AS NOVAS FAMÍLIAS POR PROJETOS PARENTAIS ASSISTIDOS HETERÓLOGOS: UMA PONDERAÇÃO SOBRE O ACESSO E OS CRITÉRIOS CONCERNENTES À ESCOLHA DO DOADOR DE GAMETAS
THE NEW FAMILIES BY HETEROLOGICAL ASSISTED PARENT PROJECTS: A PONDERATION ON ACCESS AND CRITERIA CONCERNING THE CHOICE OF THE GAMETER DONOR
Ana Thereza MeirellesI
Thais Novaes CavalcantiII
I Universidade Católica do Salvador (UCSal), Programa de Pós-Graduação em Direito Fundamentais e Alteridade da UCSal, Salvador, BA, Brasil. Doutora em Relações Sociais e Novos Direito. E-mail: anatherezameirelles@gmail.com
II Universidade Católica de Salvador (UCSal), Programa de Pós-Graduação em Direito Fundamentais e Alteridade da UCSal, Salvador, BA, Brasil. Doutora em Direito Constitucional. E-mail: tncav@uol.com.br
DOI: http://dx.doi.org/10.20912/rdc.v14i32.2929
Recebido em: 10.01.2019
Aceito em: 28.02.2019
Resumo: Artigo destinado a analisar o uso do procedimento de reprodução heteróloga assistida como um mecanismo de composição das novas formas de família. Tem-se como objetivo evidenciar que o procedimento tem legitimidade para concretizar projetos assistidos de monoparentalidade ou biparentalidade entre pessoas do mesmo sexo. Busca-se, assim, compreender quais são os critérios adequados para escolher o doador de gametas nos projetos heterólogos mencionados. Quanto à metodologia, a pesquisa é de natureza teórica, consistindo em predominância por levantamento bibliográfico e partindo do uso do método hipótetico-dedutivo. A ausente disciplina legal e a insuficiente disciplina da resolução do Conselho Federal de Medicina colaboram para a inexistência de parâmetros impeditivos no que tange à promoção de escolhas neoeugênicas ou pautadas em motivações não justificáveis, o que aponta para a conclusão de que é necessário estabelecer os limites demarcadores à realização de tal possibilidade seletiva.
Palavras-chave: Direito de família. Novos projetos parentais. Reprodução heteróloga. Escolha do doador de gametas Neoeugenia.
Abstract: Article intended to analyze the use of the heterologous reproduction procedure assisted as a mechanism for composing the new forms of family. The objective is to demonstrate that the procedure has the legitimacy to concretize assisted projects of single parenting or biparentality between people of the same sex. The aim is to understand the proper criteria for choosing the gametes donor in the heterologous projects mentioned. As for the methodology, the research is theoretical in nature, consisting of predominance by bibliographical survey and starting from the use of the hypothetic-deductive method. The absence of legal discipline and insufficient discipline in the resolution of the Federal Council of Medicine collaborate in the absence of impeding parameters regarding the promotion of neougenetic choices or based on unjustifiable motivations, which points to the conclusion that it is necessary to establish the limits to the realization of such a selective possibility.
Keywords: Family law. New parental projects. Heterologous reproduction. Choice of gametes donor. New eugenics.
Sumário: 1 Introdução; 2 A família sob o prisma contemporâneo e o acompanhamento paralelo pelo direito; 3 Projetos parentais e procedimentos de procriação assistida; 4 O uso da doação de gametas para consecusão de projetos parentais não convencionais; 4.1 Monoparentalidade programada e reprodução por casais do mesmo sexo; 4.2 Os parâmetros de escolha; 5 Conclusão. Referências.
1 Introdução
Os procedimentos médicos de reprodução humana assistida, fortalecidos pelas descobertas que propiciaram a consolidação do conhecimento genético, podem ser concretamente considerados como instrumentos auxiliares para formação da família contemporânea. Com isso, não há que se pensar, naturalmente, que a presença de filhos seja um elemento essencial à constatação da existência de uma família. Por isso, reafirma-se que a procriação assistida é um instrumento de função apenas auxiliar, capaz de contribuir para o surgimento de novas formas de família contemporâneas.
Possibilidades distintas, motivadas por demandas diversas, justificam a procura pelos procedimentos médicos assistidos, considerando, inclusive, a última regulamentação, por meio de resolução específica, no ano retrasado, pelo Conselho Federal de Medicina.
A procura pelos procedimentos pode ser justificada pela impossibilidade biológica de procriação por um dos genitores, o que pode ser resolvido com tratamentos que insistam no uso dos gametas no próprio casal, ou, em certas circunstâncias, em procedimentos que partam para o uso de material genético doado. A procura também pode ser motivada pela opção sexual do casal que deseja mover o projeto parental, de modo que duas pessoas do mesmo sexo podem optar pelo uso de material genético doado para concretizar uma gestação. Há ainda que se registrar a possibilidade de procriação por monoparentalidade programada, quando o projeto parental é apenas movido por decisão de uma única pessoa, conduta comumente conhecida como “produção independente”.
Disso então resulta que a reprodução assistida com o uso de célula germinativa doada (portanto na forma heteróloga) é a emergente alternativa à falibilidade dos procedimentos homólogos (os que usam as células do casal ou da pessoa demandante). A forma heteróloga de reprodução demanda a existência de um terceiro anônimo, a fim de resolver o problema decorrente da ausente viabilidade do gameta de quem deseja procriar, corroborando a ideia de que o vínculo biológico jamais deve ser concebido como o único liame formador da família.
Depreende-se naturalmente que o recurso da doação de material germinativo é um instrumento capaz de contribuir significamente para a formação de novas famílias, no entanto, através desta pesquisa, busca-se apontar os desdobramentos de tal possibilidade, tendo em vista a inexistência de parâmetros legais que apontem para os critérios que devem envolver a escolha de tais doadores. Há potencial possibilidade de que a escolha do doador seja feita a partir das suas características externas ou do seu aspecto físico e/ou estético, ou, ainda, sem qualquer tipo de liame específico, com base apenas no fato de que haja, no banco de doadores, apenas pessoas com determinadas características, fatos que demandam uma análise de natureza ético-jurídica.
Esta pesquisa tem natureza teórica e pressupõe levantamento bibliográfico consistente, considerando a discussão da temática, ainda não regulamentada pelo direito brasileiro, fora do país. Parte-se de uma análise metodológica à luz da proposta hipotético-dedutiva, com vistas à identificação da solução ao problema descrito.
2 A família sob o prisma contemporâneo e o acompanhamento paralelo pelo Direito
Regulamentar novas formas de família nem sempre foi tarefa fácil para o Direito. Isto porque a regulamentação demanda o repensar de valores ou de uma moralidade tradicionalmente considerada pela norma. Recepcionar novas formas de família do ponto de vista normativo representa a ruptura com tradicionalismos e argumentos históricos.
Cabe o registro de que o Direito encontra dificuldade para “alcançar e manter uma convergência de valores sobre certas matérias em um contexto de conflito e diversidade, porque o próprio antagonismo é estimulado nas sociedades democráticas”. O Direito na busca por um consenso possível não deve ignorar essa conjuntura, posto que “a própria democracia deve criar espaço para a expressão de valores e interesses conflitantes”1. A regulamentação da família pelo Direito deve ser o reflexo dessa multiplicidade, que envolve valores e demandas diferentes, e fomenta a sociedade plural.
Acrescente-se o importante fato de que “las reformas productivas apoyadas en la introducción de innovaciones científicas y la ayuda de la financiarización de la economía ponen la vida en toda su consistencia geo-bio-neuro-fisiológica en el centro del debate para la biopolítica”. Assim, no âmbito das decisões reprodutivas, passou-se também a discutir questões relacionadas àos conflitos biopolíticos e consequentemente bioéticos. Dessa maneira, pode-se ter em conta que o corpo “aparece como un territorio en disputa estratégico, es el lugar donde se expresan las profundas transformaciones tecnocientíficas (particularmente las biotecnológicas), eje privilegiado para las estrategias, mecanismos y dispositivos de la actual bioeconomía y el biopoder”2.
As principais descobertas do século XX portaram-se como revolucionárias para as ciências da vida. Dentre as principais, estão a possibilidade de manipulação genética, de clonagem, a formação dos bancos de dados genéticos e as inovações biotecnológicas em proejtos assistidos de reprodução dentre outras. “Tais descobertas não se destinaram apenas à cura de doenças, mas alcançaram o meio ambiente e a vida natural do planeta, abrangendo todos os gêneros e espécies de vida. Já as descobertas genéticas e genômicas ganharam destaque pois exibem relação direta com os processos vitais”3.
O contexto de discussão que ora se apresenta parte justamente desse pressuposto. A possibilidade de determinar o surgimento de novas vidas, através de projetos parentais assistidos não convencionais, é umas das consequências desse plexo de descobertas.
Pregar a busca e o respeito pela pluralidade, enquanto uma realidade atual, pressupõe o despertar de uma consciência sobre as múltiplas opressões históricas que se revelaram pela violação da autonomia dos seres humanos em diferentes espectros sociais e pessoais, se levados em consideração situações que podem envolver, por exemplo, o direito ao próprio corpo, à integridade psíquica e moral, à orientação sexual.
A forma com que o direito de família hoje caminha, seja no âmbito legal, jurisprudencial ou doutrinário, deslinda para sua plena libertação, pautado no reconhecimento da autonomia como elemento que não pode ser desconsiderado em prol da manutenção de excessivas intervenções estatais normativas em relações íntimas ou privadas que não se justificam.
Sabe-se, no entanto, conforme Giselda Hironaka, que, para o Direito, “aquilo que se apresentar de modo repetitivo, encaixado em formulações pré-estabelecidas, aquilo que se multiplicar tantas vezes quanto seja desejável fazê-lo, tende a parecer mais seguro e, daí então, deve decorrer a idéia de segurança jurídica”4. Este pressuposto evidencia o quanto é custoso romper paradigmas, transformar entendimentos e renovar interpretações no âmbito da pragmática jurídica.
A autora prossegue refletindo sobre o fato de que nossa legislação não tem se mostrado capaz de acompanhar “a evolução, a velocidade e a complexidade dos mais diversos modelos de núcleo familiares que se apresentam como verdadeiras entidades familiares”, e essa inércia do Poder Legislativo tem desembocado em “um proficiente ativismo do Poder Judiciário, cuja atuação eficiente tem estabelecido o liame imprescindível entre as expectativas sociais e o ordenamento jurídico”5. Coube, sobretudo nos últimos dez anos, ao Judiciário atender às demandas sociais relacionadas às novas formas de constituição de famílias, seja em relação à formação de casais ou em relação à constituição de projetos parentais não convencionais e ao reconhecimento da filiação não biológica.
A Constituição admitiu a pluralidade das entidades familiares, recepcionando as manifestações afetivas de variadas naturezas, como o casamento, a união estável e a família monoparental. As múltiplas possibilidades de arranjos familiares encontram proteção em âmbitos constitucional e infraconstitucional com fundamento na afetividade, compreendida como um princípio ou como um valor abraçado pela ordem jurídica, e na dignidade da pessoa humana, refratária da discriminação e do segregacionismo. Nesse liame, se não há empecilhos ao reconhecimento jurídico da pluralidade das formas de famílias, também não há sentido em cercear o acesso às técnicas de procriação humana artificial aos indivíduos que almejam a constituição de uma família, seja ela monoparental ou biparental entre pessoas do mesmo sexo.
Acrescente-se, ainda, a importância de se conceber um direito de família onde as relações parentais não se consbustanciem apenas pelo sangue, de modo que “a filiação é um fenômeno muito abrangente e complexo, que não se afirma, somente, pelos laços genéticos”6. Resta superada qualquer concepção que vise condicionar o sentido de família à identificação da vinculação biológica ou de atribuir a esta condição preferência. O movimento da sociedade que coloca o afeto como o vetor essencial para formações de família, em seu sentido mais profundo, foi nitidamente contemplado pela possibilidade de usar os procedimentos de reprodução assistida no Brasil.
3 Projetos parentais e procedimentos de procriação assistida
As possibilidades originadas pela evolução médico-científica na área da procriação assistida viabilizaram a concretização de projetos parentais variados, seja por conta de impossibilidades biológicas, motivadas pelo diagnóstico de esterilidade ou infertilidade, ou, ainda, por motivações outras, como é o caso da monoparentalidade programada, popularmente conhecida como “produção independente”, ou, ainda, no caso de projeto parental que envolvam pessoas do mesmo sexo.
Os anseios sociais, justificados pelas novas demandas pessoais, passaram a evidenciar o necessário afastamento da intervenção estatal no que concerne ao desenvolvimento das relações de natureza privada. O Direito, enquanto ciência e enquanto sistema, passou a compreender que era necessário uma intervenção mínima e justificada do Estado quando se constatassem questões que versem sobre aspectos íntimos, pessoais e privados do ser humano, considerado em sua individualidade, em sua essência.
O art. 226, §7º, da Constituição Federal, determina que “o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”. O dispositivo foi regulamentado pela Lei 9.263/1996, segundo a qual planejamento familiar é “o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal”, ficando proibidas políticas com fulcro em qualquer tipo de controle demográfico. Assim, o Estado passou a reconhecer com precisão que a decisão procriativa não pressupõe qualquer intervenção de sua competência, deixando a cargo dos particulares o momento em que a mesma deve ocorrer, a forma com que será concretizada e a quantidade de filhos que se deseja ter.
Mesmo sendo um direito normativamente assegurado, o livre planejamento familiar não minou as discussões sobre a incidência de limites éticos e normativos sobre algumas decisões reprodutivas. Disso então resulta digressões doutrinárias que versam sobre a condição normativa da procriação, se de fato se trata se um direito ou de mera faculdade. Encarna Roca i Trías afirma que “quando se discute, nos diferentes países, a necessidade de dar ou não suporte legal para a utilização das técnicas de reprodução assistida, em alguns coloca-se a questão da base da existência de um hipotético direito a procriar, direito a ter filhos, que derivaria do próprio direito à vida, além do direito à privacidade [...]”7.
Eduardo Oliveira Leite afirma que não existe um direito a ter filhos. Para ele, “o que há é uma liberdade de ajudar o semelhante (estéril) a ter um. O direito a ter filhos quando se quer, como se quer, e em qualquer circunstância é reivindicado como um direito fundamental”, mas é somente “a expressão de uma vontade exacerbada de liberdade e de plenitude individual em matérias tais como o sexo, a vida e a morte”8.
Seguindo este mesmo caminho, há quem entenda que “no existe un derecho a tener un hijo, porque ninguna persona humana es debida a otra, como si fuera un bien instrumental. Los cónyuges tienen derecho a los actos naturales que conducen a la procreación, pero no derecho a la procreación efectiva”9. Os atos que conduzem à concretização da procriação são, sim, o direito existente, afastando-se qualquer ideia, neste sentido, da procriação como o objeto de direito.
Dentro da relação contratual que envolve os procedimentos de reprodução humana assistida, deve-se atentar para pontos relevantes. Mary Warnock sinaliza para o fato de que,“en el contexto de la reproducción asistida, el único derecho que podría reclamarse de modo razonable sería el derecho a intentar un hijo”10. Assim, o direito pertinente à relação é o direito de tentar ter um filho. Não recai sobre a procriação a condição de necessidade que possa gerar a obrigação de satisfação do mesmo modo que uma obrigação de nutrição, por exemplo. Prossegue a autora afirmando que não se pode admitir a existência de um direito a qualquer coisa simplesmente por ser profundamente desejada. Logo, também, há de se pensar que não se pode atribuir ao Estado a função de custeio imediato dos projetos parentais daqueles que demandam o uso do procedimento, pois a reprodução não pode ser considerada como um direito fundamental nem como uma necessidade universal que gera um direito concretamente reivindicável11.
A possibilidade de aumentar o rol das obrigações do Estado, no que tange à cobertura dos procedimentos assistidos de procriação, ganhou projeção no plano das discussões bioéticas e biojurídicas a partir da reconstrução da ideia sobre um adequado conceito de saúde. Ressalvado o fato de que a discussão é carecedora de importante aprofundamento, não sendo o objeto real deste artigo, sabe-se tendente o alargamento do conceito de saúde, considerando o espectro pisicológico e de bem-estar do ser humano.
Assim, há quem entenda existir um direito ao acesso às técnicas de reprodução humana assistida, tendo em vista, justamente, a consideração do direito à saúde também sob o ponto de vista do bem-estar psíquico, e não somente calcado numa concepção estrita de enfermidade biológica ou de uma patologia física12. Quando incidentes situações de infertilidade ou de transmissão de doenças hereditárias, o Estado estaria incubido de conferir a prestação de recursos para a concretização do projeto parental e para o exercício livre do planejamento familiar.
Ainda então que se reconheça a procriação como um direito, pode-se pensá-la que, sob o exercício deste direito, também recaem limites. A aplicação do Direito, hoje, não coaduna com a existência de direitos absolutos; ao contrário, tende a especificar-se para se debruçar ao caso concreto, mantendo-se como instrumento razoável de dissuasão de conflitos e, para isso, busca considerar singularmente as realidades.
A demanda que justificou, durante muito tempo, a busca pelos procedimentos assistidos de reprodução esteve alicerçada unicamente pela esterilidade/infertilidade. A motivação de ordem terapêutica seria, com naturalidade, o fator justificador dos investimentos em pesquisas científicas que aumentassem o grau de probabilidade de sucesso da procriação.
Numa acepção ampla, a esterilidade é definida como a incapacidade de um casal conseguir uma gravidez considerando um tempo razoável de tentativas. A Sociedade Americana de Fertilidade considera como um caso de esterilidade o casal que, depois de um ano, não conseguiu a gravidez sem usar métodos anticonceptivos. Outras sociedades científicas, como a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia, a Sociedade Europeia de Embriologia e Reprodução Humana e a Organização Mundial de Saúde, consideram que esse prazo deve ser de dois anos13.
A infertilidade “é a incapacidade, de um ou dos dois cônjuges, de gerar gravidez por um período conjugal de, no mínimo, dois anos, sem uso de contraceptivos e com a vida sexual normal, quer por causas funcionais ou orgânicas”, enquanto que “a esterilidade acontece quando os recursos terapêuticos disponíveis não proporcionam cura”14. No entanto, é possível perceber, a partir das obras que tratam do assunto, uma ausente nitidez para evidenciar a separação dos conceitos.
Conclui-se que o uso dos procedimentos artificiais de reprodução, historicamente, esteve associado a indicadores médicos, ou seja, se justificam por motivações de natureza orgânica ou biológica que impedem a concretização de uma gravidez advinda de maneira natural. Assim, a incidência dos métodos artificiais de reprodução estava relacionada apenas à descoberta de razões biológicas que evidenciavam problemas de fertilidade ou esterilidade, originados na mulher ou no homem.
Hoje, outros motivos se portam como justificadores da procura em torno das técnicas de procriação assistida. Isto porque os recursos procriativos assistidos representam possibilidade considerável de evitar a transmissão de patologias hereditárias. Depreeende-se daí que as demandas iniciais em torno dos procedimentos reprodutivos estavam associadas às motivações de ordens impeditivas, ou seja, às pessoas que apresentavam empecilhos biológicos para procriar de forma natural. A Genética, hoje, possibilita o acesso às condições de saúde dos gametas e do embrião, através dos testes ou exames genéticos, estabelecendo correlações que designam probabilidades de manifestações de doenças futuras. Essa realidade foi levada à seara da procriação artificial com o objetivo de prevenção da manifestação de doenças já reincidentes num determinado seio familiar15.
No mesmo liame, outras motivações passaram a integrar a demanda pelos procedimentos artificiais de reprodução. Surgiram situações como a chamada “produção independente”, que ocorre quando a busca pela realização do projeto parental é de apenas uma pessoa, e como no caso dos casais formados por pessoas do mesmo sexo, que não querem contrariar sua orientação sexual, apesar de férteis muitas vezes. Em ambas as situações, os processos de procriação artificial são necessários porque dependem de um terceiro doador de material biológico e/ou gestante por substituição. Tais situações não estão atreladas ao pressuposto do diagnóstico de infertilidade ou esterilidade e conformam uma nova realidade em torno da demanda sobre os procedimentos assistidos.
Carlos Lema Añón entende que a esterilidade é, ao mesmo tempo, o critério que legitima e limita o acesso às tecnologias de reprodução artificial. Para ele, “el argumento de la esterilidad, al tiempo que como legitimador de las nuevas tecnologías reproductivas, también funciona como límite para las mismas”. Funciona como limite para “frenar hipotéticos abusos que se pudiesen producir, opera como un limitador de las prácticas y de las modalidades [...].”16 Se a esterilidade é o critério que legitima o acesso às técnicas, o autor não contempla a possibilidade de que pessoas solteiras, viúvas, divorciadas ou casais homoafetivos possam procurar as técnicas, já que carecem do diagnóstico de um empecilho biológico para procriar.
A recente Resolução 2.168/2017, do Conselho Federal de Medicina, recepcionou a extensão das situações que justificam o acesso às técnicas, determinando que “todas as pessoas capazes, que tenham solicitado o procedimento e cuja indicação não se afaste dos limites desta resolução, podem ser receptoras das técnicas”, assegurando, ainda que “é permitido o uso das técnicas de RA para relacionamentos homoafetivos e pessoas solteiras, respeitado o direito a objeção de consciência por parte do médico”, além de ter determinado que “é permitida a gestação compartilhada em união homoafetiva feminina em que não exista infertilidade”.
Percebe-se, a partir da resolução, que o critério da infertilidade deixou de ser objetivamente a condicionante que justificava o acesso às técnicas. A resolução adaptou-se ao sentido contemporâneo de família, o que inclui a monoparental e biparental com pais do mesmo sexo.
A extensão do acesso às técnicas procriativas, pelos solteiros, viúvos, divorciados e casais homoafetivos, aponta para o surgimento de questionamentos relacionados à escolha das características do outro genitor biológico, doador do material genético necessário à efetivação do projeto parental. O mesmo problema pode ser consubstanciado em caso de casal heteroafetivo se a procriação pressupuser a doação de material biológico e, portanto, tiver natureza heteróloga.
Deve-se registrar que a resolução registra ter o intuito de elucidar questões relacionadas à infertilidade humana, mas considera o posicionamento do Supremo Tribunal Federal em reconhecer e a união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, corroborando a perspectiva constitucionalizada inerente ao âmbito do desenvolvimento das relações familiares.
Originariamente, as técnicas de reprodução assistida foram concebidas com vistas a solucionar a infertilidade do casal ou de um deles, conservando o uso dos gametas dos mesmos para manter a transmissão das informações genéticas à descendência, ou seja, os procedimentos para procriar de forma artificial eram inicialmente motivados pela concretização de processos homólogos. Esse panorama mudou quando passou-se a verificar que a forma homóloga da reprodução não resolvia parte considerável das situações de infertilidade, admitindo-se, então, o recurso ao material de um terceiro estranho à relação17.
A reprodução humana assistida pode ser heteróloga caso parta da necessidade de uso de material genético (gametas) estranho ao casal que procurou o especialista para realizar o seu projeto parental. A reprodução de natureza heteróloga, então, pode se concretizar no que tange ao casal, ou seja, tanto os óvulos como os espermatozoides foram doados por terceiros, ou, ainda, no que tange apenas a um dos envolvidos (se houver doação somente dos óvulos ou somente dos espermatozoides). Registre-se, também, que a reprodução será heteróloga nos casos em que o projeto parental seja demandando por solteiros, viúvos e casais formados por pessoas do mesmo sexo, já que a procriação não teria como ser realizada na forma homóloga.
Acrescente-se que o estágio atual da Genética acentuou a necessidade de admitir os processos heterólogos de reprodução, pois, passou-se a ser possível a identificação das doenças hereditárias transmissíveis que somente serão evitadas em caso de não uso das células reprodutivas dos indivíduos que possuem o gene. A reprodução heteróloga se consubstancia como uma forma de contornar essa realidade, considerando o fato de que os recursos que propiciam o acesso às condições genéticas dos indivíduos são cada vez mais usados em termos procriativos.
Assim, o delineamento de um contorno ético para a justificação do uso das técnicas assistidas de reprodução, que abrange a demanda em torno do procedimento de natureza heteróloga, deve agregar as necessidades justificadas pela esterilidade, pelos indicadores de probabilidade de transmissões de doenças hereditárias predominantes na família, e, também, pelos impedimentos circunstanciais que envolvem os solteiros, viúvos, divorciados e homoafetivos na concretização dos respectivos projetos parentais.
Não há no país lei ordinária que determine de maneira objetiva a quem se destina os procedimentos assistidos de reprodução, bem como as circuntâncias que devam motivar o acesso à tais técnicas, ficando a questão submissa ao plano deontológico profissional, estando, pois, somente regulamentada, como dito, por meio de normativa de Conselho de Classe, a Resolução do Conselho Federal de Medicina número 2.168 do ano de 2017. Tal persepctiva chama os médicos para o despertar da consciência ética em torno do uso de tais procedimentos, que não podem se tranformar em instrumentos para concretizar projetos parentais não justificados pelas situações já expostas.
4 O uso da doação de gametas para consecusão de projetos parentais não convencionais
A extensão do rol dos legitimados ao acesso às técnicas de reprodução humana na forma artificial corrobora o conteúdo constitucional emanado dos direitos fundamentais alicerçados na dignidade da pessoa humana. Esse conteúdo constitucional foi nitidamente assumido pelo direito de família contemporâneo ao reconhecer como fundamental a preservação de algumas liberdades fundadas no pleno exercício da autonomia.
Seguindo o fluxo da tendência atual, o Conselho Nacional de Justiça brasileiro, através de seu Enunciado de número 40, determinou que, no registro de nascimento de indivíduo gerado por reprodução assistida, é admissível a inclusão do nome de duas pessoas do mesmo sexo, como pais. Esse movimento encontra guarida na doutrina e na jurisprudência pátrias, na medida em que se reconhece a necessidade de construção de um direito de família plúrimo.
A discussão sobre a possibilidade de usar os procedimentos assistidos de reprodução hoje demanda uma reflexão no âmbito da economia e das demandas de mercado. Na verdade, é necessário compreender como fatores econômicos e mercadológicos podem permanecer interligados pela dinâmica da oferta e procura pelos recursos procriativos em laboratório.
Con los avances tecnocientíficos aplicados a la dinámica capitalista, apoyados por las estrategias de financiarización de la economía, el comportamiento social del capital es la prolongación del dominio fabril a toda la extensión social, la constitución de la “fábrica difusa”, lo que se expresa en la mercantilización de todas las relaciones sociales. El biopoder del capital despliega todas sus fuerzas, intensiva y extensivamente sobre un trabajo social acumulado, base y objeto de las estrategias de valorización, así como sobre todos aquellos elementos del bios/zoé natural susceptibles de ser apropiados. Se vinculan más territorios a la lógica del valor o se reordenan los que actualmente están sujetos a su dinámica. Igualmente, en términos intensivos la valorización se apoya en los desarrollos biotecnológicos donde el cuerpo y la naturaleza se convierten en alternativas de valorización importante, fuentes esenciales para su ampliación, lo cual despliega un interés y mando, no solamente en la espacialidad, sino también en la naturaleza y en lo corporal (cuerpos de seres humanos, animales y plantas)18.
Este panorama de influência dos fatores econômicos em todas relações sociais, o que inclui também demandas de natureza médica, aqui reveladas por projetos parentais assistidos, não pode ser ignorado quando pretende-se descortinar os elementos que podem fomentar as escolhas reprodutivas na atualidade.
4.1 Monoparentalidade programada e reprodução por casais do mesmo sexo
Como salientado, as técnicas de reprodução assistida foram concebidas para solucionar a infertilidade do casal, ou de apenas uma pessoa, conservando o uso dos gametas dos mesmos para manter a transmissão das informações genéticas à descendência, ou seja, os procedimentos para procriar de forma artificial eram inicialmente motivados pela concretização de processos homólogos.
Modificou-se tal entendimento quando restou comprovado que o uso da forma homóloga não conseguia solucionar parte considerável das situações de infertilidade, passando-se, então, ao apelo do recurso ao material de um doador. A reprodução heteróloga pode ser o mecanismo capaz de driblar a probabilidade significativa da transmissão hereditária de uma doença manifestada numa cadeia familiar. Pode-se, então, perceber que o recurso da procriação heteróloga também pode ter um motivador terapêutico, capaz de impedir que a prole futura possa padecer da enfermidade provável.
No entanto, o uso da reprodução em sua forma heteróloga tem evidenciado alguns questionamentos importantes. No Brasil, o contrato que envolve a reprodução dessa natureza pressupõe uma cláusula de anonimato que desvincula e afasta a possibilidade de conhecimento do doador, pelos demandantes do material e pelo futuro filho. Assim como em outros países, parte da doutrina tem questionado a legitimidade e, mesmo, a legalidade de tal previsão contratual por se considerar o reconhecimento do chamado direito à identidade pessoal do indivíduo, que passaria a ter o direito de conhecer seu genitor biológico, ainda que de tal fato não decorram consequências jurídicas relacionadas à filiação e à sucessão19.
Rechaçando a pretensão de incorrer sobre as questões que envolvem o direito à identidade pessoal, parte-se do fato de que a reprodução heteróloga pressupõe situação que pode possibilitar a concretização de práticas seletivas, ou seja, deve-se ter em conta a necessidade de esclarecer como o doador, nos processos heterólogos, deve ser escolhido.
Normativamente, como já esclarecido, no Brasil, não há lei específica sobre o assunto. O uso das técnicas assistidas de reprodução foi exclusivamente disciplinado por normativa do Conselho Federal de Medicina, resolução que não conseguiu definir com clareza e segurança os critérios sobre a forma com que se deve escolher o terceiro doador ou o material do mesmo disponibilizado nas clínicas.
A Resolução 2.168/2017, do Conselho Federal de Medicina, afirma que “as clínicas, centros ou serviços onde são feitas as doações devem manter, de forma permanente, um registro com dados clínicos de caráter geral, características fenotípicas e uma amostra de material celular dos doadores, de acordo com legislação vigente ”. Afirma, ainda, que “a escolha das doadoras de oócitos é de responsabilidade do médico assistente. Dentro do possível, deverá garantir que a doadora tenha a maior semelhança fenotípica com a receptora”.
A única normativa destinada aos procedimentos assistidos de reprodução vigente no país determina duas obrigações às clínicas especializadas, a manutenção dos dados clínicos e fenotípicos dos doadores e, bem assim, a obrigação de que a escolha da doadora de oócitos mantenha a maior semelhança fenotípica possível com a receptora.
A norma atinge os casos de reprodução heteróloga monoparental programada, onde apenas um decidiu pela execução do projeto parental, ou, ainda, nos casos de reprodução entre casais formados por pessoas do mesmo sexo. A semelhança a ser observada, sugerida pela resolução, é relativa ao indivíduo (homem ou mulher) ou ao casal que movimentou o aparato reprodutivo. Em caso de gestação por substituição usada para a procriação monoparental intentada por um homem ou por um casal formado por dois homens, não devem ser consideradas as características fenotípicas da gestante substitutiva, que é, de fato, a receptora do material, para parametrizar a escolha do doador.
A escolha do doador a partir da semelhança com o demandante do processo procriativo não pode ser um fator relativizado, deve, sim, ser pressuposto necessário em prol de não se tornar uma variável que permita a consecução de escolhas baseadas em aspectos estéticos ou com motivadores de ordem discriminatória. O demandante ao processo heterólogo de reprodução não pode encontrar como pressuposto o direito a escolher as características do seu futuro filho, como cor dos olhos, cor da pele, tipo de cabelo, altura, peso e outras possíveis se o ponto de partida for o acesso direto ao cadastro que evidencia o perfil fenotípico dos doadores.
No entanto, a normativa do Conselho de Medicina brasileiro aponta para uma margem discricionária que pode permitir a escolha de acordo com motivações pessoais, por isso, é criticada em alguns aspectos.
4.2 Os parâmetros de escolha
A possibilidade concreta de ter acesso a informações genéticas e de alterar o estado de constituição natural dos organismos vivos, por meio das manipulações biológicas, que incluem os processos procriativos de reprodução, não pode, por si só, ser considerada um fator autossuficiente, ou seja, não deve ser praticada simplesmente porque passou a ser possível, porque a Ciência a recepciona como uma conduta viável. Esse dilema é resumido pela difícil tarefa de conciliar, de forma coesa, as descobertas da Ciência com os pressupostos fundamentais da Ética.
As descobertas complexas da Genética passam a lidar com a possibilidade de que seja possível praticar escolhas parametrizadas por argumentos dessa natureza, conhecidos como práticas eugênicas ou, popularmente, eugenia. A eugenia é, ao mesmo tempo, contemporânea e histórica. É contemporânea porque se relaciona com as áreas da genética humana e das tecnologias reprodutivas, acessíveis e frequentemente utilizadas. É histórica no sentido de que, quando anterior a 1945, pode ser vista como um fato do passado, sobre o qual tenta-se manter algum distanciamento. A história da humanidade confirma que, durante o decorrer dos tempos, a raça humana praticava escolhas visando o melhoramento da espécie, embasada em critérios variáveis. A variabilidade dos critérios é constatada porque as práticas seletivas se consubstanciavam conforme a necessidade de cada sociedade e paralelo à mutabilidade dos valores. As necessidades e os valores, elementos de toque das condutas seletivas, são fatores mutáveis e se apresentam conforme a história20.
O pensamento eugênico aponta para a concomitância de três fatores: a ideia de que é possível aperfeiçoar o ser humano; a ideia de que existem seres humanos inferiores; a ideia de perfeição biológica e psicológica está ligada ao progresso em distintos sentidos sociais21.
Sem prejuízo da eugenia de motivação terapêutica, que visa afastar características indesejáveis, ela também pode se concretizar sob a forma da conduta que busca a prevalência e a transmissão de características desejáveis, ou seja, que devem permanecer. É o caso da escolha de determinadas características, através da seleção de gametas ou embriões de pessoas com traços físicos e intelectuais específicos, e do estímulo ao casamento e à união de pessoas selecionadas como já ocorreu em momentos do passado.
São procedimentos de eugenia positiva os estímulos à procriação (de natureza econômica, incluindo os privilégios sociais e outros); a seleção germinal mediante bancos de sêmen; a clonagem e a partenogênese, onde indivíduos seriam forçosamente do sexo feminino, já que o procedimento consiste em estimular o desenvolvimento embrionário de um óvulo sem fecundação, incluindo a duplicação do cromossomo sem a divisão mitótica natural22.
A seleção dos gametas mediante bancos de sêmen ou de óvulos se concretiza nos procedimentos heterólogos de reprodução, onde há uso de material biológico doado e, muitas vezes, não existem parâmetros para a escolha do doador, ficando a questão à mercê da vontade de quem impulsionou o projeto parental ou do médico, conforme seus critérios de conveniência.
As descobertas atuais sobre o genoma humano associadas ao avanço das técnicas sobre reprodução assistida abriram novas possibilidades à concretização do pensamento eugênico. Aconselhamentos genéticos, diagnósticos em gametas, embriões e fetos e a engenharia genética são as técnicas novas que fizeram ressurgir a admissibilidade do pensamento eugênico, traduzido, como nova eugenia ou neoeugenia. As práticas eugênicas passadas se comunicam, de alguma forma, às práticas neoeugênicas. Os objetivos ganham afinidade, mas não são praticados a partir dos mesmos elementos. O contexto onde está situada a neoeugenia se caracteriza por uma complexidade médico-científica diferenciada e pela incidência do consentimento (e do respeito à autonomia), elemento descartado em épocas predecessoras23.
Nos sistemas democráticos, que pugnam pela preservação dos direitos humanos, a eugenia pode ser confundida com as prerrogativas que envolvem os direitos individuais, tornando difícil separar, com clareza, tais realidades. A partir dessa confusão, alguns questionam se essa nova forma de seleção deve ser qualificada como eugenia já que pode estar alicerçada em direitos de reprodução24. Jürgen Habermas25 entende que algumas práticas eugênicas, como o diagnóstico pré-implantacional, devem ser consideradas como moralmente admissíveis ou juridicamente aceitáveis “se sua aplicação for limitada a poucos e bem definidos casos de doenças hereditárias graves que não poderiam ser suportadas pela própria pessoa potencialmente em questão”. Prossegue afirmando que essa permissão, por conta dos avanços, será estendida a intervenções em células somáticas e germinativas com vistas a prevenir doenças hereditárias ou semelhantes futuras. Assim, ele traz a necessidade de separar eugenia negativa, que parece justificada, já que tem função terapêutica, da eugenia positiva, que não pode ser justificada, sendo uma eugenia de aperfeiçoamento, pautada em critérios de perfeição, prática eugênica que pode estar relacionada às motivações para escolha do doador nos procedimentos heterólogos26.
Habermas aponta, como fator preocupante, o fato de que uma pessoa passe a ser a concretização das intenções de outra, este fato estabelece uma relação de assimetria entre o programado (ou o eugenizado) e o programador (o eugenista)27. Neste momento, os pilares do liberalismo são corrompidos porque a liberdade de escolha de alguém subjugará a liberdade do outro, cuja existência é pré-determinada pela programação de uma vontade alheia, e a igualdade, naturalmente admitida pela manifestação do acaso da constituição do patrimônio genético, não restará presente28.
A escolha motivada por características físicas, aptidões possíveis, cor de olhos, cabelos, pele e outras em sede de procriação heteróloga também é uma projeção de expectativa que se lança sobre a futura prole. Deve-se considerar, inclusive, que não há garantia de transmissibilidade de determinadas características, a escolha de determinado doador ou doadora a partir de seu fenótipo não implicará na garantia de que este seja reproduzido.
Acrescente-se que a resolução trouxe previsão normativa sobre a busca, “dentro do possível”, da manutenção da semelhança fenotípica em caso de doação de óvulos, não conferindo disciplina sobre a situação em caso de doação de sêmen, tornando mais nebulosa e inconsistente a proposta almejada. Seja na doação de óvulos ou na doação de espermatozoides, deve-se manter o mesmo intento. A procura pela semelhaça fenotípica é a margem de manutenção à manifestação natural do patrimônio genético e não pode representar a busca eventual à manutenção dessa naturalidade.
5 Considerações finais
A transformação do direito de família nos últimos anos apontou para o seu necessário e indispensável processo de constitucionalização, na medida em que foram recepcionados direitos e garantias fundamentais no âmbito das relações privadas, tendo como pauta direcionadora o valor da pessoa humana. O reconhecimento do valor do ser humano demandou o também reconhecimento da dimensão plúrima da sua existência, manifestada pelo respeito à diferença. O acompanhamento paralelo do Direito desta nova realidade culminou na extensão das formas de constituição de família, salvaguardada pela proposta constitucional.
Como questão prévia a ser considerada, não se pode intentar promover uma análise do surgimento de novos projetos parentais, com o uso do recurso assistido procriativo, sem que se observe a dinâmica mercadológica que circunscreve a perspectiva da oferta e da procura que também envolve as relações de natureza médica. As relações sociais como um todo estão influenciadas por fatores econômicos, capazes de ditar muitas vezes o curso do resultado de um contrato.
O procedimento assistido de reprodução heteróloga consiste num contrato celebrado junto a uma clínica especializada que usará material biológico doado (óvulo ou sêmen). A ausente de lei ordinária sobre o processo, associada à insuficiente disciplina normativa da resolução existente, desemboca na falta de parâmetros claros no que tange ao uso do recurso heterólogo na procriação.
Constata-se que o procedimento pode ser utilizado por pessoas solteiras, viúvas ou casais formados por pessoas do mesmo sexo, que não possuem necessariamente uma questão patológica, como infertilidade ou esterilidade, mas, sim, um impedimento circunstancial, que é a falta do outro genitor ou do genitor de sexo oposto para concretização da gestação.
No entanto, persiste a falta de cuidado quanto ao procedimento atinente à escolha do material genético doado. A reprodução heteróloga deve ser concretizada com vistas à necessária proteção à diversidade biológica, advinda da tutela constitucional do patrimônio genético humano. Para isso, deve assemelhar-se à procriação natural com o objetivo de preservar o patrimônio genético em sua condição de pluralidade.
Assim, no processo heterólogo de reprodução, demandado por um casal, pessoa solteira ou viúva, o padrão fenotípico a ser escolhido deve assemelhar-se ao(s) do demandante(s). Percebe-se que a recomendação já emitida pelo Conselho Federal de Medicina deve conduzir a um amadurecimento sério e obrigatório, sem abertura de brechas que justifiquem escolhas pessoais, já que a norma deve visar combater processos eugênicos e segregacionistas. A permissão de qualquer tipo de inferência externa na escolha das características do doador pode institucionalizar um verdadeiro “processo seletivo” de seres humanos.
Dessa maneira, as clínicas de reprodução humana, responsáveis pela captação de doadores e uso do material biológico doado, devem manter compromisso com o respeito ao padrão natural de manifestação fenotípica da espécie humana, não permitindo que a decisão pela escolha das características do doador seja guiada pela simples manifestação de vontade do casal, do solteiro ou viúvo. A norma carece de aspecto impositivo, pois deve restar proibida a escolha de características do doador em caso de procedimento heterólogo, a fim de que a questão deixe de ser somente tratada no plano da conduta do profissional que concretiza o processo procriativo.
Referências
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2 TORRES, Edgar Novoa. Las nuevas realidades del bios/zoe del cuerpo, entre la bioética y la Biopolítica. Revista Latino-americana de Bioética, v. 14, n. 1, edição 26, p. 98-113, 2014. Disponível em: https://revistas.unimilitar.edu.co/index.php/rlbi/article/view/499/269. Acesso em: 22 fev. 2019, p. 100.
3 DIAS, Jefferson Aparecido; SORRILHA, Rubia Cristina. Biopolítica e o
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4 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Sobre peixes e afetos: um devaneio acerca da ética no direito de família. Palestra proferida no V Congresso Brasileiro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, em 27/10/ 2006. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/_img/congressos/anais/18.pdf. Acesso em: 6 jul. 2018.
5 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Família Paralelas. Revista da Faculdade de Direito da Unievrsidade de São Paulo, São Paulo, jan. 2013, v. 108, p. 200.
6 VELOSO, Zeno. A dessacralização do DNA. In: A Família na Travessia do Milênio. Anais do II Congresso Brasileiro de Direito de Família. IBDFAM, Belo Horizonte, 2000, p. 197.
7 ROCA i TRÍAS, Encarna. Direitos de reprodução e eugenia. In: CASABONA, Carlos María Romeo (Org.). Biotecnologia, Direito e Bioética. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 101.
8 LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais e o direito: aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p.356.
9 VEGA J.; VEGA M.; MARTINEZ Baza P. El hijo en la procreación artificial. Implicaciones éticas y medicolegales. Cuadernos de Bioética, 1995.p.65.
10 WARNOCK, Mary. Fabricando bebés. Tradução de José Luis López Verdú. Barcelona: Gedisa Editorial, 2004, p.23.
11 WARNOCK, Mary. Fabricando bebés. Tradução de José Luis López Verdú. Barcelona: Gedisa Editorial, 2004.
12 SCHEIDWEILER, Cláudia Maria Lima. A reprodução humana medicamente assistida, sua função social e a necessidade de uma legislação específica. In: MEIRELLES, Jussara Maria Leal de (coord.). Biodireito em discussão. Curitiba: Juruá, 2008; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Conflito positivo de maternidade e a utilização de útero de substituição. In: CASABONA, Carlos Maria Romeo; QUEIROZ, Juliane Fernandes (coords.). Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
13 ANÓN, Carlos Lema. Reproducción, Poder y Derecho. Madrid: Editorial Trotta, 1999.
14 ALVARENGA, Raquel de Lima Leite Soares. Considerações sobre o congelamento de embriões. In: CASABONA, Carlos María Romeo; QUEIROZ, Juliane Fernandes (Coords). Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p.229.
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19 NETTO LOBO, Paulo Luiz. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. Revista CEJ, Brasília, n. 27, out./dez. 2004.
20 MEIRELLES, Ana Thereza. Neoeugenia e reprodução humana artificial. Limites éticos e jurídicos. Salvador: Editora Juspodivm, 2014.
21 CORTÉS, Fabiola Villela; SALGADO, Jorge E. Linares. Eugenesia. Un análisis histórico y una posible propuesta. Acta Bioethica, 2011, v.17, p.190.
22 SOTULLO, Daniel. El concepto de eugenesia y su evolución. In: CASABONA, Carlos Maria Romeo. La eugenesia hoy. Bilbao-Granada: Editorial Comares, 1999, p.42.
23 MEIRELLES, Ana Thereza. Neoeugenia e reprodução humana artificial. Limites éticos e jurídicos. Salvador: Editora Juspodivm, 2014.
24 CASABONA, Carlos Maria Romeo. Las prácticas eugenésicas: nuevas perspectivas. In: CASABONA, Carlos Maria Romeo. La eugenesia hoy. Bilbao-Granada: Editorial Comares, 1999.
25 HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. A caminho de uma eugenia liberal? Tradução de Karina Janini. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.26.
26 HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. A caminho de uma eugenia liberal? Tradução de Karina Janini. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
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28 MEIRELLES, Ana Thereza. Neoeugenia e reprodução humana artificial. Limites éticos e jurídicos. Salvador: Editora Juspodivm, 2014.
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