fim de preservá-las da ação danosa de seres vivos considerados nocivos”
Por seu turno, o sítio oficial do atual Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) repisa a definição explicitada pela Lei dos Agrotóxicos, ao que adiciona a seguinte informação: “também são considerados agrotóxicos as substâncias e produtos empregados como desfolhantes, dessecantes, estimuladores e inibidores de crescimento.”
Consoante pesquisa da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), responsável pela confecção do Dossiê Científico e Técnico contra o Projeto da Lei do Veneno 6. 299/2002 (2018, p.39), “(...) o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos e, em dez anos, o mercado brasileiro de agrotóxicos cresceu 190%” Nesse sentido, alerta a professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) Larissa Bombardi, autora do Atlas sobre o Agrotóxico, publicado em 2017, por meio do qual concluiu que: “o Brasil consome 20% de todo o agrotóxico comercializado no mundo”. (BOMBARDI, 2017, p. 35) Destarte, se considerados apenas os prejuízos imediatos consequentes de tamanha exposição, podem ser relacionados, entre outros, os seguintes: “intoxicações crônicas, caracterizadas por infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxicidade, manifestada através de distúrbios cognitivos e comportamentais e quadros de neuropatia e desregulação hormonal, ocorrendo também em adolescentes [...].” (ABRASCO, 2018, p. 39)
Constata-se, portanto, como indubitável que as crianças estão entre os maiores prejudicados pela avançada massificação de substâncias agrotóxicas. Primeiramente, porque, a depender do tamanho da exposição, que, por meio dos dados preliminares acima relacionados, já registram sua magnitude, os danos físicos e psicológicos, principalmente na primeira infância, são irreversíveis. Em segundo lugar, porque tamanha massificação na exposição e circulação de agrotóxicos ensejam prejuízos ao porvir das nossas crianças, sobretudo no que concerne à sua condição de cognição holística, a exemplo da substância intitulada clorpirifós, o qual “[...] deixa traços nos alimentos e, no organismo humano, causa danos como distúrbios hormonais, deficiência mental irreversível nos fetos e diminuição de até 2,5 pontos de QI (quociente de inteligência) das crianças” (CARTA CAPITAL, 2019, ONLINE). Em solos brasileiros, sua utilização é, infelizmente, massificada. “Em 2009, foram vendidas 3 toneladas do produto, segundo monitoramento do Ibama. Oito anos depois, as vendas ultrapassaram as 6,4 toneladas. (CARTA CAPITAL, 2019, ONLINE). “Em terceiro lugar, deve ser explicitado que as crianças, mesmo que não expostas diretamente às substâncias agrotóxicas, podem ser alvos de intoxicações cruzadas, a saber: decorrentes da exposição dos seus pais e/ou demais adultos cuidadores que, eventualmente, repassam-lhes tais substâncias, mesmo que em pequenas ou médias quantidades, por meio do seu contato com os infantes. Nesse caso pontual, frisa-se: a depender da quantidade da exposição, os prejuízos só serão sentidos pelas crianças, em razão da sua peculiar condição de desenvolvimento e de defesas orgânicas. Em quarto lugar, é imperioso registrar os malefícios centrais relacionados e provocados por uma substância chamada glifosato, banida em diversos países da Europa, alvo de condenação judicial nos Estados Unidos da América, e levada ao status estelar pelo mais recente governo brasileiro. Tal substância vem sendo alvo de severas críticas pela comunidade científica internacional, com destaque para os estudos desenvolvidos pela bióloga do MIT Stephanie Seneff, que estabelece possíveis vínculos entre a massificação do uso de glifosato e o aumento dos casos de autismo, Alzheimer e câncer no mundo. De acordo com matéria veiculada pelo Laboratório de Demografia e Estudos Populacionais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), “Sua preocupação parece bem fundamentada, considerando que tem sido encontrado glifosato no sangue e na urina de mulheres grávidas, e ele tem aparecido até em células fetais.” Ainda, convém explicitar que pesquisas realizadas pela Universidade de Harvard, publicadas durante o ano de 2018, dão conta que os agrotóxicos concorrem diretamente para a diminuição da fertilidade e o aumento de abortos espontâneos. Precisamente, pesquisadores de Harvard constataram, a partir de uma amostragem com 325 mulheres, que: “ (...) mulheres que comeram 2,3 porções ou mais de vegetais com alto teor de pesticidas tiveram 18% menos probabilidade de engravidar do que aquelas que comeram menos de uma porção. Além disso, a chance de que estas mulheres tivessem um aborto espontâneo foi 26% maior.”
A despeito desse quadro assustador, até junho de 2019, foram aprovadas 290 novas substâncias agrotóxicas pelo governo brasileiro, das quais 41%, portanto, 118 são consideradas extremamente ou altamente tóxicas, enquanto 32% são proibidas na União Europeia (TAJRA, 2019, ONLINE). Dada a crescente massificação promovida, inclusive, sob os aplausos do atual presidente Jair Bolsonaro, o Brasil alcançou o número recorde superior a 2000 agrotóxicos liberados para produção, uso, circulação e exposição em todo o território nacional. (TAJRA, 2019, ONLINE) Como se não bastasse, no último dia 23 de julho do corrente, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), decidiu por alterar as suas normas referentes à classificação de riscos à saúde dos agrotóxicos e sua consequente publicidade. É dizer: a partir de agora, a ANVISA passou somente classificar/alertar substâncias que ensejam diretamente riscos de morte, de modo que serão desclassificadas aquelas, inclusive, extremamente tóxicas, as quais serão rebaixados para categorias moderadas. (CANCIAN, 2019, ONLINE)
Verifica-se, portanto, que os agrotóxicos são substâncias dotadas de elevado risco, o qual pode ser inexoravelmente majorado, se levado em conta o caso do Brasil, em particular, tendo em vista a franca omissão do Estado para com os expedientes utilizados pelas empresas transnacionais para difundir e capitalizar os seus lucros em território nacional. Pior: medidas recentes do atual governo, como as destacadas acima, referentes ao aumento do número de autorizações e registros de agrotóxicos e à redução de informações pela agência competente, ratificam a tese de que o Estado brasileiro pode estar concorrendo diretamente para eventuais danos físicos, morais e materiais em detrimento dos seus cidadãos, com destaque para a saúde e para a vida de crianças.
3 Das normativas nacionais e internacionais sobre a matéria
No âmbito nacional, a Constituição Federal de 1988 estabelece um rol de direitos e garantias específicos para a promoção e a defesa de crianças e adolescentes, regulamentado em normativa particular, por intermédio da edição da Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, também conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que assumiu um papel de protagonismo na sistematização e implementação da doutrina da proteção integral em prol de crianças e adolescentes.
Na Constituição Federal, tal matéria foi tratada, respectivamente, nos capítulos referentes aos direitos sociais e aos direitos de crianças e adolescentes, conforme adiante mencionado:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
[...]
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (grifos nossos)
Quanto ao ECA, já nos seus primeiros dispositivos, estabelece, de maneira expressa, a proteção integral que deve ser observada e implementada em favor de crianças e adolescentes, assim como os sujeitos responsáveis pela sua consecução, senão vejamos:
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.
Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.
Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade.
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem. (incluído pela Lei nº 13.257, de 2016)
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Notadamente, acerca dos direitos à vida, à saúde e à alimentação de crianças e adolescentes, os artigos 7º, 54 e 208, dispõem no seguinte sentido:
Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
[...]
Art. 54. É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente:
VII - atendimento no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.
[...]
Art. 208. Regem-se pelas disposições desta Lei as ações de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao não oferecimento ou oferta irregular:
VII - de acesso às ações e serviços de saúde;
No plano internacional, uma gama de instrumentos normativos reforça – direta e/ou indiretamente - a defesa e a promoção dos direitos à saúde e à vida, podendo ser enfatizados, entre outros, os dispositivos adiante firmados.
Especificamente no que concerne à Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), publicada em 1948, há menção tanto ao direito à vida, como à alimentação e à saúde adequadas, respectivamente nos seus artigos 3º. e 25, senão vejamos:
Art. ٣º. – Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
[...]
Art. 25, 1 – Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis.
Art. 25, 2 – A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social.
Por sua vez, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), editado em 1966, embora que somente internalizado no Brasil em 1992, possui um dispositivo específico sobre o direito à vida: Art. 6º, 1 – “O direito à vida é inerente à pessoa humana. Esse direito deverá ser protegido pela lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida”
Já o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDesc), também editado em 1966, mas recepcionado pelo Brasil, apenas, na mesma data do PIDCP, faz uso de quatro dispositivos para agremiar esforços em prol dos direitos à vida, à saúde e à alimentação de crianças, em especial, e, indistintamente, a todos os seres humanos, a saber:
Art. 10, 3 - Devem-se adotar medidas especiais de proteção e de assistência em prol de todas as crianças e adolescentes, sem distinção alguma por motivo de filiação ou qualquer outra condição. Devem-se proteger as crianças e adolescentes contra a exploração econômica e social [...]
Art. 11, 1 – Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequando para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria continua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento.
Art. 11, 2 – Os Estados Partes do presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de toda pessoa de estar protegida contra a fome, adotarão, individualmente e mediante cooperação internacional, as medidas, inclusive programas concretos, que se façam necessárias para: a) Melhorar os métodos de produção, conservação e distribuição de gêneros alimentícios pela plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo aperfeiçoamento ou reforma dos regimes agrários, de maneira que se assegurem a exploração e a utilização mais eficazes dos recursos naturais”
Art. 12 – Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde física e mental.
Igualmente, a Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, editada em 1969, mas ratificada pelo Brasil somente em 1992, estabelece em diversos dos seus artigos sobre os direitos à vida, à saúde e particularmente acerca dos direitos das crianças, consoante abaixo citado:
Art. 4º. – Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.
[...]
Art. 19 - Toda criança terá direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer, por parte da sua família, da sociedade e do Estado.
[...]
Art. 26 – Os Estados Partes comprometem-se a adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.
No que concerne às crianças, em específico, merece declinada a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada em 20 de novembro de 1989, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, e ratificada pelo Brasil já em setembro de 1990. Dentre outros dispositivos acerca da temática em discussão, merecem destaque:
Artigo 6º. - Os Estados Partes reconhecem que toda criança tem o direito inerente à vida.
Os Estados Partes devem assegurar ao máximo a sobrevivência e o desenvolvimento da criança.
[...]
Artigo 24, 1 - Os Estados Partes reconhecem o direito da criança de gozar do melhor padrão possível de saúde e dos serviços destinados ao tratamento das doenças e à recuperação da saúde. Os Estados Partes devem envidar esforços para assegurar que nenhuma criança seja privada de seu direito de usufruir desses serviços de cuidados de saúde.
Observa-se, portanto, que seja na esfera nacional, seja no contexto internacional, a promoção, a defesa e o monitoramento do direito à saúde, e, em última instância, do direito à vida, de crianças – e adolescentes – se encontram amplamente resguardados no sentido específico e/ou geral, respaldando, assim, qualquer eventual pleito ante a eventuais prejuízos praticados - e comprovados - em seu desfavor, o que se coloca em perspectiva, entretanto, diz respeito à responsabilização, sobretudo, a de cunho internacional, dos seus sujeitos passivos, matéria que será objeto de análise no tópico seguinte.
4 Limites jurídicos para a responsabilização internacional pelos prejuízos ocasionados à saúde de crianças
Diante dessa miríade de normativas apresentadas, percebe-se como inequívoca a proteção nos planos nacional e internacional dos direitos à vida e à saúde frente aos malefícios ocasionados pelos agrotóxicos. Particularmente, no que tange ao campo internacional, tal proteção se dá tanto no contexto amplo dos seus documentos, os quais retratam à saúde e à vida, em sentido genérico, como também no trato específico, pertinente, apenas, às crianças.
Há que se indagar, entretanto, sobre os possíveis procedimentos a se utilizar para uma eventual responsabilização do Estado brasileiro e das empresas do agronegócio, no que concerne à produção, exposição, comercialização e distribuição de agrotóxicos no território nacional, em razão dos seus prejuízos ao direito à saúde e, em última instância, ao direito à vida de crianças.
Nesses termos, vale sublinhar que, em conformidade com o art. 44, da Convenção Americana de Direitos Humanos, tem-se que: “Qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não-governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados membros da Organização, pode apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas de violação desta Convenção por um Estado Parte.”
Por semelhante modo, tal Convenção estabelece que, para o acolhimento da denúncia ou queixa, é necessário o cumprimento dos requisitos firmados nos seus artigos 46 e 47, a saber:
Art. 46 - 1. Para que uma petição ou comunicação apresentada de acordo com os artigos 44 ou 45 seja admitida pela Comissão, será necessário:
a) que hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios de direito internacional geralmente reconhecidos; b) que seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha sido notificado da decisão definitiva; c) que a matéria da petição ou comunicação não esteja pendente de outro processo de solução internacional; e d) que, no caso do artigo 44, a petição contenha o nome, a nacionalidade, a profissão, o domicílio e a assinatura da pessoa ou pessoas ou do representante legal da entidade que submeter a petição.
2. as disposições das alíneas “a” e “b” do inciso 1º deste artigo não se aplicarão quando:
a) não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenha sido violados; b) não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; e c) houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.
Art. 47 - A Comissão declarará inadmissível toda petição ou comunicação apresentada de acordo com os artigos 44 ou 45 quando:
a) não preencher algum dos requisitos estabelecidos no artigo 46; b) não expuser fatos que caracterizem violação dos direitos garantidos por esta Convenção; c) pela exposição do próprio peticionário ou do Estado, for manifestamente infundada a petição ou comunicação ou for evidente sua total improcedência; ou d) for substancialmente reprodução de petição ou comunicação anterior, já examinada pela Comissão ou por outro organismo internacional.
Ainda, determina que, ao admitir o pleito formulado, a Comissão deverá encaminhá-lo à Corte, a qual será responsável pela averiguação das alegações e por eventuais recomendações e/condenações aos seus Estados membros.
Observa-se, portanto, como plausível a possibilidade de acionar internacionalmente, por meio da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e, consequentemente, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, um Estado membro, em última instância, quanto ao prejuízo do direito à vida dos seus nacionais, em razão da omissão do sistema doméstico. A dúvida subsiste, todavia, no que diz respeito à razoabilidade de questionar empresas transnacionais pela sua implicação nos diversos danos à saúde das crianças provocados por agrotóxicos.
Defende-se que, nesse caso, qual seja, das empresas transnacionais vinculadas ao agronegócio, seria possível uma responsabilização por via reflexa, a partir da própria condenação do Estado brasileiro, como se deu, nos Estados Unidos da América, notadamente, por intermédio da Corte Federal de San Francisco – Califórnia, em março do corrente. Ademais, as crianças eventualmente prejudicadas por empresas transnacionais dessa natureza poderiam recorrer aos seus sistemas domésticos de justiça e/ou, simultaneamente, engrossar as fileiras, requerendo maior brevidade às discussões dos organismos internacionais e implementação em torno de um tratado, há muito propalado, sobre empresas e direitos humanos, notadamente no que concerne à explicitação e regulamentação da responsabilidade das empresas por violações aos direitos humanos, o que se configuraria em instrumento essencial contra a impunidade e a reincidência de danos provocados por empresas à saúde dos cidadãos em geral, com destaque para as crianças.
5 Conclusões
Os ditos agrotóxicos, também conhecidos como pesticidas ou defensivos agrícolas, são substâncias que, se não utilizadas de maneira tecnicamente adequada, podem gerar prejuízos irreversíveis aos seres humanos e ao meio ambiente.
Os solos brasileiros, em particular, têm sido alvo de uma crescente massificação do uso de substâncias agrotóxicas, sobretudo em razão do apoio à pauta pelo governo central vigente e da constante oferta/propagação de produtos e facilidades protagonizada pelas empresas transnacionais do agronegócio, ensejando vulnerabilidade e danos – diretos e indiretos – à saúde e, em última instância, à própria vida de nossas crianças.
A despeito disso, verificou-se que, nos planos nacional e internacional, há diversas normativas que conferem ampla proteção, pelo menos, formal, para a promoção e defesa dos direitos humanos à saúde e à vida, tanto no seu sentido genérico, como também no que se refere, exclusivamente, às crianças.
Ainda, averiguou-se da possibilidade genuína de acionar o Estado brasileiro, nos termos dos artigos 44 e seguintes da Convenção Americana de Direitos Humanos, junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para fins de admissibilidade e eventual julgamento pela Corte Interamericana, por danos decorrentes da exposição aos agrotóxicos, sobretudo, pela fragilização - e eventual concorrência para o perecimento - das vidas dos infantes.
Tal raciocínio, entretanto, não pode ser aplicado diretamente às empresas transnacionais, que somente podem ser objeto de responsabilização, por via reflexa, à condenação dos Estados membros, cabendo aos prejudicados uma petição à justiça doméstica e/ou ações de mobilização junto aos organismos internacionais, para pressioná-los à implementação de um tratado sobre empresas e direitos humanos, cujo teor possa colaborar diretamente para o estabelecimento de recomendações e condenações em face das corporações lesivas à promoção dos direitos da pessoa humana, em particular, das crianças.
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1 No texto, o termo agrotóxico é utilizado em sua amplitude máxima, de modo a abranger os agrotóxicos em geral, herbicidas, inseticidas e fungicidas.
Este obra está licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.
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ISSN: 2178-2466